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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

PESQUISADOR ANTONIO CORRÊA SOBRINHO FALA SOBRE OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA


Amigos,

Quatro anos antes da publicação do livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, o jornal “O Estado de S. Paulo”, na sua edição de 19 de janeiro de 1898, trouxe a lume um dos trechos mais interessantes da magistral obra sobre a Guerra de Canudos, que eu trago abaixo, que diz respeito ao capítulo III da parte referente ao homem: o sertanejo. sem dúvida, uma das mais ricas descrições deste tipo brasileiro.

Porém, o que me levou a trazer aos amigos o referido texto, foi o seu caráter inédito, pelo menos para mim, que só agora dele tomei conhecimento, novidade que vejo no fato de este artigo do jornal paulista não corresponder ipsis litteris, ou seja, exatamente ao que consta do “Os Sertões”, uma vez que foram muitas as alterações nas palavras, frases, na organização dos parágrafos, enfim, feitas por Euclides no seu processo de formulação da sua grande obra. Significados e sentidos outros sobre o nosso sertanejo, portanto, foram lançados ao esquecimento, mas que, agora, graças aos novos tempos, podemos saber de Euclides coisas mais. 


EXCERTO DE UM LIVRO INÉDITO

... Assim, o sertanejo é um forte, cuja energia contrasta o raquitismo exaustivo dos mestiços enervados do litoral. Surge naquelas paragens com a feição firmemente acentuada de um lidador enérgico.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Não tem a plástica impecável, o desempeno, as linhas elegantes dos lutadores antigos. É sem elegância e desengonçado. O andar sem firmeza, sem o aprumo dos organismos vigorosos, é quase gingante, e sinuoso, aparentando a translação de membros desarticulados; e a postura, normalmente indolente, semi-curvada, manifesta uma displicência perene.

A pé, quando parado, recosta-se sempre ao primeiro móvel ou parede que encontra; a cavalo, quando sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo, novamente, sobre um dos estribos, descansando sobre a sela.

Marchando, ainda quando a passo acelerado, não traça nunca uma trajetória retilínea, avança vertiginosamente, num bambolear persistente; e se estaca, para enrolar um cigarro ou travar longa conversa com um amigo, põe-se de cócoras quase sempre, atravessado largo tempo numa posição de equilíbrio instável, suportando apenas pelos dedos dos pés, sentado por assim dizer sobre os calcanhares, numa simplicidade adorável e ridícula a um tempo.

Mas toda esta aparência de cansaço e esse todo achamboado, iludem.

Naquela organização, normalmente preguiçosa e como que combalida, opera-se, num segundo, uma transfiguração completa, ao sobrevir qualquer incidente que lhe exija o desencadear repentino da energia adormida apenas. O homem, de golpe, transmuda-se; empertiga-se soberano de força e de audácia; a cabeça firma-se enérgica sobre os ombros possantes, iluminada por um olhar atrevido; corrigem-se, prestes, todos os defeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e, da figura deprimida do tabaréu desgracioso, irrompe bruscamente a feição dominadora de um tição bronzeado e potente, num desdobramento surpreendedor de força e agilidade extraordinários.

É impossível imaginar-se um cavaleiro mais descuidado e despretensioso – sem posição, pernas coladas no bojo do animal, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Mas se uma res alevantada envereda esquiva pela caatinga garranchenta eis o que se transmuda – violento e ágil – cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como uma flecha, atufando-se velozmente no seio trançado das juremas.

Não há contê-lo, então, no ímpeto... Que se lhe antolhem em frente os sulcos das quebras, acervos monstruosos de pedras, moitas impenetráveis de espinhos ou os barrancos em caixão dos rios correntosos –nada lhe impede encalçar o caruara desgarrado porque ‘por onde passa o boi passa o vaqueiro com seu cavalo...’

