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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

GLÓRIA E TRAGÉDIA DE DELMIRO GOUVEIA

Por J. C. Alencar Araripe

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No dia 10 de outubro de 1917, começo da noite, era assassinado Delmiro Gouveia, quando lia jornais no alpendre do seu chalé em Pedra. Tiraram-lhe a vida dois balaços: um localizou-se no braço, outro, no peito, varando-lhe o coração; o terceiro alcançou a parede. A história desse homem prospectivo e determinado é uma homenagem do Cultura nos 90 anos de seu desaparecimento.

Pedra não enfrentara, até então, alvoroço igual ao que ocorreu depois do atentado. Antes, muita gente concentrara-se ali para a chegada da luz elétrica; celebrara-se com festa a inauguração da fábrica de linhas; a gente que se reunia, agora, atônita e entre assomos de revolta, deplorava a morte do homem que transformara Pedra de simples parada de trem em núcleo industrial de trabalho e progresso nos carrascais do sertão agreste.

Dos que consumaram a empreitada sinistra nada se sabia; apenas se dizia que, após os tiros, haviam sido vistos vultos que se esgueiravam do local nas sombras da noite. Piquetes foram armados nas estradas pelas quais se deixava Pedra ou nela se penetrava. De nada adiantou quanto ao objetivo visado, ou seja, a detenção dos criminosos.

Quando mataram Delmiro Gouveia, na noite de 10 de outubro de 1917, não se findou uma existência apenas. Interrompeu-se, de maneira brusca, a marcha evolutiva do Nordeste, iniciada vigorosamente no momento em que começaram a funcionar as turbinas montadas nas escarpas da Cachoeira.

Outra seria, hoje em dia, a situação do Nordeste se as balas assassinas não o houvessem abatido. Da fábrica de linhas Delmiro teria partido para outros avantajados empreendimentos. A ampliação da usina da Cachoeira era uma de suas metas. Alcançada, que fosse, surgiriam novas indústrias, ampliar-se-ia o parque fabril, perspectivas bem mais alentadoras teriam os cidadãos nordestinos na luta contra o famifgerado subdesenvolvimento.

Nascido na segunda metade do século XIX, Delmiro ingressou na centúria seguinte embalado pelos rumorosos sucessos registrados em Paulo Afonso. É estupendo que, naquele tempo recuado, marcado por tantos fatores negativos, encarnasse o estereótipo de grande empreendedor do século XXI.

Delmiro desapareceu quando mais dele precisávamos. E, para infelicidade nossa, não teve continuadores. Nem a fábrica de linhas logrou sobreviver ao seu fundador. Doze anos depois, isto é, em 1929, um dia consumou-se o crime maior: depois de uma concorrência desleal, o trust inglês apoderou-se das instalações que Delmiro deixara e que não conseguira abocanhar enquanto vivo foi o caboclo cearense do Ipú. Parte da maquinaria foi lançada ao rio São Francisco, outra levada para bem longe pela Machine Cottons.

O que ninguém conseguirá, porém, é destruir a glória do pioneiro autêntico, empreendedor que nos albores do século XX apontou para o Brasil o caminho da redenção econômica da região nordestina.

O fadário romanesco

Delmiro é fruto de um amor arrebatado, que ensejou um desses raptos rumorosos que povoam a história dos sertões.O pai, Delmiro de Farias, cavalariano que deixou fama no Norte do Ceará pela audácia e temeridade das suas proezas, numa das viagens a Pernambuco, realizadas com objetivos comerciais, enamorou-se de uma jovem - Leonila Flora da Cruz Gouveia- e com ela fugiu. Perseguido pelos irmãos da moça, conseguiu escapar e chegar às terras do Ipú, onde constituiu uma segunda família.

Sim, porque Delmiro Porfírio de Farias já era casado. Quando se iniciou o romance com Leonila, possuía cinco filhos da sua união com Francisca de Mesquita Farias. Nos arrebatamentos da paixão, não atentou imediatamente para as pesadas responsabilidades antes contraídas.

