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sábado, 29 de março de 2014

PADRE BULHÕES - Santana do Ipanema/AL ( C R Ô N I C A)





Durante anos a sua casa foi um orfanato...
 
Fonte: Luiz Nogueira Barros

Impossível esquecê-lo. Era árido como o sertão em tempos de seca. Mas tal o mandacaru, resistente planta dos sertões, tinha água e sabia doá-la para os necessitados e perdidos naquelas plagas longínquas, nas horas cruciantes. Sua casa era um porto seguro para os desamparados da sorte. E o seu olhar, por vezes severo, escondia a complacência própria dos homens de grande santidade.

Muitas vezes era visto no sítio do fundo da sua casa ao lado do Camoxinga como um homem comum a mexer com a terra, calejando as mãos, sonhando flores e frutos. Ou então na sua batina surrada, subindo a ladeira, apressado, na direção da Matriz de Senhora Santana, onde as obrigações religiosas completavam a sua modesta existência.

Abusado? Era-o, de fato. E quando precisava dar alguma lição de moral para algum herege suas palavras terminavam sempre assim:

- Compreendeu...compreendeu...compreendeu, seu safado?

Se compreendido, a sua complacência de pastor de almas mostrava, de súbito, o lado bom do seu coração. Seu passo seguinte era o de recuperar o herege.

Durante anos a sua casa foi um orfanato onde meninos e meninas desvalidas se fizeram moças e homens. Até mesmo, um dia, recebeu um bilhete de "Corisco", lugar-tenente do temido cangaceiro "Lampião", que lhe enviava um filho recém-nascido, que não podia crescer naquela vida do cangaço. Falava-se, à boca miúda, que "Lampião" e "Corisco" tinham uma devoção com Senhora Santana, além de respeitarem o seu pároco. E que por isso jamais entrariam nos domínios da santa. E o menino se fez homem à sombra daqueles domínios sagrados.
 
Mas padre Bulhões tinha um grande amigo, o "Seu" Edmundo, o chefe do Leilão da Santa. Fabricante de "gengibirre", um delicioso suco de gengibre, "Seu" Edmundo o vendia em garrafas de louça com rolhas fortemente amarradas por barbantes.Tanto que, retirados os barbantes ouvia-se um estampido semelhante aos das garrafas de champanhe e logo depois o suco borbulhante descia como cascata pela boca da garrafa enlouquecendo o apetite dos meninos.

"Seu" Edmundo, assessor de muitas viagens do padre Bulhões pelos distritos, num velho "jipe", tinha as mesmas afobações do seu inseparável amigo. E um dia, numa viagem para Cacimbinhas, os dois se esqueceram de acertar a hora dos seus relógios. Como tinham compromissos diferentes marcaram o retorno para as três da tarde. Deu quatro horas e "Seu" Edmundo não chegava. Afobado, padre Bulhões decidiu-se por voltar. Ao chegar, pela hora do seu relógio, "Seu" Edmundo não acreditou no recado que recebera. Também afobado, decidiu-se por voltar a pés. Lá na frente, arrependido, o velho pároco voltou. Avistou "Seu" Edmundo e foi ríspido:

- Suba aí! Você se atrasou!

E ouviu:

- Eu não! Seu relógio é que está errado! Prefiro ir andando, pois para isso Deus me deu os pés.

Daí por diante os dois, um no “jipe” e outro andando, foram vencendo os quilômetros com ásperas discussões. E ao final da tarde chegaram aos domínios de Senhora Santana. Antes de entrar em sua casa "Seu" Edmundo ainda ouviu do seu amigo:

- Eita homenzinho teimoso e endiabrado.

E respondeu-lhe:

- Vai-te embora Satanás, que preciso descansar. Depois a gente resolve essa questão.

Fonte:
Gazeta de Alagoas, 14.02.93


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