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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

VEJAM COMO FOI A PRIMEIRA VISITA DE LAMPIÃO A POÇO REDONDO, POVOADO DE PORTO DA FOLHA-SE. - Parte 03 - FIM


Não estou certo disso, Virgulino. Você precisa parar com essa loucura, precisa tomar novo rumo na vida.

– Tá bem, seu pade. Agora, já qui o sinhô me dá esse conseio, eu lhe peço: deixe eu assisti a missa... É um pidido qui lhe faço...

O coração do padre Artur amoleceu.

– Vá. Pode ir. Só não pode é entrar armado na igreja.

Na sala ao lado, dona Marieta escutava a conversa, apegando-se a todos os santos que conhecia para que tudo terminasse bem. Ao perceber que não havia mais perigo, dados os termos do acordo que acabava de ouvir, correu até a casa da vizinha para contar a novidade. Assegurou à comadre que Lampião era um homem muito educado.

Num instante, todo mundo sabia da notícia: Lampião estava no Poço e ia assistir à missa. Quem pensou em se esconder mudou de ideia ao ver o padre Artur sair da casa de China são e salvo, e atrás dele os ilustres visitantes, descontraídos, afáveis, palitando os dentes.

Começava a chegar gente das redondezas para a missa – gente a pé, a cavalo, em carros de bois. Ao ouvirem a novidade, a reação de todos era a mesma: assombro, medo, curiosidade.

Aos poucos, o povo foi se aproximando, olhando de longe o movimento na casa de China. João Cirilo e Miquéias estavam bebendo cachaça com os cangaceiros, cheios de intimidades. Mandaram chamar os amigos, garantindo que Lampião era amigo do Padre Autur, ninguém precisava ter medo. Uns meninos passaram na frente da bodega e Lampião jogou moedas para eles. Quando os moleques chegaram em casa com aquele dinheiro todo, cessaram de vez os receios. “Eta home danado de bom é Lampião” – diziam.

Na hora da missa, a igrejinha estava lotada. Mesmo assim, quando Lampião chegou com seus homens, as pessoas deram um jeito, se espremeram, coube todo mundo. Lá fora ficou apenas um cabra, de vigia. Mas Lampião não cumpriu a promessa feita ao padre Artur: estavam todos armados e equipados.

Durante a celebração, ninguém prestou atenção ao padre. Mesmo os que estavam na frente davam sempre um jeito de se virar de vez em quando, a pretexto de qualquer coisa, para dar uma espiada nos cangaceiros. Lampião sabia rezar, ajoelhava-se nas horas certas, sentava-se ou ficava de pé nos momentos adequados, respondia até aos “Dominus vobiscum” – coisas que no Poço só dona Marieta sabia.

Depois da missa, os cabras dirigiram-se à casa de China, e o povo, já familiarizado com eles, foi atrás, formando-se um ajuntamento em frente à bodega. China não conseguia dar conta do movimento. Gente que nunca comprou nada em sua venda, de repente virou freguês.

O padre Artur estava preocupado. Desde o amanhecer, os cabras estavam bebendo. Cangaceiro é cangaceiro, ninguém se iluda. Tinha de mandar Lampião embora, antes que acontecesse uma desgraça. Resolveu deixar os batizados e casamentos para mais tarde. Depois de tirar os paramentos, foi bater na casa de China. Ao avistá-lo, Lampião foi ao seu encontro:

– Mais seu vigaro, veja o sinhô qui dia feliz! Só tá fartano ũa sofona! Cadê esse tá de Agenô Pitomba?

– Pois é, Virgulino, é justamente sobre isso que vim lhe falar. Você me disse que estava de passagem...

Lampião coçou o queixo, embaraçado. Estava gostando daquele lugar. Depois dos batizados e casamentos ia ter festa. João Cirilo tinha dito que à noite ia ter um baile de arromba, o sanfoneiro era Agenor Pitomba. E outra coisa: nunca tinha visto tanta mulher bonita. Tudo doidinha por folia, que mulher é bicho danado pra gostar de cangaceiro. Mas, que fazer? Não se desrespeita um padre, pois ai do vivente que for excomungado por um padre, vai direto pras profundas dos infernos.