Refugiou-se no Ipú, em propriedade do coronel Felix José de Sousa. O nascimento de Delmiro Gouveia ocorreu a 5 de junho de 1863, segundo filho do casal, pois o primeiro fora mulher e de nome Maria Augusta. O batizado de Delmiro foi celebrado a 30 do mesmo mês, na Fazenda Boa Vista. Oficiou o ato o padre Bernardino d´Oliveira, coadjutor da Paróquia de Santa Quitéria e que empreendia uma desobriga.

Ameaçado de prisão, pois contra ele existia mandado da Justiça, Belo Farias, assim o chamavam, alistou-se como voluntário e seguiu para o Paraguai. O Brasil estava em guerra contra Solano Lopes. Integrando o 26 do Ceará, participou de inúmeras pelejas, confirmando nos campos guaranis o destemor de que dera provas na terra natal. A 2 de dezembro de 1867, aniversário do Imperador Pedro II, quando o 26 acampava em Taji, um grupo de cearenses, entre os quais estava Belo Farias, caiu em uma emboscada. Combate ferrenho e desigual travou-se na Clareira de Cainbocá. Quando terminou, com a chegada de reforços do 26, quase todos estavam mortos. Entre eles, Delmiro Porfírio de Farias, já então com a patente de capitão, e que apresentava vários ferimentos pelo corpo e seis golpes na cabeça, que lhe abriram o crânio. Hoje, é nome de rua em Fortaleza. A Rua Delmiro de Farias tem início no bairro Jardim América e passa pelos bairros Damas e Rodolfo Teófilo.

De Belo Farias, Delmiro Gouveia herdou o nome próprio. Mas, na personalidade do filho, destacam-se traços dominantes do pai. O arrojo, a coragem que atinge as raias de temeridade, o gênio expansivo, o temperamento arroubado, o gosto pela aventura. Em certa fase de sua existência, tem-se até a impressão de que Delmiro Gouveia procurou reeditar as façanhas de seu genitor.

Rei no comércio de pele

Criança ainda, deixou o Ipú; a mãe resolvera voltar a Pernambuco. Foi no vizinho Estado, de modo particular no Recife, onde se criou e se desenvolveu. Pobre, desajudado, cedo conheceu o peso da luta pela vida. O destino, tão pródigo para com uns, foi extremamente avaro para com ele, nos primeiros passos pelos caminhos do mundo. Empregado da ´Pernambuco Railway´, depois servidor da Alfândega, Delmiro enfrentou também os percalços da mercância primária, que praticou, como meio de sobrevivência, pelo agreste pernambucano.

Casando-se com 20 anos, em Pesqueira, com Anunciada Cândida Falcão, pouco depois se estabeleceu no ramo de peles e algodão. Ao sabor de sucessos e reveses, teve várias experiências. Admira a persistência que demonstrava, não esmorecendo jamais, ressurgindo quando parecia afastado da liça, lançava-se a novos tentames quando só encontrara no passado motivos para desalentos e tristeza.

À custa de trabalho e espírito de iniciativa, firmou-se, afinal, no comércio de peles. Por vastas regiões do Nordeste, estendeu a rede de seus agentes e controlou quase de maneira total os negócios da especialidade que escolhera. Vence onde outros baquearam.

Que era o bode até então? Um animal precioso que imperava na região. Além do leite, fornecia carne sem perigo de desperdício, já que era de porte pequeno. O que sobrava do consumo das famílias era levado às feiras. A essa vantagem, reunia a de sobreviver, como o jumento, aos piores períodos de estiagem.

Com a intensiva exportação de peles para os Estados Unidos, Delmiro Gouveia abriu nova frente de exploração animal e conferiu ao caprino uma valorização extraordinária, pela larga importância que passou a representar na economia de milhares de nordestinos.

O mascate de outrora chegou às culminâncias de ´rei da pele´. No Recife, era uma figura prestigiosa nas altas rodas sociais. Não tardou que o elegessem presidente da Associação Comercial.

No bairro de Apipucos, instalou sua residência, com evidente bom gosto, e deu-lhe o nome de Vila Anunciada, homenagem à esposa. O palacete, cercado de jardins e tendo à frente altaneiras palmeiras imperiais, foi cenário de elegantes reuniões, abrilhantadas com a presença de artistas que visitavam o Recife.

REVOLUÇÃO NO DERBY

Além do comércio de peles, Delmiro incursionou também nos domínios da indústria de açúcar. Na Usina Beltrão, depois fábrica de Tacarauna, refinava o produto e o vendia em tabletes, como se fazia na Europa.

