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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

“O GLOBO”- 11/11/1958 Capítulo VII

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

MASSACRE EM QUEIMADA

Invasão do Arraial – Lampião Protege um Sargento – Matança de “Macacos” – Conversa Secreta Antes de Partir.

APESAR da união existente entre os componentes do bando, muitas coisas que se passavam entre nós, até hoje, ainda são um verdadeiro mistério para mim. Lampião não gostava de nos deixar cientes de tudo que fazia ou pretendia fazer. A subsistência do bando era um desses mistérios. É verdade que eu não desconhecia o objetivo empregado, o que eu não sabia era como o plano era traçado, pois na maioria das vezes eu não tinha oportunidade nem de ver os intermediários.

Não era sempre que Lampião obrigava o bando a praticar a pilhagem nos povoados. Ele gostava mais de mandar pedir aos fazendeiros uma certa quantia de dinheiro, o que raramente era recusado. A quantia pedida variava sempre de cinco a vinte contos de réis, conforme as posses da vítima.

Quando havia recusa, o fazendeiro pagava caro a “ousadia”. E se Lampião não conseguisse chegar à fazenda, vingava-se nos empregados, era cortando dedos e até as mãos dos infelizes. Se conseguisse entrar na fazenda, liquidava os que lá estivessem, salvo as mulheres e as crianças.

O que me intrigava, porém, era que certos fazendeiros não davam dinheiro e viviam em com Lampião. Em certas fazendas, nós nem chegávamos perto. Só ele mesmo ia lá. A memória, porém, falha-me agora para recordar os nomes desses coiteiros, e eu creio que isso suceda pela pouca atenção que na época eu dava ao fato.

A “CARIDADE” DE LAMPIÃO

DINHEIRO, no bando, só entrava pelas mãos de Lampião, e ele então dava aos “cabras” o que julgava conveniente. Não guardava dinheiro em banco, e o que tinha estava todo em dois bornais que não largava nem para dormir. O dinheiro e as armas estavam sempre com ele. Eram pacotes de notas de conto de réis e que muitas vezes ultrapassavam a casa dos duzentos contos! Quando Maria Bonita entrou no bando, dada a confiança que ele depositava nela, permitia-lhe carregar parte do “tesouro”. As notas menores, de cem e duzentos mil réis, ele as trazia nos enormes bolsos das calças e do dólmã. Quando encontrava um pobre coitado passando necessidades, gostava de meter a mão no bolso e, sem contar, trazê-la cheia de notas pequenas e entrega-las ao infeliz. Fazia isso ostensivamente, na frente de todos, e gostava que o tivessem na conta de caridoso. Quando qualquer um de nós precisava de dinheiro, não se recusava a dar, salvo se a importância fosse exagerada. Mas a verdade é que nunca houve briga por causa disso entre os componentes do bando, visto que o dinheiro sempre foi abundante para nós.

Mas Lampião não era tão protetor dos pobres assim. Às vezes gostava de fazer a caridade à custa dos outros. Se entrava num povoado e não simpatizava com certo negociante, abria as portas a casa e mandava os pobres invadi-la e saqueá-la.

A verdade é que Lampião tinha muita coisa de misterioso e, conquanto naquela época isso não me importasse, hoje me intriga. Houve um fato que até agora não pude explicar direito a mim mesmo. Foi quando entramos em Queimada, no município baiano de Bonfim.

Queimada estava fácil para ser tomada por nós, pois, como sempre, chegamos de surpresa. O rio do Peixe, que banha a localidade, estava na enchente, razão pela qual tivemos de atravessá-lo de canoa, e entramos na cidade sem o menor embaraço. Ninguém tentou deter-nos, e a população, ao ver-nos, fugia assustada e trancava-se em casa.