– Pade Artur, o qui eu prometi ao sinhô eu cumpro. – E, dizendo isso, alteou a voz: – Mininos, venham se dispidi e pidi a bença ao pade! Zequié, venha cá. Você tamém, Virgino. Cadê o resto?

O Capitão levou o padre até os outros cangaceiros, que estavam se divertindo entre o povo, olhando de longe para as mocinhas, como quem não quer nada. No alpendre de uma casa estavam as filhas de Antônio Marques e de Lé Soares. Uma das filhas de Lé não tirava os olhos do cangaceiro Mariano. E o cangaceiro também estava de olho nela. Naquele instante Mariano estava conversando com um vaqueiro, perguntando quais eram os homens ricos do povoado, além de Julião, um velho que era proprietário de muitas terras, porém sovina como o diabo. Lampião apresentou o companheiro:

– Este aqui, seu pade, é Mariano, cabra bom, anda cumigo fais munto tempo, é fio dum lugá chamado Afogados da Ingazeira, im Pernambuco, lá pras banda do Pajeú, o mermo lugá onde nasceu Antonho Silvino, de quem na certa o sinhô já viu falá. Se dispeça do pade, Mariano.

O próximo a despedir-se foi um cangaceiro avermelhado, de cabelo claro, feições firmes:

– Esse aí é Luís Pedo, seu vigaro. Ele num gosta de apilido. É cuma se fosse um irmão meu. É tamém de Pernambuco. E aquele ali é da Quixaba, se chamava-se Anjo Roque e agora é Labareda, derna de onte qui tá cum nóis. Aquele outo é Zé Furtaleza. Os outos dois são primo, é Curisco e Arvoredo. E agora venha vê um segipano. Dexei ele pro fim de proposto. É o premero cabra de Segipe a me acumpanhá. Nóis chama ele de Vorta Seca.

O padre Artur ficou chocado com o que via. O cangaceiro sergipano não passava de um menino, um mulatinho de olhos vivos e jeito brincalhão que nem fios de barba tinha ainda. O vigário perguntou a idade dele.

– Onze ano – respondeu o garoto.

– Deus misericordioso!... – balbuciou o velho padre, condoído com tão terrível desgraça. – Uma criança...

– Criança!? – contrapôs Virgulino. – Nun se ingane não, pade Artu. Esse muleque, com essa carinha de besta, tem corage de fazê coisa qui até o diabo duvida! Nasceu pra sê cangacero!

O Capitão levantou o rosto, consultando a posição do Sol, e decidiu que era hora de tomar a estrada. Pegou o apito que levava amarrado com uma tira de couro à cinta do cantil e soprou forte duas vezes, chamando os cabras.

– Vou simbora, pade Artu. Até mais vê. Adiscurpe os mau jeito.

– Deus o leve, Virgulino. Pense no que eu lhe falei. Arranje um jeito de largar essa vida. Procure o coronel João Maria, da Serra Negra. Ou o coronel Antônio Caixeiro, da Borda da Mata. Diga que falou comigo. Eles podem lhe ajudar.

– Munto obrigado, seu pade.

Enquanto Lampião ia falar com China, o padre Artur Passos procurou Volta Seca, que já estava montado, junto com os companheiros. Estava sinceramente preocupado com o destino daquele pobre menino. Segurando as rédeas do cavalo do garoto cangaceiro, o padre perguntou:

– Meu filho, por que você deixou sua família, para seguir essa vida?

– Eu nun tenho famia. Meu pai agora é Lampião.

– Você tem certeza de que é essa a vida que quer ter?

Embora a pergunta fosse feita a Volta Seca, quem respondeu foi Mariano, que estava perto, escutando a conversa:

– Ninguém é cangacero purqui gosta, seu vigaro. Nóis nun tem outo jeito não. A nossa vida é esta.

– E vocês não têm medo das forças do governo?

