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segunda-feira, 15 de abril de 2019

JORNAL O ESTADO DE S. PAULO 19 de Dezembro de 2010.

Guerra contra Lampião

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
Repórteres Leonencio Nossa e Celso Júnior

Os nomes de Lampião, Maria Bonita e Corisco estão nas placas dos cybercafés, pizzarias e serviços de moto táxi abertos no atual momento de euforia no comércio popular do Nordeste.

Setenta anos depois de erguerem bacamartes e punhais, os sobreviventes do Cangaço, no limite do esgotamento físico, travam agora, juntamente com pesquisadores e artistas conhecidos ou desconhecidos, uma luta para manter na história as marcas da barbárie. É na luta para se manter em pé que os cangaceiros e mesmo seus algozes se assemelham a outros mortais.

Em uma casa coberta de telha, em Delmiro Gouveia, sertão alagoano, vive a agricultora Aristéia Soares de Lima. Com vestido longo roxo, usado sempre durante as visitas, a mulher miúda e esforça para conversar. Ela se recupera de um problema nas articulações, que a levou ficar internada por uma semana.


A ex-cangaceira busca uma posição na cama em que consiga conversar sem sofrer. Numa trégua do corpo, começa a falar da prisão, em Delmiro Gouveia. Foi pouco antes da volante (tropa) do tenente João Bezerra chegar à cidade carregando a cabeça de Lampião, morto no massacre de Angicos, em 1938. Conta que a qualquer movimento na rua tentava enxergar o que passava do lado de fora por uma pequena abertura na parede. Mas, naquele dia, preferiu ficar agachada na cela, em silêncio.

“Eu não quis ver”, diz Aristéia, com dificuldades. Só viu, depois, a euforia dos “macacos” – como eram chamados as volantes – e a surpresa dos moradores com o feito do tenente João Bezerra. Aristéia intercala uma frase com um movimento de mãos ou de rosto expressando dor. Ela demonstra vontade de falar sobre o Cangaço. Sobreviveu porque se entregou à polícia. Foi logo depois do fuzilamento do marido, Catingueira.

Antes de morrer, ele pediu a Moreno, chefe do grupo, que tirasse a mulher do Cangaço. Pelas leis dos bandos liderados por Lampião, mulher não podia sair ou ficar solteira. Era morta para não contar à polícia detalhes das estratégias do grupo. Moreno cumpriu a promessa e levou Aristéia para a cidade, onde ela procurou a polícia. Quando estava presa, soube da decapitação da irmã, Eleonora, também cangaceira. “Só arrancavam a cabeça para provar que mataram cangaceiro e ganhar comenda”, diz Aristéia.

O filho e a nora de Aristéia, Pedro Soares e Damaris, exibem orgulhosos um brinco que ela recebeu de Cruzeiro, um temido cangaceiro. Aristéia não aceitou ficar com Cruzeiro, mesmo depois da morte de Catingueira. Ela lembra do dia em que o marido morreu. “Corremos quando começou o tiroteio. Na hora, a gente estava lavando os panos dos meninos. Saímos baleados”, diz. “Enterraram Catingueira na caatinga.” Ela estava grávida de oito meses. O filho, José, morreu tempos depois, em 1964, num assalto.

Temor. Um dia, conta, ouviu um policial dizer que nunca teve medo de Lampião. “Não tinha medo. Só corria à légua”, ironiza.

Aristéia discorda que Maria Bonita tenha sido a mulher mais bonita do cangaço. “A mulher mais bonita era a Durvinha”, diz – e fecha e abre os olhos como se tivesse sentido uma fisgada. Dos homens, ela afirma que Virgínio, cunhado de Lampião,“ ganhava a parada”. “Ele era provado mesmo”, conta. Ela assegura que a “peste” da polícia matou o cangaceiro Português já detido. O Português tinha se rendido em Mata Grande. “Foi só chegar e descer do carro para ser morto”, lembra.“Como ele matou o pai de um soldado, o soldado matou Português.”
A bela "Durvinha" aponta para Benjamim Abrahão.