Mas o grande empreendimento de Delmiro no Recife foi o Mercado do Derby. De volta da Exposição Universal de Chicago, em 1893, trouxe a ideia de dotar o Recife de um grande parque permanente de diversões, com mercado, hotel, restaurante e outras inovações.

Em 1898, assinou contrato com o Prefeito do Município, Dr. José Cupertino Coelho Cintra, para a realização do útil empreendimento. Obteve isenção dos impostos municipais para o mercado, com o direito de explorá-lo durante 25 anos, findo os quais deveria pertencer à Prefeitura.

Sem delongas, iniciou a construção, de tal modo que a primeira parte do mercado foi inaugurada a 13 de maio de 1899. A conclusão total verificou-se no dia 7 de setembro do mesmo ano.

O edifício era algo original. Igual ou superior não existia outro no país. Chafarizes, torneiras de água e um sistema de esgotos, cuidadosamente traçado, asseguravam asseio admirável. Em frente à fachada principal, um jardim; ao lado, em uma área de 400m, o velódromo.

Em prédio à parte, instalações para jogos, cafés e divertimentos, inclusive teatro. Carrosséis, barraquinhas, regatas e retretas animavam as noites do Derby, iluminadas pela primeira luz elétrica que o Recife conheceu. Além das diversões que ostentava, o Mercado do Derby oferecia vantagens de natureza econômica. Vendia por preços sempre inferiores aos vigorantes na praça. Comprava em grandes quantidades e se abastecia diretamente nas fontes produtoras, evitando os intermediários que encarecem o produto. Assegurava vantagens com os quais outros estabelecimentos não tinham possibilidade de competir.

A significação do Mercado do Derby para o Recife não se restringia ao que ressaltei, porque teve repercussão urbanística pelas obras complementares que exigiu em trecho da cidade onde havia mangues, como era a Estância daquela fase. Delmiro fez aterro, saneou, abriu ruas.

Atrito com o Vice-Presidente

Com o Mercado do Derby surgiram os primeiros atritos entre Delmiro Gouveia e os que dominavam a política pernambucana da época, representados pelo prefeito Esmeraldino Bandeira.

A tensão chegou a tal ponto, que Delmiro Gouveia se viu forçado a ir ao Rio de Janeiro, para conversações com o conselheiro Rosa e Silva, Vice-Presidente da República e chefe situacionista de Pernambuco, a cujo comando obedecia ao Prefeito do Recife.

Os entendimentos marchavam satisfatoriamente, quando, alguns dias depois da chegada de Delmiro Gouveia, ali desembarcava também o indivíduo que atendia pelo apelido de ´Sabe Tudo´. Seu nome verdadeiro: João Batista da Rosa. Pelos avisos que recebera Delmiro, viera para matá-lo, a mandado de Esmeraldino Bandeira.

Delmiro Gouveia, através de um amigo comum, cientificou Rosa e Silva do que se passava e o responsabilizou por qualquer atentado que viesse a sofrer. O Conselheiro irritou-se com esse gesto e o repeliu.

Em uma tarde de sábado - 17 de junho de 1899 - Delmiro encontrou-se com Rosa e Silva na Rua do Ouvidor e dele se aproxima, dizendo-lhe:

- Seu amigo Esmeraldino mandou assassinar-me e eu responsabilizo o senhor pelo que vier a acontecer.

Rosa e Silva, sem se deter, respondeu-lhe:

-Seja instrumento de quem quiser, mas não me aborreça.

Delmiro, não se contendo, agride a bengala o Vice-Presidente da República, que se refugia na Chapelaria Inglesa, de propriedade de Artur Watson, dali se retirando dez minutos depois, sem acompanhantes.

O incidente teve vasta repercussão. E não era de se estranhar. Pela primeira vez, tão alto dignatário da República, a segunda pessoa do governo, recebia uma desfeita daquela natureza, numa das artérias mais movimentadas da capital federal. Um escândalo em grande estilo.

Incêndio criminoso

Delmiro Iria pagar caro pela ousadia. E não demoraria a execução do plano de vingança que os inimigos arquitetavam. Às últimas horas de 1° de janeiro de 1900, elementos criminosos atearam fogo a dependências do Mercado do Derby, que tanto servia ao povo e era o orgulho do Recife. Os prejuízos atingiram cifras altíssimas: 600 contos de réis.

