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quinta-feira, 18 de junho de 2015

O MITO E O MÍSTICO EM LAMPIÃO

Por Rangel Alves da Costa*

O mito e o místico numa só pessoa. O lendário e o temente num único ser humano. O emblemático e o espiritualizado no mesmo cidadão. Assim era Virgulino da Silva, assim era Lampião, mas sempre considerando que aquele se contrapôs a este em muitos aspectos, e este clamou para ser o outro em muitas situações. E assim por que em muitos momentos Lampião quis ser apenas Virgulino. E também em muitos instantes este se despiu de muitos sentimentos para dar impulso ao Lampião.

Poucos foram os viventes que alcançaram tanto a mítica como o místico. Não é qualquer um que ao longo dos anos – e muito tempo depois de sua morte - vai aumentando o reconhecimento e a admiração ao redor de seu nome, ainda que o conceito de alguns seja pela negação de sua conduta. Igualmente difícil ao ser humano ter construído sua história em meio a lutas sangrentas e mais tarde ter valorizado seu lado que não foi desumanizado pelos ódios derramados a cada passo. E Lampião, que se aceite ou não, transformou-se num mito, cujo elemento mítico ou místico, de cunho religioso, esteve presente no Virgulino até o último sopro de vida.

Contudo, urge que se esboce uma ligeira noção acerca do que os livros definem como mito e como místico. O mito é uma representação simbólica produzida pela mente humana, é a concepção de sobrenatural ou de força superior destinada ao endeusamento ou à heroicização. É algo visto como fora da realidade, que é de difícil explicação racional. Pode surgir de fatos ou acontecimentos históricos ou de valores culturais enraizados no povo e transformados em lenda, em heroísmo, em divinização. O passar dos anos tem o dom de aprofundar mais ainda a concepção mítica do herói mentalmente firmado.

Por sua vez, o termo místico tem um sentido religioso, de espiritualidade e devotamento, de acatamento e prática de determinados ritos de fé. O ser místico é aquele levado ao misticismo, cujas crenças pessoais acerca dos poderes divinos o tornam adepto de determinados preceitos religiosos. O místico geralmente é um ser contemplativo, de robusta devoção, demasiado crente nas forças e poderes divinos, alguém que sempre invoca proteção superior. E os relatos demonstram Virgulino Ferreira da Silva como um homem profundamente religioso e com rituais próprios de veneração a Deus, santos e anjos.

No caso específico do cangaceiro de Vila Bela, o mito e o místico possuem fronteiras precisas, limites reconhecíveis. O mito está em Lampião, no maior dos cangaceiros entre todos já existentes nas terras nordestinas, no líder hábil e inteligente, no estrategista que fazia de um rochedo ou de tufo de mato um campo impenetrável de guerra. Mito este criado a partir do desempenho do bando sob sua liderança, do poder de arregimentação, do círculo de poderosas amizades que soube tecer, do seu reconhecimento e até veneração por todo o mundo sertanejo e citadino.

Mito também pela história que construiu. Ora, ninguém se torna fenômeno por um fato ou outro na sua passagem terrena, mas sim pelo percurso de luta, bravura, destemor, enfrentamento dos poderes então constituídos. Ou será negada a Lampião sua valentia na luta contra a opressão sertaneja que chamou para si? Será que vale a pena desmitificar ou simplesmente desconhecer a história de um homem de pouco estudo, de família humilde, arribado de casa desde ainda moço, e que construiu um império de bravura ao seu redor? Quantos sertanejos fizeram, a partir da caatinga, estremecer as estruturas do poder coronelista, patriarcal, impiedoso? E foi tão perseguido porque representava a força do sertanejo ante a tirania do Estado. Assim foi sendo construído o mito Lampião.

Ao lado do mito, o hoje reconhecido misticismo no ser humano batizado como Virgulino Ferreira da Silva, no homem lutando sobre a terra e temendo e devotamente se apegando às forças do céu. Levava consigo armas, munição, instrumentos de guerra. Mas também rosários, imagens sacras, instrumentos de devoção. Quando as balas silenciavam e os gritos de horror se calavam, quando o tempo de guerra fingia um tempo de paz, então o Capitão se voltava para si mesmo, para reacender as chamas de fé que levava consigo. Meditava sobre sua situação de vida, intimamente se afligia, mas procurava na oração e nos rogos aos seres celestiais o fortalecimento espiritual e a proteção desejada.

Os relatos de hoje revelam o fervor religioso de Virgulino, o seu máximo respeito às coisas sagradas, o seu profundo senso de devoção. Rezava todos os dias e levava consigo algumas orações, principalmente para manter o corpo fechado. Tinha devoção especial por Padre Cícero, a quem tinha como verdadeiro santo nordestino. Não admitia que cangaceiro de seu bando menosprezasse as coisas sagradas e tinha predileção especial por Santa Luzia e São Jorge. Uma para dar esperança de visão ao seu olho sem luz, e o outro por ser guerreiro.

Parece ser contraditória tanta religiosidade naquele que pouco tempo teve para viver senão para guerrear. Mas assim aconteceu. E coisas assim somente acontecem com quem um dia nasceu para ser mito.


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