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segunda-feira, 18 de julho de 2016

ABANDONOS E ABANDONADOS

*Rangel Alves da Costa

Nada possui a eternidade desejada nem a serventia que se almeja, pois tudo sempre limitado ao uso e ao poder de permanência. A verdade é que as coisas envelhecem, se tornam frágeis, viram escombros, desaparecem. Assim com as fortalezas, com as muralhas de guerra, com os casarões e os casebres, com a construção forte e frágil. Contudo, assim não deveria acontecer com a pessoa humana, quando desprezada e relegada ao fim antecipado.

Mas também com relação às coisas, grandes ou pequenas, que tantas serventias tiveram, mas que, pelos exaurimentos do tempo, foram sendo vistas como inúteis, desnecessárias, até desprezíveis. Uma roupa velha de trabalho, por exemplo, só é deixada num canto quando seus rasgões já não permitem uso. Ainda assim fica guardada como recordação e agradecimento pela serventia na luta. Mas outros preferem simplesmente descartar tudo aquilo que não esteja sendo de proveito imediato.

Daí os tantos abandonos e abandonados. Tanta coisa, tanta gente, tudo assim pela vida. E o esquecimento e o desamparo sempre pelo desinteresse, por que em nada afeta a vida do omisso em si, por que tanto faz como tanto fez que assim acontecesse ou não. O que não tem serventia não mais desperta qualquer cuidado, o que não traga retorno não merece ser valorizado. Tudo tratado como tralha, como traste velho, como resto imprestável, como nada.

Filhos abandonam pais, pais abandonam filhos. Sempre uma tristeza quando se noticia que filhos, na tentativa de se verem livres de seus já idosos genitores, acabam colocando-os em asilos e depois fazem de conta que sequer existem. Sempre uma angústia danada ao saber que pais simplesmente jogam seus pequeninos à sorte do mundo, em busca de esmolas ou pequenos furtos, e ainda os castiga quando o trabalho do dia não é lucrativo. Assim por que abandono não é só distanciamento, mas a negligência com a vida.

Costumeiramente, os abandonos familiares levam a grande número de abandonados no mundo. As esquinas, as marquises e as calçadas e vielas estão cheias destes relegados ao desprezo. Primeiro a negação familiar, depois a deprimente repulsa social. Meninos e meninas perambulando pelo mundo, dormindo debaixo da lua, entregues à sorte dos desprezados, e tantas vezes feridos na alma, no corpo, na esperança. E quase sempre usados para satisfação dos mais perversos e pervertidos instintos.


Tudo o que é abandonado vai corroendo antes do tempo. Mesmo que nada esteja imune ao perecimento, pois próprio da existência um começo e um fim, há uma dolorosa antecipação da ruína toda vez que o cuidado esmorece. Quem ama cuida, quem gosta preserva, quem sente abnegação busca conservar a todo custo. As preciosas relíquias surgem assim, pela conservação do que se tem como valor ao coração. Diferente ocorre com a desvalorização pelo envelhecimento, pelo desuso, pelo simples abandono.

Que se tenha em mente o velho carro-de-bois que depois de tanto auxílio e serventia agora resta esquecido debaixo de um pé de pau. O jumento que foi esquecido e relegado às distâncias depois que a motocicleta lhe tomou o lugar de montaria e transporte. O velho candeeiro deixado num canto dos fundos da casa pelo desuso após a instalação do bico de luz, para depois ser jogado ao lixo. A fiel companheira de muitos anos de união, inseparável na luta e no convívio, que de repente é rejeitada pelo ilusório surgimento de uma novinha.

Que se tenha ainda em mente o velho livro e o livro mais velho ainda. O primeiro, tido como um livro qualquer, de tanto esquecido e abandonado vai se enchendo de traças, sendo corroído folha a folha, até virar pó. Mas o segundo, pelo fato de ser especialmente admirado, é sempre cuidado, limpo, relido, folheado, conservado com esmero e carinho. Em casos assim, observa-se que o zelo assume função primordial nas permanências e permite uma existência maior a tudo aquilo que não é jogado aos porões do esquecimento.

As pessoas também envelhecem mais cedo e vão se exaurindo pelas situações de abandono. Um abandono chamado fome, pobreza, miséria. Ou quando vão se desprezando por conta própria. Um desprezo íntimo chamado vícios, drogas, permissividades, abusos de todos os tipos. Há gente que se abandona completamente, que chama para si as traças do mundo e se finda como um resto que passou pela vida e não viveu.

Por isso mesmo é que se há de gostar de tudo, de tudo aquilo que seja útil, traga prazer e felicidade, e mais tarde possa servir como boa recordação. Uma vida utilmente vivida é imortal por si mesma. O que foi de serventia algum dia jamais será esquecido. Daí os convívios da infância, as experiências adultas, os amores, as paixões, os desejos tantos. Recordações que surgem por que não houve abandono do passado. Aliás, não existe passado, apenas esquecimento.

As traças avançam sobre tudo, são famintas, vorazes. Destroem vidas, passado, presente, tudo. Que nada fique ou permaneça ao abandono. Não deixe que devastem o seu livro maior e seu bem mais precioso: a vida.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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