Como se não bastasse o fato por si só, o Governo do Estado assumiu uma atitude que feriu ainda mais a sensibilidade do povo: prende Delmiro e o seu sócio e gerente do Mercado, Napoleão Duarte.

A detenção de Delmiro verificou-se com o maior aparato policial: um alferes e 50 praças embaladas. A intenção era desmoralizá-lo e até matá-lo, se porventura opusesse resistência.

A reação popular logo se fez sentir. Pela primeira e única vez, na história do Recife, o comércio cerrou as suas portas em solidariedade a um homem. Já fechou em outras ocasiões, mas sempre em movimentos reivindicatórios.

De diferentes setores, partiram demonstrações de simpatia e apreço a Delmiro. A Associação Comercial mobilizou-se em defesa do seu consórcio e ex-presidente, designando uma comissão para entender-se com o governador Sigismundo Gonçalves. Os jornais ´Gazeta da Tarde´ e ´Jornal Pequeno´, vespertinos, não circularam, o mesmo acontecendo, no dia seguinte, com os matutinos ´A Província´ e ´A Concentração´, o que dá a ideia da falta de garantia reinante.

No dia 3, uma ordem de hábeas-corpus restituiu a liberdade a Delmiro, que no dia 5 publica uma nota na imprensa, em termos veementes, relatando os dramáticos acontecimentos e estigmatizando os adversários.

Cercado de perigos de toda sorte, na mira de inimigos poderosos que não o perdoavam, Delmiro embarcou para a Europa, na esperança de encontrar, quando regressasse meses depois, paz e tranquilidade para o trabalho.

O incêndio do Mercado e a prisão tiveram trágica repercussão na sua vida amorosa: porque não foi visitado pela esposa, quando detido pela Polícia, não mais voltou ao lar. E começou a separação que seria definitiva.

Rapto e fuga

Da Europa, Delmiro somente retornaria no segundo semestre do ano seguinte, chamado às pressas para acudir à firma Silva Carneiro & Cia., que fundara antes de embarcar, e cuja situação era tão difícil, que não pode evitar a falência, mesmo com sua presença em Pernambuco.

Por assa época, ocorreu fato que viria a alterar, por completo, os rumos da sua vida. Com o lar desfeito, Delmiro, quarentão, sentindo-se isolado, enamorou-se por uma jovem - Carmélia Eulina do Amaral Gusmão-, filha da amásia do governador Sigismundo Gonçalves.

Indiferente aos motejos que iria provocar e sem atentar para as consequências do seu gesto, Delmiro raptou-a e com ela passou a residir na Usina Beltrão, no bairro de Santo Amaro. Os inimigos o acusaram pelo crime de rapto e sedução e mobilizaram a Polícia e a Justiça para enquadrá-los nos termos da lei e o levarem à cadeia. Não teve alternativa senão fugir.

Abandonando o Recife, para escapar às perseguições políticas e policiais, Delmiro Gouveia foi localizar-se no interior alagoano. Como pretendia continuar no comércio de peles, instalou-se em Pedra, na confluência de três Estados - Pernambuco, Bahia e Alagoas. Pedra tinha outro aspecto favorável: o de ser parada de trem que fazia a ligação Jatobá-Piranhas.

Com o conhecimento que tinha do ramo comercial que escolhera, e ao qual se dedicava fazia anos, e com as boas relações que estabelecera não demorou que os negócios de Delmiro prosperassem bastante. Tantos e tão repetidos sucessos levaram-no, em 1904, a constituir a firma IONA & CIA., cuja atividade principal era exportação de peles de cabra e de carneiro, couros de boi, mamona em bagas e caroço de algodão.

Foram abertos, em algumas capitais nordestinas, escritórios de IONA & CIA. O de Fortaleza teve como gerente José Porto, figura de alto prestígio no comércio do Estado e que foi, mais tarde, acionista e suplente do Conselho Fiscal da Companhia Agro Fabril, sob cujos auspícios surgiu a fábrica de linhas.