Em suas lembranças, ela reclama que “a cangaceira Quitéria era o capeta” e fazia intriga contra Cristina, mulher de Português. “Dizem eles que Cristina ‘sartava’ a cerca com Jitirana. Dizem eles, eu não vi. Só pode ter sido a Quitéria quem falou. Quitéria era danada por Português. O marido de Quitéria era Pedra Roxa. Pedra Roxa vivia doente, se entregou e pronto. Em pouco tempo também morreu.”

Após a prisão, Aristéia teve mais sete filhos. A carteira de trabalho, expedida em 1972, nunca recebeu um carimbo. Teve problemas até mesmo para se alistar nos mutirões formados nas secas por causa da artrite. O problema tem impedido Aristéia de assistir ao Jornal Nacional e às missas, seus programas preferidos na TV.

Sentada na cama, busca uma posição em que possa sentir menos dor. Põe as duas mãos no rosto. Depois, leva a mão direita para baixo do braço esquerdo. Quase não há mais carne para conter o atrito dos ossos. Puxa algo da memória para desmentir alguma afirmação do filho Pedro. “Ôxe!” Solta uma piada, faz uma brincadeira. Não tem mais movimento nas faces para rir das histórias dos cangaceiros que “sartavam a cerca”, dos casos de amor e traição. “Frouxos”, diz, com voz firme, referindo- se aos policiais.
Português e Catingueira. ABAFILM

Do outro lado do município mora Antônio Vieira, 97 anos, sargento da reserva da Polícia Militar de Alagoas. A farda está impecável, como se tivesse de ser usada a qualquer hora. Na roupa está o registro do tipo sanguíneo: A+. Antes de começar a entrevista, Vieira demonstra incômodo, como se sentisse falta de algo. A filha Edileuza vai até o quarto do pai e volta com um revólver 38.
Ela explica que o pai só dorme e conversa com a arma ao lado. Agora, sim, com a arma na mão, ele fala do combate do extermínio de Lampião, em 28 de julho de1938. Segurando firme a arma, Vieira olha compenetrado para a câmera. Parece mirar um inimigo que agora não passa de uma criatura apenas de sua memória. “Lampião recebeu um tiro no peito e caiu. Maria Bonita caiu pertinho dele”, conta. “Não posso dizer que matei Lampião. Ninguém pode dize. Não dava para saber, era muita gente atirando.”
Antonio Vieira, de 97 anos, mostra sua companheira

Carteira do PM Antonio Vieira

Do Cangaço ao seringal.  
Ex-aliado de Lampião diz que Maria Bonita tinha ciúme e fazia intriga

Um dos homens de Lampião que escaparam do cerco de Angicos foi Manoel Dantas Loiola, o Candeeiro. Aos 94 anos, ele vive em Buíque, sertão pernambucano. Vestindo camisa comprida, conta sua história, sentado num sofá da sala de uma casa simples. Reclama de Maria Bonita. “Ela não gostava da minha aproximação de Lampião”, relata. “Só vivia fazendo intriga. Mas o chefe confiava em mim.”

Seu "Nezim"Foto NE10 UOL

Após o cangaço, Candeeiro foi para a Amazônia trabalhar em seringais e só voltou mais tarde para o sertão. “Nunca esqueci aquele dia em Angicos. Passei muito tempo sem contar essa história”, diz. “Lampião foi alerta do que a volante estava na região, mas não deu importância.” A fuga de Candeeiro do acampamento de Angicos foi uma das maiores proezas da região. Faz calor no sertão.

Um dos filhos do ex-cangaceiro diz, baixo, que o pai jamais tira a camisa comprida. Ela esconde a marca de bala de Angicos no braço esquerdo.

*As fotos 2, 3 e 6 não fazem parte da matéria original.

Adendo 
Aristéia e Candeeiro ainda são viventes. O Sargento Antonio Vieira faleceu dia 20 de dezembro de 2010 um dia após a publicação desta matéria no Estadão. 


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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