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terça-feira, 15 de maio de 2018

NAS PEGADAS DE AMPIÃO


Por José Paulo Borges, fotos Jesus Carlos / ImagemGlobal
Colorizada pelo professor e pesquisador do cangaço Rubens Antonio

Cinco horas da manhã de 28 de julho de 1938. Grota de Angicos, uma fortaleza de pedras escondida dentro da caatinga, encravada numa depressão perto do riacho Tamanduá e próxima ao rio São Francisco. O local é a fazenda Angicos, no município sergipano de Porto da Folha, e o fogo cerrado das metralhadoras portáteis do regimento policial militar de Alagoas, comandado pelo tenente João Bezerra, durou 15 minutos. Eram tantos tiros que mal dava para enxergar o que acontecia. Pedaços de xiquexique, mandacaru, facheiro – vegetação típica do sertão – caíam por todos os lados. Lampião tombou primeiro. Maria Bonita foi abatida logo depois. Apanhados de surpresa, muitos dos 39 cangaceiros que se refugiavam na grota ainda dormiam, e nove morreram na emboscada. O restante conseguiu fugir.

Colorizada pelo professor e pesquisador do cangaço Rubens Antonio

Onze cabeças decepadas foram levadas e expostas, como troféus de guerra, na escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas, de onde partira a expedição da volante (nome dado aos grupos de policiais que se moviam de cidade em cidade à procura de cangaceiros). Antes, os policiais surrupiaram todo o dinheiro, ouro e joias que puderam. O esconderijo havia sido apontado, após tortura, por Pedro Cândido, um homem de confiança de Lampião, morto misteriosamente em 1940.

O assassinato de Lampião e Maria Bonita naquela madrugada garoenta foi o derradeiro episódio da história do casal bandido da caatinga. Como fenômeno social, no entanto, os dois resistem ao tempo, sendo dos mais fortes símbolos da cultura sertaneja. Viraram mitos, e a presença deles se espalha não apenas no solo por onde deixaram suas pegadas. Vai muito além. Em dezembro do ano passado, a notícia do furto dos óculos do cangaceiro Virgolino Ferreira, o Lampião, que estavam na Casa de Cultura de Serra Talhada (PE), repercutiu no País inteiro. A peça foi recuperada em 10 de janeiro. Recentemente, especulações sobre a data de nascimento de Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita – que registros até agora dão como ocorrido em 8 de março de 1911 –, atiçaram os estudiosos. Há quem diga que o nascimento aconteceu no ano anterior.

Seja nas xilogravuras dos cordéis, nas canções populares, no cinema ou na literatura, o casal habita o imaginário nordestino e brasileiro. Especialistas contam diferentes passagens sobre a vida de Lampião e seus cangaceiros. O historiador e pesquisador do cangaço Anildomá Willans de Souza, de Serra Talhada, no sertão pernambucano do Pajeú, prefere costurar a veracidade dos fatos com retalhos de inspiração poética. “Criança e adolescente, me criei ouvindo casos de cangaceiros e de volantes. Cedo, me imaginei envolvido nas aventuras de Lampião saqueando vilas e cidades, dançando xaxado, tocando sanfona e violão, desafiando coronéis e fazendeiros”, relata.

Apesar da influência afetiva, ele reconhece que o cangaço acabou se tornando um meio de vida no qual, por anos seguidos, bandoleiros, com Lampião à frente, cometeram torturas, sequestros, roubos, assassinatos e estupros. Quando não matavam um policial ou um delator, faziam questão de ferir, mutilar e deixar cicatrizes visíveis para que as marcas servissem de exemplo. Na testa dos homens, desenhavam à faca feridas em forma de cruz, e desfiguravam o rosto de mulheres com ferro de marcar o gado.

Foram os cangaceiros que introduziram o sequestro em larga escala no Brasil. Os bandoleiros da caatinga faziam reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes. Caso não recebessem o resgate, torturavam e matavam as vítimas, a tiro ou punhaladas. A extorsão era outra fonte de renda. Mandavam cartas exigindo enormes quantias para não invadir cidades, atear fogo em casas, derramar sangue de sertanejos inocentes. Mas, além de medo, os cangaceiros exerciam fascínio. Para um jovem da caatinga, entrar para o cangaço representava ascensão social. Significava o ingresso em uma comunidade de homens que se gabavam de sua audácia e coragem. Indivíduos que trocaram a modorra da vida camponesa por um cotidiano repleto de aventuras e perigos.

“Longe de mim dizer que Lampião e seu bando não foram criminosos. Mas o legado do cangaço vai muito além desse passado”, pontua Souza. Uma dessas heranças é o Grupo de Xaxado Cabras de Lampião, uma das muitas atividades desenvolvidas pela Fundação Cultural Cabras de Lampião, fundada em 1995 pelo historiador. O grupo reúne pessoas de Serra Talhada, antiga Villa Bella, onde veio à luz Virgolino Ferreira da Silva. “Apesar de Lampião ter nascido aqui, não se falava mais dele, as oligarquias faziam questão de apagar sua história. Decidimos, então, mostrar que o cangaço não é apenas folclore e que ainda está presente na vida do povo”, informa.