Atuando desde o Sul da Bahia até o Norte do Ceará, penetrando até mesmo no Piauí, o consórcio sob o comando de Delmiro fazia excepcional movimento, promovendo a circulação de vultosas somas de dinheiro e criando riqueza numa região pobre e desprotegida de meios de subsistência.

Delmiro não se descurava de difundir práticas destinadas a fomentar o aumento dos rebanhos. Porque a sua atividade não assumia caráter predatório. Agia no presente com olhos no futuro. E indiretamente contribuiu para melhorar o padrão alimentar do sertanejo. Porque só o interessava a pele. A carne, de muito valor nutritivo, ficava para o consumo do povo.

Novas avançadas

O êxito de IONA & CIA. estimulou em Delmiro o anseio de empreendimentos mais avançados. Em dez anos, o ramo de atividades que escolhera era demasiado restrito aos impulsos criadores do seu extraordinário dinamismo. Sonhou, então, com a industrialização do Nordeste, com a energia captada em Paulo Afonso, um desafio de séculos à capacidade realizadora do brasileiro.

Passando imediatamente à ação, logrou convencer o Governo de Alagoas da viabilidade dos seus planos, obtendo as concessões que pleiteava para utilizar as terras secas e devolutas de Água Branca: isenção de impostos, pelo período de dez anos, para exploração de uma fábrica de linha, e permissão para aproveitar o potencial hidrelétrico da Cachoeira e estabelecer linhas de transmissão de energia no Estado de Alagoas.

Logo cogitou Delmiro de formar uma sociedade anônima, que reunisse seus sócios, interessados, auxiliares mais graduados e amigos de sua preferência. Como fruto das demarches com esse objetivo, fundou a 6 de maio de 1912 a Companhia Agro Fabril Mercantil com o capital inicial de mil e duzentos contos de réis.

Enquanto se desenrolavam as providências para a instituição da Companhia, marchavam as medidas relacionadas com a compra das máquinas para a usina da Cachoeira e a fábrica de linha. Desse modo, foi ganho precioso tempo. Tanto que, já a 24 de janeiro de 1913, chegava a Pedra água da Cachoeira. A 24 de junho do mesmo ano, inaugurava-se luz elétrica e, a partir de setembro, trabalhava-se no prédio da fábrica que funcionou a 1° de julho de 1914.
AS CONQUITAS ECONÔMICAS E SOCIAIS

Delmiro lançava, no Nordeste, as bases de uma corajosa experiência. Com a energia da Cachoeira de Paulo Afonso, ia tentar o processo de industrialização. Para compreender a exata significação da sua iniciativa, é preciso que se atente para a época em que surgiu - o princípio do século passado e para o ambiente em que ia projetar-se - o interior de uma região dominada pelo atraso, pela ignorância e pelo pauperismo.

Apesar de todos os fatores negativos, Delmiro subjulgou-os, firmou-se e venceu. A fábrica não conheceu retrocessos. Enfrentou dificuldades, mas foi sempre para frente.

Dentro em pouco, não havia Estado onde não se vendesse a linha Estrela. Competia com o produto de um trust poderoso. Não obstante, espraiava-se no mercado interno, para depois se impor no internacional. Pedra chegou a exportar até para colônias inglesas.

Delmiro deu oportunidade ao caboclo nordestino para mostrar aquilo de que é capaz, quando bem orientado. Ao fanático e ao cangaceiro opunha-se o homem de trabalho, pronto a revelar inteligência, intuição, capacidade construtiva.

Sob a dinâmica de Delmiro, Pedra deixou de ser um burgo apagado na geografia nordestina para transformar-se num centro de progresso, onde o operário desfrutava vantagens excepcionais, que nem nas capitais lhe eram concedidas: água encanada ou em chafarizes, luz elétrica, que era uma das melhores do Brasil, vila de casas, médico, escolas, cinemas, rinque de patinação, banda de música.

A par dessas medidas de caráter social, Delmiro desencadeou um combate sem tréguas aos costumes retrógrados, procurando incutir na população de Pedra hábitos de higiene e de boas maneiras. O banho tornou-se obrigatório, não se fumava em cachimbos de barro, não se podia cuspir no chão, não se entrava numa casa com o chapéu na cabeça, homens e mulheres tinham de andar calçados e limpos.