Colado ao dorso do animal, confundindo-se com ele sob a pressão das pernas vigorosas, realiza então a criação bizarra de um centauro bronco e grosseiro – emergindo inopinadamente nas clareiras, mergulhando mais adiante nas macegas altas, saltando valados e ipueiras, vingando os comores desnudos, rompendo, célere, os mocambos trançados, precipitando-se a toda a brida nos planos dos tabuleiros... A sua compleição robusta ostenta-se então em toda a plenitude: como que é o cavaleiro resoluto quem empresta energia ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o vigorosamente nas esporas, arremessando-o para a frente, escanchado no rastro do novilho desgarrado, aqui curvando-se agilmente sob uma galhada que roça quase pela sela, além desmontando-se de golpe, sem largar as crinas do animal, para evitar o combate de um tronco apercebido no último momento e galgando logo depois o selim – galopando sempre através de todos os obstáculos, e sopesando à mão direita sem o perder nunca, sem o deixar no emaranhado dos cipoais, o longo ferrão de ponta de ferro, que por si só constituiria, noutras mãos, sério tropeço à travessia.

E terminada a refrega pela volta ao rebanho da res tresmalhada, ei-lo de novo, acurvado sobre a sela, indolente e desgracioso, oscilando à feição do passo do animal, como que sob a pressão de um aniquilamento absoluto, numa aparência falsa de inválido fatigado.

O gaúcho do sul, ao vê-lo nesse momento não o olharia sequer.

O vaqueiro do norte é a sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos dificilmente se encontraram pontos de contato entre os dois.

O primeiro, filho dos plainos dilatados, afeiçoado às correrias fáceis nos pampas, adaptado a uma natureza carinhosa que deslumbra e encanta, reveste-se naturalmente de uma feição cavalheiresca e mais atraente. A luta pela existência não assume ante ele o caráter selvagem dos sertões do norte. Não conhece os horrores das secas e os combates cruentos com um solo árido e exsicado; não o entristecem as cenas quase anuais e periódicas da devastação e da miséria, o quadro pavoroso da absoluta pobreza da terra calcinada, exaurida pela adustão dos seus bravios do equador e não tem, por isto, no meio das horas remansadas da felicidade, a preocupação do futuro que é sempre uma ameaça, tornando instável sempre as fortunas mais sólidas ante a fatalidade incoercível dos elementos desencadeados. Desperta para a vida amparado pela natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela vida – aventureiro, jovial, valente e fanfarrão – despreocupado quase, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas domando distâncias no seio dilatado dos pampas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos, o pala inseparável, como uma flâmula festivamente agitada.


As suas vestes são um traje de festa ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As largas bombachas, adrede dispostas para a fácil movimentação sobre o cavalo no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se dilaceram nos espinhos duríssimos das caatingas; o pala vistoso jamais lhe fica perdido, embaraçado na galhada caótica das árvores torturadas e secas.

O cavalo, sócio inseparável de uma existência algo romanesca, é quase um objeto de luxo. O arreamento complicado e espetaculoso demonstra. O gaúcho andrajoso sobre um pingo perfeitamente equipado, está decente, está corretíssimo, pode atravessar sem vexames os povoados em festa.

O vaqueiro do norte criou-se em condições opostas, numa intermitência, raro perturbado de horas felizes e horas amarguradas, de abastança e misérias, tendo sobre a fronte, como uma ameaça perene, o sol, arrastando de envolta na sucessão periódica das estações períodos sucessivos de devastações e desgraças. Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes e fez-se homem repentinamente por assim dizer, quase sem ser criança. Assaltou-o logo, intercalando-lhe agruras nas horas festiva da infância, o espantalho das secas nos sertões candentes e cedo encarou a existência pela sua face tormentosa, como um condenado à vida. E considerando-a assim, compreendeu-se envolvido num combate sem tréguas, exigindo imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, atilado, resignado e prático.

Aprestou-se cedo para a luta.

O seu aspecto recorda vagamente, à primeira vista, o de um guerreiro antigo.

As vestes são uma armadura.