TOMADA DO QUARTEL

FOMOS diretamente ao quartel, onde surpreendemos um soldado cochilando numa cadeira e um sargento deitado na rede. Com o barulho que fizemos, o sargento deu um pulo da rede e, vendo Lampião, bateu marcialmente os calcanhares e disse, mais teso do que jau: - “Pronto, seu Capitão. Entrego o serviço sem alteração”. Achei graça na palhaçada, mas Lampião não riu e mandou-nos logo segurar o soldado e desarmá-lo. O sargento, mesmo se ele mandasse tirar as armas, não era preciso, pois estava de pijama. Mas o fato é que ele não mandou sequer prendê-lo, e isso começou a intrigar-me.

Calmamente perguntou ao sargento quantos soldados havia no arraial.

- São oito, contando com aquele ali, disse, apontando para o que estava sendo vigiado por nós.

- E onde estão os outros sete? Quis saber Virgulino.

- Basta dar três apitos de alarma e aparecem todos aqui, seu Capitão, respondeu o sargento.

Lampião mandou que ele apitasse, e em poucos minutos estávamos com os oito soldados trancafiados no xadrez do arraial. Lampião tirou os presos da cadeia e mandou que eles vigiassem os soldados. Aliás, se não me engano, na cadeia só havia dois presos.

Lampião mandou que todos apanhássemos bastante armamento e munição e ordenou ao sargento que fosse trocar de roupa e o encontrasse numa determinada casa. Durante todo esse tempo, a população não veio à rua, preferindo permanecer trancada em casa.

Quando o sargento voltou, eu pensei que havia chegado a hora de mata-lo, pois ele nada mais era do que um “macaco” graduado. Qual não foi a minha surpresa, porém, ao ver o sargento fardado entre nós e Lampião ainda entregar-lhe um rifle, dizendo: “Pra você não andar desarmado por ai...”

CARNIFICINA

A ESSA altura eu e os demais “cabras” já estávamos sem entender nada, com aquele tratamento tão cortês... À tardinha, nós bebíamos alegremente nessa casa, quando Lampião disse que ia à cadeia, mandando que Luiz Pedro e José Baiano o seguissem. Lá se foram os três, e dentro de uns dez minutos começamos a ouvir tiros. Corri à janela e, vendo que vinham da cadeia, fui para a rua e fiquei observando à distância. Na cadeia, Lampião punha um por um os soldados na rua, a pontapé e bofetão, e, assim que cruzavam a porta, Luiz Pedro e José Baiano matavam-nos a tiros de fuzil. Os pobres soldados saíam de braços para o ar, escorraçados por Lampião, e levavam bala na cabeça e no peito. Quando os oito estavam mortos na porta da cadeia, Lampião saiu e ordenou que Luiz Pedro e José Baiano providenciasse o enterro, voltando ao local onde nos encontrávamos à sua espera.

Quando cruzou a porta, um dos “cabras” disse: “Nós já íamos, lá, capitão. Ouvimos tantos tiros...” Lampião respondeu, zangado: “Matei todos os ‘macacos’ por causa de um deles, um negro sem-vergonha. Negro nunca foi gente! Negro é a imagem do diabo! Me disse umas grosserias e mandei matar a “macacada” toda...”

O que o soldado de cor lhe dissera ninguém soube jamais. O sargento ouviu tudo sem dizer nada, e é preciso que se diga que ele era mulato escuro... Não gostei da cara do sargento, e resolvi saber até onde ia a “proteção” de Lampião. Fingi-me aborrecido e, agarrando o sargento pelo braço, falei para todos: “Já que os soldados morreram, agora é a hora do comandante...”

Lampião, rápido, tirou o sargento das minhas mãos e gritou: “Quem tocar neste sargento eu arrebento os miolos! Se vocês não sabem de nada, não se metam a falar...” Compreendi que qualquer tentativa para liquidar o sargento poderia ser o meu fim. O homem era mesmo protegido dele, e até hoje não descobri por quê. Antes do anoitecer saímos do povoado e Lampião conversou bastante com o sargento na hora da partida. Mas conversaram longe de nós, e ninguém pôde ouvir nada.

Próximo capítulo: Ferrugem Mata Gavião

CONTINUA...

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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