Sem perder de vista a cultura popular, as tradições, a literatura, a música e a dança – alguns dos legados dos cangaceiros –, o principal propósito do Cabras de Lampião é o debate sobre a situação social em Serra Talhada hoje em dia, à luz do cangaço. A fundação é responsável também pela criação e produção de diversas mostras de teatro, com destaque para o evento “Tributo a Virgolino – a celebração do cangaço”, realizado desde 1994. Neste ano, o tributo ocorre juntamente com o Encontro Nordestino de Xaxado, entre 19 e 29 de julho, com destaque para o espetáculo teatral O massacre de Angico, a morte de Lampião. “O tributo e o encontro eram dois eventos distintos, e agora foi incorporado mais um, no caso, a peça. Resolvemos fazer um só evento, porém, gigantesco. Trata-se de uma reflexão sobre o fazer cultural na caatinga, que concentra várias atividades em uma só. Afinal de contas, tudo o que o Cabras de Lampião faz é sempre um tributo a Virgolino”, salienta Souza.

O Festival de Música do Cangaço também faz parte do calendário do grupo. Neste ano, o festival foi realizado em 28 de abril,na Estação do Forró do Museu do Cangaço, em Serra Talhada. Como não poderia deixar de ser, o grande destaque é o xaxado. “Criado pelos cangaceiros, o xaxado é uma dança de guerra e de entretenimento. Lampião usava o xaxado com a finalidade de aquecer o espírito para as batalhas, extravasar insultos ao inimigo, celebrar os companheiros e lembrar os combates”, explica o historiador. O xaxado é bem mais rico do que aparenta, e há registros de mais de 20 variações da dança. Movimentos como xaxado base, desorteio, cavalo manco, vitorioso, ataque e defesa, xaxado de combate, xaxado de Mané, xaxado batido e galope fazem parte do repertório dos grupos que se apresentam no Festival de Música do Cangaço. De acordo com Anildomá Souza, a autoria de alguns xaxados dançados até hoje é atribuída ao próprio Lampião.

Também criado pela Fundação Cultural Cabras de Lampião, o Centro de Estudos e Pesquisa do Cangaço (Epec) preserva boa parte de material colecionado por Souza durante vários anos. O acervo do Epec, segundo o historiador, resgata a memória de um período que contribuiu para a construção da identidade do povo sertanejo. “Desde pequeno, coleciono livros, documentos, tudo, enfim, que pude encontrar sobre aquela época, e que agora faz parte da coleção do Epec”, assinala. “O legado de Lampião está na indumentária, na dança, na música, na linguagem e nas expressões próprias dos cangaceiros. Também está na gastronomia, em pratos como carne de cabra assada e farinha seca, queijo e cuscuz com rapadura. O cangaço é nossa identidade cultural”, arremata Souza.
Riqueza histórica e biológica

A cidade alagoana de Piranhas, distante 290 quilômetros da capital Maceió, ficou nacionalmente conhecida como local onde as cabeças de Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros ficaram expostas após a decapitação, na Gruta de Angico. Hoje, faz parte da Rota do Cangaço, um passeio pelo cenário que testemunhou os últimos dias de Lampião – incluindo a trilha de pouco menos de um quilômetro que leva até o local do massacre. O museólogo Jairo Luiz Oliveira conta que, quando a atividade turística foi inaugurada em 1997, atraiu apenas 820 pessoas naquele ano, o que mudou radicalmente algum tempo depois.

“Em 2011, o passeio foi feito por mais de 32 mil turistas. Agora, imagine o quanto isso representou em renda para a cidade e, principalmente, em empregos”, indaga. E ele mesmo responde: “São mais de 500 empregos diretos e cerca de 1,5 mil indiretos criados pela economia social gerada pelo fenômeno Lampião.” Com 23 mil habitantes e uma economia dependente dos royalties da hidrelétrica de Xingó, os lucros da Rota do Cangaço são fundamentais para a cidade.

Em 2007, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Sergipe criou, numa área de2.138 hectaresna divisa dos municípios de Poço Redondo e Canindé de São Francisco, o Monumento Natural da Grota do Angico. “Essa área protegida é de destacada importância justamente por se encontrar no local onde mataram Lampião”, conta o biólogo Juan Manuel Ruiz-Esparza Aguilar, mestre em Ecologia e Conservação da Caatinga pela Universidade Federal de Sergipe. “Existe ali uma grande quantidade de plantas e animais ainda sendo descobertos”, destaca.

Dentro do Monumento Natural da Grota do Angico, foram catalogadas até agora 140 espécies de aves. Algumas delas, como a pomba-de-bando (Zenaida auriculata) e o guaracava-de-crista-branca (Elaenia chilensis), se deslocam por grandes distâncias para se alimentar. Outras espécies encontradas no local realizam movimentos migratórios parciais, como o suiriri (Tyrannus melancholicus), o sabiá-poca (Turdus amaurochalinus) e o bigodinho (Sporophila lineola).

