Seguidores

sábado, 6 de setembro de 2014

EVANGELHO

Por Rangel Alves da Costa*

Naquele tempo... Saindo do Deserto da Judeia, aridez temerosa onde fora tentando por quarenta dias e quarenta noites, Jesus subiu ao monte mais alto dos arredores e de lá, lançando o olhar sobre as vastidões adiante, apertou os olhos e, entristecido, espalhou ao vento umas poucas palavras: Eis o deserto do homem. Terá oásis, mas incessantemente buscará o deserto.

Foram apenas estas as palavras, mas ecoadas de tal modo que chegaram aos quatro cantos da terra e até os dias de hoje são repetidas, acrescidas, modificadas. Contudo, mesmo curtas, continuaram misteriosas para muitos. Até sábios e profetas discordaram acerca de seu alcance. Assim porque a sabedoria não chega com conceitos acabados ou definições demasiadamente estreitas, exigindo que o próprio homem adentre na sua metáfora para decifrá-la segundo o seu compromisso com aquela realidade anunciada.

Alguns propuseram que Jesus sentenciara acerca do homem como ser destruidor do que foi semeado e depois se tornando algoz de sua própria degradação. Outros sugeriram que aquelas palavras nada mais significavam que o desprezo do homem pela existência que lhe fora confiada, de modo a tornar seu jardim num campo de aridez e desolação. E outros e mais outros deram interpretações diferentes às palavras. Mas qual o verdadeiro sentido daquela pronúncia e sobre a qual os tempos cuidaram de repassar a cada geração?

Terá oásis, mas incessantemente buscará o deserto. As palavras se acrescendo em si mesmas. E de lá de cima o verbo foi semeado nas imensidões dos tempos. No contexto do oásis e do deserto, ou na sua junção ou disparidade, a sentença que desde então o próprio homem optou por cumprir. O oásis talvez significando os poderes conferidos ao ser humano sobre a terra, a sua força transformadora na existência, a grandiosidade dos elementos colocados à sua disposição. O deserto talvez significando o descaso ou a omissão perante as riquezas concedidas ou mesmo as dolorosas consequências pela devastação daquele oásis. Destruindo as dádivas, somente caminhos difíceis restarão ao homem. Eis o seu deserto, eis o que insistentemente busca.


Ainda naquele tempo e depois em todas as eras, a ventania ouviu e logo cuidou de espalhar entre montanhas e povoações; os galhos e as folhagens ouviram e segredaram aos pássaros, que saíram cantando os ensinamentos em meio a toda natureza; a terra árida ouviu e se fez pó para tomar caminho e  cimentar a lição bem distante; as pedras ouviram e guardaram segredo. Eis que as pedras temiam que palavras tão importantes se perdessem nos sopros fáceis ou fossem deturpadas segundo os interesses. E prometeram a si mesmas preservá-las para a posteridade, bem além da idade duradoura da pedra. Mas aquelas poucas palavras se espalharam de tal modo ainda hoje são ecoadas como um verdadeiro sermão:

“Eis o deserto do homem. Terá oásis, mas incessantemente buscará o deserto.

Ofereci a semente, o grão, o leito na terra, o dom do cultivo, a força para o trabalho. Ensinei a plantar e a colher, pois a terra sempre justa e acolhedora das necessidades humanas. Mas o que dela resta senão o deserto?

Em meio a terra fiz nascerem os córregos e os rios, fiz surgir as fontes e os mananciais de águas cristalinas, fiz com que a sede pudesse ser saciada, o corpo reconfortado e as sementes e plantas alimentadas. Tudo isso fiz, mas não o fiz em vão, assim para o desvão humano. Eis que a água que corre ou se acumula é verdadeiro oásis de vida e não miragem de deserto que leva à morte.

Tudo criei, tudo dividi, tudo considerei, dei face e feição, coloquei em tudo a perfeição. Mas nada fiz de pedra ou de ferro, pois sabia que o homem aos poucos procuraria transformar a sua face e a sua feição. E o fiz de barro duradouro, unido pelo cimento das virtudes, precisamente para permitir que se moldasse segundo os desígnios de sua existência. Mas outra coisa o homem não fez senão fragilizar esse barro e transformá-lo em poeira, o mesmo pó que hoje o atormenta no deserto.

Criei o ser humano e dei-lhe o mundo como prova maior de minha confiança e de meu amor, mas não para que o tivesse como posse egoísta nem como propriedade absoluta, eis que com o compromisso de compartilhá-lo com os outros seres e elementos que nele também fiz surgir. Fiz a árvore para conviver com o homem, fiz os rios e mares para o compartilhamento do homem, fiz os animais e todos os demais seres para coexistirem com o homem. Nada fiz somente para o homem e nem para que este se arvorasse do direito de dispor e destruir como e quando quisesse. Quem ou o que estará ao seu lado quando o seu deserto estiver aos seus pés?

Até mesmo os desertos jamais existiram assim, tão medonhos e aterradores. Mas hoje se alastram de tal modo que já estão divisando com os campos que fiz floridos e verdejantes, já se aproximam das semeaduras, dos jardins, das moradias. E assim porque o próprio homem cuidou de aumentar sua aridez, aproximá-lo de si e cultivá-lo com um orgulho difícil de ser acreditado. Vai destruindo o ambiente que é vida e alimento e abrindo caminhos áridos rumo ao deserto maior. Avista-se o homem já caminhando fragilizado, sedento, sem rumo. Dei-lhe oásis, mas sempre prefere o deserto

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário