Por Rangel Alves
da Costa*
Quem dera se o
agora fosse verdadeira saudade amanhã, já ouvi tal confissão de um velho amigo.
E de outro presenciei um olhar molhado quando recordei pequenas coisas que a
ingratidão do homem e do tempo acaba consumindo. Alguém acertadamente escreveu:
só não esquecemos o dia de ontem porque sempre deixamos situações não
resolvidas.
Situações
envolvendo o ontem, o passado, os tempos idos, a memória. Tantas páginas
escritas e na maioria das vezes rasgadas ou esquecidas nos porões do descaso
com a própria história de vida. Preservamos na memória apenas os grandes
feitos, as grandes realizações e conquistas, e quase sempre deixando de lado as
pequenas e singelas coisas que foram de imensa significação.
Muita gente
nega o sentimentalismo, a nostalgia, o regresso a tempos passados. Não sabe,
contudo, que a alma também se alimenta do pomar frutificado noutros tempos. E a
cada dia que passa, principalmente diante de realidades que quase não permitem
acontecimentos bons, o homem tende cada vez mais a ir atrás da felicidade
naquilo que seu percurso já semeou. É como se dissesse que o ontem ainda faz
com que o hoje valha a pena.
Em instantes
assim, quando se abre a porta de trás, surge a sensação de que a vida possui
por sustentação momentos e fatos ainda dependurados na parede da memória.
Cartas, retratos antigos, bilhetes amarelados, joias familiares, álbuns de
família, pedaços e recortes, encontros e desencontros, tudo que permitiu uma
existência que sempre merece ser lembrada.
Errôneo
imaginar que quem vive do passado é museu e que os percursos vivenciados servem
apenas pelas lições aprendidas. Do mesmo modo, não se concebe como vida em sua
completude apenas recortes que mereçam ser recordados. Daí sempre a necessidade
de o homem não relegar ao esquecimento o percurso de sua história nem o
contexto no qual ela foi vivenciada.
Daí também que
vejo o memorialismo como forma eficiente de resguardar os fatos e as situações
passadas, não só como marcos de uma época e espelhos para o futuro, mas, e
principalmente, como meio de reconhecer e valorizar as ações e os gestos
humanos em determinados períodos históricos. Somente assim será possível
conhecer o antigo e compreender sua importância para cada um, para a vida de um
povo e da cidade.
Há de se
compreender que as memórias não são baús lacrados, esquecidos, abandonados. As
memórias são páginas vivas, abertas, esperando ser folheadas a qualquer
instante. Servem como recordações, como reminiscências, para avivar as
nostalgias, reencontrar os encantos nos tempos idos, mas também como espelhos
diante da realidade presente. E que bom se as molduras de hoje pudessem abrigar
com sinceridade e respeito os retratos antigos.
Para ser moderno,
novo, estar na moda, não é necessário que feche a porta do ontem. O passado, no
seu tempo próprio, já foi tão moderno como o instante tecnológico. Aquelas
ferramentas tecnológicas de então impressionavam tanto quanto as inovações de
agora. O gramofone, a radiola, o rádio, a televisão, a máquina de escrever,
tudo isso já foi visto como avanços científicos impressionantes.
Ademais, basta
ver que o computador já parece envelhecido demais. Tecnologias computacionais
de dez anos atrás já estão totalmente ultrapassadas no presente. Hoje há uma
gama tão grande de inovações surgindo que fica até difícil saber o que é mais
moderno ou mesmo a sua utilidade. E amanhã certamente já estarão totalmente
obsoletas. E também esquecidas. Mas diferentemente ocorre com alguns objetos e
situações de um passado mais distante.
O velho rádio
continua em pleno uso, a televisão em preto e branco ainda é de serventia, o
giz de cera e o quadro negro ainda fazem parte do cotidiano da maioria das
escolas, do mesmo modo o lápis, a caneta e o caderno. Logicamente que já há
substituto tecnológico para tudo isso e correspondendo até de forma mais
eficiente, mas não se despreza de vez aquilo imposto pela necessidade ou que a
sociedade afetuosamente acolheu.
Talvez não
seja doloroso recordar as cadeiras espalhadas nas calçadas ao anoitecer, as
caminhadas seguras debaixo da lua maior, os quintais imensos com seus cheiros e
sabores, os letreiros anunciando os filmes tão esperados, o recolhimento do
leite na porta a cada manhã. E amigos se cruzando pelas ruas, crianças nuas
chutando a bola em direção ao varal. E a fumaça do bonde, e o apito do trem.
Os retratos
espelham tais transformações. Se o homem era mais feliz pouco importa, se a
vida era mais prazerosa de ser vivida também pouco importa, principalmente
porque os reconhecimentos e as valorizações tardam a acontecer. Mas importa que
os mais velhos se sintam entristecidos quando comparam o passado e o presente.
E não há como negar a saudade daqueles idos dos livros de ouro e dos bailes
antigos.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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