– Medo de macaco? Nóis? Os macaco é qui se pela de medo da gente, home!

A conversa de Lampião com China foi reservada. O Capitão estava interessado em coisas práticas. Queria saber se Aracaju ficava longe e se em Itabaiana havia muitos macacos.

– Capitão, se o sinhô tá pensano im ir pro Aracaju, pode mudá de ideia, purque fica nos confim do mundo. Tabaiana é a merma coisa. Lá quem manda é o coroné Dorinha, e a cidade tem mais sordado do qui gente!

– Seu China, quem foi qui diche qui eu quero ir pra Aracaju? Daqui eu vou é pra Serra Nega! Agora, mudano de assunto, eu quero qui o sinhô me conte aí a histora de uma butija qui o sinhô achou.

China tomou um susto. Até isso tinham contado a Lampião?!

– Butija, seu Capitão? – perguntou China, se fazendo de desentendido.

– Me conte a histora da butija, seu China – insistiu o cangaceiro. – O sinhô achou ou nun achou ũa butija?

– Ah, sim, a butija... Já lhe falaro disso pro sinhô, é? Foi coisa sem importança, Capitão. Eu tive um sonho, ũa arma do outo mundo dizeno onde tinha um dinhero interrado nũa casa véia.

– E tinha dinhero mermo, seu China? Quanto?

– Ũa bobage, Capitão. Era ũas mueda do tempo antigo, qui nun circulava mais, nun valia de nada...

– Foi isso mermo qui me dichero, seu China. Eu tava só quereno uvi a histora de sua boca. E agora vou simbora. Diga a dona Marieta qui adiscurpe o trabaio qui nóis deu a ela. Munto obrigado pur tudo.

– Eu é qui agardeço, Capitão.

Saindo do interior da casa, Lampião soprou o apito novamente e dirigiu-se ao cavalo. Aumentou o alvoroço. As pessoas esticavam-se na ponta dos pés para ver mais uma vez o Capitão Virgulino, que estava indo embora. As moças apinhavam-se nas portas e janelas. Dizia-se que Volta Seca tinha dado um de seus muitos anéis a Mocinha de Dedé, e ela agora mostrava o presente às amigas, que morriam de inveja.

China veio falar de novo com Lampião, que já considerava seu amigo:

– Capitão, gostei munto do sinhô. Se argum dia vosmicê vinhé de novo pur aqui, a casa tá as suas orde. Se eu nun tivé aqui, tou no terreno. Tenho ũas terrinha num lugá chamado Recurso, logo aí na saída da rua.

– Eu já sabia, seu China. Mais é assim qui se fala. Tou veno qui o sinhô é um cabra macho. Cum certeza vou vortá outas veis aqui. Até mais vê!

O Rei do Cangaço, imponente em sua montaria, acenou para o povo de Poço Redondo. Os cangaceiros esporearam os cavalos, fazendo cabriolas, mostrando destreza, e dispararam a galope pela estrada que ia para a Serra Negra. O povo ficou olhando o bando se afastar levantando uma nuvem de poeira.

Todos estavam maravilhados com os modos gentis do Capitão cangaceiro. A partir dali os mais velhos teriam muito que contar, muito assunto para os encontros com os amigos. E os mais novos teriam razões para sonhar de olhos abertos, imaginando novas perspectivas em suas vidas. Devia ser maravilhoso viver como cangaceiro, ficar famoso, ter dinheiro, ter mulheres, ser temido e adulado aonde chegasse, podendo fazer o que quisesse na vida, como Volta Seca, que aos onze anos de idade já era homem!...

Em vez de ir para a Serra Negra, como dera a entender ao sair de Poço Redondo, logo adiante o astuto cangaceiro mudou de rumo, pegando a estrada de Monte Alegre.”

* * *
O texto acima, entre aspas, é reprodução literal do capítulo 95 de Lampião – a Raposa das Caatingas. No capítulo 174, faço considerações acerca das circunstâncias que levaram Poço Redondo a ser identificada como “A Capital do Cangaço”.

Fonte: facebook

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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