*Rangel Alves da Costa
Não há quem silencie os gritos, quem cale as agonias, quem entorpeça o medo. O mundo grita, pessoas agonizam, a vida vive entorpecida pelo medo de tudo o que o medo faz. E é como se nenhum silêncio houvesse mais diante dos estampidos secos, dos baques ensurdecedores, dos rimbombos a todo instante do dia.
Não há quem ouça as vozes e os clamores, os rogos ajoelhados, as penitências das desvalias. Tudo parecendo numa terrível solidão. Cada ser vivendo para si mesmo, cada um preocupado com o seu próprio destino. Contudo, nem sempre assim acontece. É que tudo está tão difícil de ser compartilhado que os egoísmos se exaltam mesmo onde não exista egoísmo.
Não há quem olhe de cima quem está por baixo, não há quem compreenda o sofrimento daquele que está em situação inferior. Somente os iguais se igualam no sofrimento, na dor, na aflição. Quem está elevado ao poder e dele depende muito o próprio viver, tanto faz que o ser comum se torne em verme rastejante ou que bebe da lama da sarjeta.
Que olhar mais cego é esse do poder. Enxerga mais poder ao longe, mas nunca a dor daquele que agoniza adiante. Tudo se afeiçoa a uma desumanização intencionada. O mais frágil, o pobre e miserável, nasceu somente para servir e sofrer. Depois de o voto dado, depois de a eleição garantida, que cada eleitor vá viver sua insignificância. Depois disso, talvez uma esmola. É na visão da mendicância do outro que o poder age para ter continuidade e mais poder.
Nada de novo, contudo. Ao longo da história, o homem já foi o absolutamente nada. Hoje grande parte se tornou um pouco mais que isso, mas continua sendo tratada como um nada. Talvez não seja mais o escravo, o aprisionado aos grilhões, mas a mesma chibata ainda açoita nas costas de muitos. Os troncos ainda estão erguidos para o prazer dos algozes. E imaginar que crianças ainda rastejam atrás de um resto de pão em muitos lugares.
As solas dos sapatos importados jamais pisarão nos chãos lanhados de sofrimento. O poder nunca caminha pelas estradas nuas, nunca bate à porta de barracos, nunca senta num tamborete para perguntar como a vida vai. Mas o poder manda recados e se faz presente de outros modos. No preço da feira, no preço do remédio, no prato vazio, na doença que mata, na desesperança de tantos, tudo com a presença do poder. Distante permanece, mas cuida de definhar aquele que já não tem além do próprio tempo de vida.
Alguém faleceu e foi levado à cova em rede por que a família não pôde proporcionar um enterro decente, digno, mais humano. O menino amanhece e anoitece chorando de fome por todo lugar. Há muito fogão sem lenha, há muita panela que desde muito não é colocada no fogo, há mesa que nem sabe mais o que seja um pouco de feijão, de farinha, de farinha de milho. Há dor que definha e mata por que o remédio custa mais caro que toda a renda familiar. Exageros? Não. Há um mundo assim e bem ali.
Enquanto o poder faz regime e academia para retomar a magrez, há um povo que é só no couro e no osso por que não há jeito a dar. Uma magreza tão fina, tão amarelada e doentia, que se diz de folhas de outono por cima de gente. Mas qual a doença maior, qual o diagnóstico? Não há doença alguma senão aquelas próprias da fraqueza do corpo, pois tudo gerado pela miséria, pela pobreza absoluta, pela desvalia da vida. E não precisa nem perguntar quem é o responsável maior por tudo isso.
Infelizmente, a população da cidade, principalmente dos centros urbanos mais desenvolvidos, sequer imagina a existência de uma realidade social muito mais estarrecedora. Pelas distâncias e escondidos há uma pobreza tão pobre, uma miséria tão miserável, que somente a dantesca visão para que se acredite. Ainda assim um povo de fé, de esperança, de devoção. E também por isso que não deveria ser esquecido e tão desumanizado pelo poder, pela política, pelos mandatários. Contudo, o voto como única serventia. O resto que morra.
Escritor
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