Envolto no gibão de couro, de bode ou vaqueta, curtido – apertado no colete impenetrável, calçando as perneiras de couro resistente muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas e resguardados os pés e as mãos pelos guarda-pés e luvas de pele de veado – é como que a forma evanescente de um campeador medieval, desgarrado nos tempos atuais.

Essa armadura, porém, não tem cintilações, não fulgura, ferida pelo sol – é fosca e poenta – envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias...

A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada, sem os apetrechos luxuosos daquele; são-lhe acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente cobrindo as ancas do animal, peitoral e joelheira de sola.

Esta vestidura rude de homem e do cavalo talha-se à feição do meio. Faltam-lhes a amplitude dos planos extensos e, em troca, cabem-lhe todos os assaltos de uma natureza agressiva e bárbara. Vestidos de outo modo, não romperiam, incólumes, as caatingas trançadas.

Nada mais monótono e feio, entretanto, do que essa vestimenta de uma só cor, o pardo avermelhado do couro curtido, sem uma variante, sem uma lista sequer, diversamente colorida.

Apenas, de longe em longe, nas raras encamisadas em que nos descantes das violas, o matuto olvida as horas fatigadas, surge uma novidade – um colete vistoso de pele de gato do mato ou suçuarana, com o pelo voltado para fora, ou uma bromélia rubra e alegre, fincada no chapéu de couro.

Isto, porém, é um incidente passageiro e raro.

Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde logo o desgarre folgazão – largamente expandido nos sapateados céleres em que o som seco das alpercatas sobre o chão quebra-se no retinir argentino das esporas, acompanhando a cadência monótona das violas – e cabe a postura habitual, achamboado, indolente, deselegante, anguloso e torto, num falso manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.

Ora, nada mais explicável do que este contraste permanente entre extremas manifestações de força e atividade e longos intervalos de apatia.

Pondo mesmo de lado a ação psicológica dos agentes físicos que observamos, o sertanejo do norte teve uma árdua aprendizagem de reveses e afez-se cedo a encontra-los de chofre e a reagir, de pronto. Atravessa a existência entre ciladas, surpresas bruscas de uma natureza incompreensível – e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte: preparando-se sempre para um combate que não vence e no qual não se deixa vencer; passando da máxima quietude à máxima agitação, da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata como um raio pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas.

Reflete, nestas aparências exteriores, que se contrabatem duramente, a própria natureza que o rodeia, passiva ante o jogo desordenado dos elementos, passando, quase sem transição sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância para a penúria dos desertos desnudos e ardentes, ao reverberar dos estios abrasados.

É inconstante como ela e é natural que o seja; viver é adaptar-se.

O gaúcho aventuroso e valente é, certo, admirável numa carga guerreira, precipitando-se, ao ressoar estridulo dos clarins vibrantes, pelos pampas, com o conto da lança enristada firma no estribo – atufando-se loucamente nos entreveros, desaparecendo com um brado de entusiasmo na voragem do combate de onde espadanam cintilações de espadas, transmudando o cavalo num projetil, e rompendo quadrados e levando de rojo o adversário ou caindo prestes na luta, em que entra numa despreocupação soberana pela vida.

O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais resistente, é mais perigoso, é mais forte. Raro assume essa feição romanesca e gloriosa; procura o adversário com o propósito formado de o destruir, seja como for; está afeiçoado aos combates demorados, sem expansões entusiásticas; a vida é-lhe uma conquista arduamente realizada numa faina incessante, guarda-a como um capital precioso; não esperdiça a mais leve vibração nervosa sem a segurança do resultado; calcula friamente o pugilato e ao riscar da faca não dá um golpe em falso; ao apontar a lazarina longa ou o trabuco truculento, dorme na pontaria. 

Se, abortado o choque impetuoso, o inimigo enterreirado não recua, o gaúcho é um vencido fragílimo nas aperturas de uma situação inferior. O jagunço jamais se considera vencido; cede o terreno, mas não a vitória.

Fonte: facebook

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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