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sábado, 2 de julho de 2016

AQUELE VELHO RETRATO

*Rangel Alves da Costa

Na parede, avisto o retrato e sempre fico pensativo. A pessoa retratada, um velho por trás de um espelho já amarelado de tempo e de uma moldura igualmente envelhecida, possui traços instigantes numa feição que muito me diz.

É um retrato triste, de um velho triste, numa tristeza profunda. Mas por que assim, por que aquela feição num misto de aflição e sofrimento? Talvez seja isso que tanta curiosidade me causa e me chama a desvendar sua face.

Não sei o seu nome, não sei sua origem, nada sei sobre sua linhagem familiar. Contudo, o reconheço demais. Nada me é estranho naquele retrato. Conheço olhos assim, de tristeza profunda. Conheço traços assim, semblantes de encorajamento que não escondem dolorosos percursos.

Conheci e ainda conheço muita gente com aparência aproximada. Mas isso não quer dizer muita coisa, pois olhos tristes são reconhecíveis em qualquer lugar e em qualquer retrato, semblantes disfarçando outras realidades também são desvendados sem muito pensar. É que a tristeza é de imediata identificação.

Meu avô possuía olhos assim, talvez meu bisavô também. Os olhos de meu pai sequer tentaram disfarçar algum dia. Os seus retratos também são tristes, ainda que sorrisos apareçam em um ou outro instante. Depois de retratados em brilho, novamente se distanciavam rumo aos desconhecidos da alma.

Aquele velho retrato, porém, apareceu-me ao acaso. Ou pelo destino me levando diante aquela parede, antes tão empoeirada e tomada dos ocres do tempo. Caminhando, defronte à janela de um conhecido, eis que esta se abre para descortinar aquela moldura envidraçada.


O retrato parecia me chamar. Mesmo em meio às sombras do quarto, ainda assim o retrato se mostrava tão visível como se ladeado de luz. E no mesmo instante fui impulsionado ao seu encontro. Nunca mais consegui me afastar daquela imagem, até que um dia a recebi em casa embrulhada em papel jornal. Era um presente.

Jamais perguntei nem o amigo jamais me informou de quem se tratava. Talvez alguém do passado familiar, um parente próximo ou ali deixado por outra pessoa. Coloquei-o na parede da sala, defronte a uma cadeira de balanço, de modo que sentado pudesse decifrá-lo com mais vagar.

Não havia, contudo, nada a ser decifrado, ao menos na pessoa retratada, vez que eu sempre avistava a tristeza emoldurada. Havia, contudo, uma familiaridade que me intrigava cada vez mais. E, de vez em quando, mesmo no lume sombrio da retina, aquele olhar parecia me olhar com impressionante profundidade. E toda a face querendo me falar, me dizer qualquer coisa.

Então me pus a imaginar como seria o meu retrato antigo, deixado numa parede qualquer, numa idade de envelhecimento. Seria assim daquele jeito, triste e profundamente triste? E fui desvendando-me aos poucos. Reconheci-me não muito diferente daquele retrato, daquele velho ali dizendo muito de mim.

Já brinquei, por alguns instantes já fui feliz, já amei, creio já ter sido amado, mas nada que me caracterizasse como pessoa envolta em felicidade. Pelo contrário, a cada passo na estrada pequenas tristezas e sofrimentos foram se acumulando. Ao lado do meu constante silêncio, foi surgindo em mim um livro de história triste.

Tento a tudo disfarçar com sorrisos, palavras boas, gestos alegres, convívios simpáticos. Mas o que está na alma é o que delimita o ser. E somente sou o que meu ânimo espiritual permite ser. E juro que não tenho encontrado motivos de felicidade.

Por isso triste sou. Silencioso e solitário, com olhar distante e semblante acostumado a lenços e aflições. E aquele retrato é o meu retrato. Sou eu retratado para a efêmera eternidade.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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