Por Aroldo Ferreira
O cangaço, com suas expansões e reinvenções, possui seus mitos, contribui para
um entendimento maior do Sertão, influi na dinâmica de nossas sensações e
repercussões dos carrascais, dilui o tempo em nós mesmos, traz atemporalidades,
constatações, dúvidas, conceitos, indeterminações.
No chão adusto e aduno aunado de macambiras e marmeleiros, cangaceiros
percorriam distâncias variadas, corriam das Volantes, dos próprios fantasmas.
Combatê-los, detê-los, vencê-los era tarefa indigesta, gesta de percepções inusitadas,
atadas a senões e agouros, estouros de parabéluns e fuzis, vindouros momentos
carregados de tensões e temeridades, distorções e desentendimentos.
Os lutos, abruptos, eram comuns. Os vultos, em insultos variados, varriam veios
e vaus, vociferavam, vinham de vinditas e vazios, vertiam escuridões e
temores.Comungava-se de receios e aperreios, constatava-se a precariedade da
justiça, o apego à terra do catingueiro, a falta de estradas, o ensino ainda
por se tornar revelador, questionador.
O Sertão era os grandes espaços, os traços de seus rios temporários, a mistura
da lonjura com a dura realidade de uma época de textura obscura, insegura,
saracura cantando e anunciando agruras, sepulturas. Viviam-se preocupações,
ocupações determinadas pela ausência de perspectivas naquele mundo ressequido,
colhido por solavancos e surpresas desiguais.
Os cangaceiros atormentavam, fomentavam instabilidades, debilidades constantes.
Errantes, penetrantes, farfalhantes, apareciam e teciam dores, clamores, suores
enviesados. Conduziam-se ferindo corpos, percepções. Habitavam as
descontinuidades, as perplexidades.
João Gomes de Lira, morto há poucos dias, possuía a memória de quem, sendo
perseguidor de cangaceiros, compreendeu suas cruas insinuações, seus breus e
alucinações. Nazareno, sereno, conversava compactuando de cadências e
coerências, conservava concepções claras, conhecia a força dos umbuzeiros e
facheiros, das umburanas e umburuçus, das quixabeiras e catingueiras no
universo sertanejo. Penetrou, ainda jovem, na participação de lutas
incansáveis, testemunhou a morte de parentes, combatentes valentes, vivenciou
as circunstâncias alucinatórias e vexatórias do cangaço. Foi um guerreiro na
busca de uma afirmação de seus propósitos e sonhos, conheceu o peso das fatalidades,
o intrincado movimento dos cangaceiros no solo sagrado do Sertão.
João Gomes some da face da terra, mas não de nossas almas, continua a espalhar
sua canção de cordialidade e humildade, nos mostra que a vida, com sua
fragilidade e efemeridade, constrói destinos nobres, abertos aos grandes vôos,
aos entôos das peiticas e das seriemas, às percepções gentis, unidas a
singularidades e vastidões.
Saber respeitá-lo, admirá-lo é, antes de tudo, uma forma de compactuar de sua
sabedoria e comunhão com o cosmos, homem simples, filho do Sertão, de uma
Nazaré que o viu nascer e percorrer caminhos que o tornaram tenaz, capaz de
percorrer os carrascais atrás de bandoleiros e fluir na comunhão intrincada dos
espinhos dos coroas-de-frade e xique-xiques. Tomba o grande lutador, a vida
segue, os instantes consolidam os enigmas do Sertão, cantam os pássaros-carão e
os joões-corta-pau, as baraúnas e aroeiras recriam lumes e larguezas, o cangaço
trama suas histórias e infinitos, espaços e concepções.
Petrolina, 07 de Agosto de 2011
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*Aroldo Ferreira Leão é pesquisador de temas vinculados ao Sertão. Possui
130 livros publicados, tem participação em 22 antologias. É professor da
UNIVASF (Universidade Federal do Vale do São Francisco). Ainda este ano estará
publicando o livro Lampião: Um Estudo de Buscas e Essências. Mais
informações sobre o autor estão na home page: www.aroldoferreiraleao.com.br .
https://lampiaoaceso.blogspot.com/2011/08/culminando-com-missa-de-7-dia-em.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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