Em Pedra, imperava ordem excepcional. Não se bebia cachaça nem se explorava a prostituição. Havia respeito, as ordens estabelecidas eram cumpridas à risca.

O abastecimento da população merecia cuidados especiais. As feiras realizavam-se semanalmente e ninguém pagava impostos, porque Delmiro os arrematara por dez anos e os dispensava dos contribuintes. Nem na seca de 1915 houve escassez, apesar dos flagelados, em grande número, que afluíram a Pedra em busca de socorros e que eram atendidos em tendas ao redor da vila.

Frota de carros

A necessidade de comunicação normal e rápida levou Delmiro a abrir as primeiras estradas no interior nordestino, pelas quais rodaram também os primeiros automóveis. Inicialmente, a ligação com os terminais ferroviários, Quebrângulo, Alagoas, e Garanhuns, Pernambuco. Depois com Cachoeira, Água Branca e Paulo Afonso. Ao todo, 520 quilômetros.

Cinco carros, ao todo, a serviço de Delmiro nas carrascais do sertão alagoano: um Fiat, italiano, um Austin grande e um Austin pequeno, ingleses, um NAG, alemão, e um Bayard, francês. Das condições das estradas, em que esses veículos eram utilizados, basta dizer que permitiam velocidade de 60 quilômetros.

Uma sensação, os carros de Delmiro. Quando chegavam a uma localidade parecia um dia de festa. Formava-se aglomeração e não se falava em outra coisa.

Empenhado na industrialização da linha, Delmiro não olvidou as riquezas tradicionais da região: a agricultura, e a pecuária. Procurou difundir as culturas agrícolas com a irrigação das terras secas e muito cedo compreendeu a importância da palma forrageira como alimento dos rebanhos propagando-a o quanto pôde.

Desvendada a trama sinistra

Quem teria o atrevimento de assassinar um homem de imenso prestígio, pelo espírito de iniciativa que o animava, pela grandiosidade dos planos que pôs em execução, pela ousadia e determinação com que agia, pelo poder que detinha em face da riqueza que acumulara?

Várias as hipóteses levantadas.

Delmiro fora vítima do trust inglês da linha. A Machine Cottons sentia escapar-lhe preciosos mercados com o avanço da linha ´Estrela´ fabricada no burgo de Pedra, no interior alagoano. Delmiro já não se continha dentro do Brasil. Expandia-se pelo continente, favorecido pelas circunstâncias determinadas pela I Grande Guerra, no auge a campanha submarina alemã afundando navios cargueiros e dificultando ao máximo o comércio internacional . E era difícil prever até onde chegaria Delmiro, tal o arrojo com que se lançava à conquista de novos centros consumidores. Cortar-lhe o fio da existência era um dos meios indiretos de alcançar o estrangulamento da promissora indústria.

O êxito e a projeção de Delmiro despertavam inveja e despeito. Para a malquerença e o ódio, a distância era pequena. Bastava um pequeno incidente, no jogo dos interesses contrariados. No ambiente rasteiro em que pontificava o coronelismo retrógrado e sanguinário, que respeito merecia a vida de um homem progressista?

Para implantar, no interior nordestino dos albores do século, um estilo de civilização que nem as metrópoles conheciam, impunha-se agir com braço forte. Do contrário, não estabeleceria ordem, muito menos alcançaria a meta de trabalho ordenado e produtivo. Da cabroeira insatisfeita e sem escrúpulos poderia partir o braço assassino.

Delmiro não conseguiu escapar às maquinações políticas em que se viu enredado, no Recife, durante os últimos anos de atuação ali. Não conseguiu nem fez esforço para isso. Pelo contrário, deu contribuição pessoal, com gestos desatinados, para armar situação prenhe de perigos. Sua morte não seria uma vingança política?

Corre mundo a fama de Delmiro Gouveia como homem galante e conquistador. Não se detinha diante de quaisquer obstáculos quando o coração pendia para uma mulher. Exagero ou não, o certo é que nunca se afastou, na apreciação das causas determinantes do seu assassínio, a possibilidade de tratar-se de um caso de honra.