De acordo com Aguilar existem outras aves encontradas apenas na região como o cardeal-do-nordeste (Paroaria dominicana), o casaca-de-couro (Pseudoseisura cristata), a choca-barrada-do-nordeste (Thamnophilus capistratus), o bacurauzinho-da-caatinga (Hydropsalis hirundinacea), o periquito-da-caatinga (Aratinga cactorum). “O chorozinho-de-papo-preto [Herpsilochmus pectoral], uma das espécies endêmicas, encontra-se vulnerável à extinção”, alerta o biólogo, apaixonado confesso pela caatinga – bioma, segundo ele, muito parecido com a Selva Baja Caducifólia, no México, região onde viveu na infância. “O Monumento Natural da Grota do Angico representa a herança ornitológica de Lampião e Maria Bonita, a qual merece ser preservada”, enfatiza Aguilar, que atualmente realiza uma pesquisa de doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, com o objetivo de avaliar os impactos provocados pelo homem sobre as comunidades de aves da caatinga.

A entrada no cangaço

O principal protagonista do cangaço, fenômeno social que varreu o Nordeste no início do século XX, nasceu em 1898 e viveu a juventude no Sítio Passagem das Pedras, a 42 quilômetros de Serra Talhada, no sertão do Pajeú, em Pernambuco, a pouco mais de 400 quilômetros da capital, Recife. O acesso ao local onde Lampião nasceu é feito, hoje em dia, por uma estrada de asfalto precário, que liga os municípios de Serra Talhada e Floresta. Em fevereiro, por causa da seca, a barragem do Pajeú, riacho que fica no percurso e que serviu de caminho para Lampião nas suas andanças pelo Nordeste, era só um filete de água coberto com plantas aquáticas.

Depois de rodar cerca de 40 quilômetros, o visitante ainda precisa enfrentar uma estradinha poeirenta, de terra, cheia de buracos. É a “Estrada Zé Saturnino”, homenagem ao inimigo de Lampião acusado de ter mandado matar o pai de Virgolino, José Ferreira da Silva. Esse episódio levou Virgolino à epopeia do cangaço. No caminho, parada obrigatória num conjunto de pedras no meio da caatinga, a alguns metros da estradinha, que se equilibram sabe-se lá como. As pedras da emboscada. Foi no local que, em 1916, aconteceu o primeiro embate entre os irmãos Antônio, Virgolino e Livino Ferreira com a família Saturnino. Inveja, futricas, ignorância e o suposto furto de um animal foram o estopim da guerra entre os dois clãs.

Na chegada ao Sítio Passagem das Pedras, o visitante é recebido por “Lili”, uma cabritinha de cara preta e o corpo todo branco, criada praticamente no quintal da casa e cheia de mordomias. Todo cuidado com Lili é pouco. No princípio, ela faz agrados ao visitante, depois parte para a “cabeçada”. Ali, Virgolino desfrutou dos melhores anos de sua vida, antes de enveredar para o cangaço.

Lampião sempre afirmou que entrou na vida de bandido para vingar o assassinato do pai, José Ferreira. Condutor de animais de carga e pequeno fazendeiro em Serra Talhada, José Ferreira foi morto em 1920 pelo sargento de polícia José Lucena, após uma série de hostilidades entre a família Ferreira e o vizinho José Saturnino. Ainda em 1920, Virgolino Ferreira entrou para o grupo de outro cangaceiro célebre, Sebastião Pereira e Silva, o Sinhô Pereira. De acordo com alguns autores, foi nessa época que surgiu a alcunha de Lampião.

Depois de participar durante um bom tempo do bando de Sinhô Pereira, a maior parte dele agindo como braço direito do chefe, Lampião estava apto a dirigir seu próprio grupo. O próprio Sinhô Pereira fizera a escolha, indicando-o para continuar em seu lugar. Essa preferência já havia ficado clara, quando escolhera Lampião para chefiar seu bando em várias incursões anteriores, como no ataque à cidade de Matinha de Água Branca.

E foi assim, entronizado pelo cangaceiro que respeitava e admirava, que começou a escrever sua própria história, que ganharia novos ares com Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa, também conhecida como Maria Bonita. Separada do marido, o sapateiro José Miguel da Silva, o Zé de Neném, foi a primeira mulher a entrar no cangaço. Antes dela, outros bandoleiros chegaram a ter mulher e filhos, porém, nenhuma esposa até então havia ousado seguir o companheiro na vida errante no meio da caatinga. Depois da chegada de Maria Déa, muitos outros cangaceiros seguiram o exemplo do chefe e trouxeram suas companheiras. Mas essas já são outras histórias… 

https://www.revistaforum.com.br/digital/110/nas-pegadas-de-lampiao/

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