O que se seguiu, em termos de apuração do crime, foi uma farsa e que consumou clamoroso erro judiciário. Inocentes foram condenados como executantes, não havia quem se interessasse por eles; um dos acusados como mandante desapareceu do mapa e o outro foi despronunciado pelo juiz, que aceitou em seu favor depoimento dos réus, mas que não prevaleceu para eles próprios no júri presidido pelo mesmo magistrado que proferiu a despronúncia. Que vergonha! A Justiça armou o circo, fez o jogo das aparências e não teve grandeza nem sabedoria. A Polícia excedeu-se em arbitrariedades, não realizou diligências que se impunham nem instruiu o processo como devia. Revoltante! A tudo se compunha a sociedade com inacreditável conformação.

Conheci em Maceió o último sobrevivente dos acusados do assassínio de Delmiro, chamava-se Róseo Moraes do Nascimento. Já cumprira na prisão a pena a que o condenaram. Não devia mais nada perante a lei, mas continuava a afirmar categoricamente: - Não matei o coronel Delmiro.

A revisão do processo, a pedido de Róseo, foi postulado pelo advogado Antônio Aleixo Paes de Albuquerque, que invocou como álibi o telegrama do coronel Neco Brito ao coronel Ulisses Lima, de Água Branca, ressaltando que os indigitados autores do homicídio não o poderiam ter cometido por absoluta impossibilidade material, uma vez que, na véspera do crime estavam a 200 quilômetros de Pedra, em viagem de terra e água. Esse telegrama, de suma importância, não incorporaram, estranhamente, ao processo, sendo descoberto com outras peças, em 1977, pelo historiador Moacir Sant´Anna, Diretor do Arquivo Público de Alagoas. Quando, em maio de 1983, o Tribunal de Justiça de Alagoas, em decisão histórica, procedeu à revisão do processo do assassínio de Delmiro, dela resultou, evidente, e inocência dos acusados. Róseo já havia falecido, mas a Justiça, embora tardia, reparou clamoroso erro judiciário.

O assassínio de Delmiro teve como mandantes os coronéis José Rodrigues de Lima e José Gomes de Lima e Sá; como executantes: Herculano Soares Vilela, proprietário na serra do Cavalo, perto de água Branca; o cunhado Luis dos Anjicos e o cabra Manuel Vaqueiro.

O coronel José Rodrigues de Lima, de Piranhas, chefe político, fazendeiro e criador, proprietário e latifundiário, não se sentia confortável com a vizinhança de Delmiro, industrial da linha atuando no criatório e comercializando na vila de Pedra produtos agrícolas a preços mais baixos do que o convencional da região.

José Gomes de Sá, coletor em Jatobá de Tacaratú, hoje Petrolândia tivera uma pendência com Aureliano Gomes de Menezes, a quem acusara de contrabandista de peles e de couros, a serviço de Delmiro; a denúncia não foi comprovada e Aureliano foi demitido. Envolveu-se como mentor intelectual, da trama que eliminou Delmiro. Com o assassinato, tomou rumo por muito tempo ignorado, indo se refugiar em Goiás. Quando estava às vésperas da morte, em 1948, na cidade de Porto nacional, confessou o conluio sinistro perante o padre Luso, o promotor público José Cortez de Lucena, o advogado Oswaldo Leal e o fazendeiro Pedro Pastanheiro. Não foi confissão auricular ao sacerdote, como ainda houve quem insinuasse, mas confissão pública.

Certa vez, quando Delmiro Gouveia chegava a Água Branca, Herculano Vilela saía da cidade com um comboio carregado de mantimentos. Um dos animais abalroou com Delmiro, que se exasperou, indo ao extremo de bater com uma chibata em Herculano. Este tentou revidar, mas, outras pessoas intervieram, evitando a luta que parecia eminente. Herculano jurou vingança. E cumpriu o juramento.

Demorou 66 anos a palavra final da justiça sobre o crime que eliminou figura humana da grandeza de Delmiro. Não teve conseqüências práticas, pois todos os envolvidos já tinham desaparecido do mundo dos vivos. Vale ressaltar o fato pelo que representa como reparação das injustiças perpetradas contra os mais fracos; encerra igualmente desabafo de consciências tripudiadas pela prevalência de injunções subalternas, que por tanto tempo beneficiaram os potentados do dia.

J. C. ALENCAR ARARIPE
Especial para o Cultura
O autor da matéria é jornalista e escritor


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