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domingo, 3 de abril de 2016

O PADRE JOSÉ KEHRLE E A OUTRA HISTÓRIA DE LAMPIÃO

Por Rangel Alves da Costa*

Lendo uma postagem do professor e pesquisador Geziel Moura, mais precisamente alguns anexos da revista Manchete (nº 1.045, de 29 de abril de 1972, págs. 154 a 157), deparo-me com algumas informações importantes repassadas pelo padre José Kehrle ao repórter Ricardo Noblat. Na reportagem intitulada “Lampião morreu envenenado”, surgem logo algumas afirmações já conhecidas e outras que podem ser contestadas com força na pena. Ou assim se faz ou revirada estará a saga de Lampião e a própria história do cangaço.

Diz o religioso que Lampião não morreu num tiroteio, foi envenenado juntamente com os cangaceiros que o acompanhavam na ocasião. Diz ainda que Lampião era um homem profundamente religioso. Todas as manhãs, bem cedo, se afastava do grupo e lia seu breviário. Informa ainda que a polícia não tinha interesse em prender Lampião. Soldados e oficiais, além do salário, recebiam também uma diária especial, se empenhados na caça ao cangaceiro. Portanto, quanto mais demorassem a encontrá-lo tanto melhor para eles. E também: Lampião sempre foi protegido por chefes políticos e grandes donos de terras. Deles, em troca de determinados serviços, Lampião recebia armas e mantimentos. Até a polícia, às vezes, fornecia munição.

Sobre o conluio entre Lampião e as forças policiais, pontua o religioso: “Quando as tropas policiais tinham ciência de que Lampião estava perto, o oficial em comando mandava tocar a corneta, retardava a marcha, e isso dava tempo suficiente para que os cangaceiros fugissem”. E um relato surpreendente, ainda que muitos historiadores já tenham afirmado acerca da amizade e entre Lampião e o Tenente João Bezerra: “Revelou-me que o tenente era amigo de Lampião e que, muitas vezes, ia jogar com ele no seu esconderijo, em terras do pai do governador de Alagoas”. Segundo o padre, tal revelação fora feita por Vicente, antão ordenança do tenente.

Acerca do envenenamento, afirma o padre Kehrle: “Conhecia bem a rotina da casa e sabia que, todos os dias de manhã, uma mulher levava um pote de água de beber para os cangaceiros. Em troca de dez contos de réis, a mulher depois de muito vacilar, diluiu na água o veneno que o tenente lhe dera. João Bezerra cercou a casa, viu quando Maria Bonita levou o pote para dentro, e esperou mais um pouco. Entrou sozinho quando ouviu gritos: os cangaceiros e Lampião agonizavam envenenados. O tenente então deu um tiro na cabeça de Maria Bonita e os soldados invadiram a casa, roubaram o dinheiro dos cangaceiros e cortaram-lhes as cabeças”.

À época da reportagem, o padre Kehrle, contava com oitenta e um anos. Contudo, por mais conhecimento de causa que tivesse, pois se autodenominado confessor do rei cangaceiro antes de o mesmo entrar no cangaço, bem como gozando de tamanha intimidade que certa feita, ferido, o das caatingas afirmou que só se entregaria à polícia na sua presença, não se pode, infelizmente, creditar como verdadeiras todas as suas narrativas. Ademais, repassa outras informações que contrastam totalmente com os alfarrábios da história.

Numa palavra: se o padre Kehrle estiver com a verdade, grande parte da história acerca de Lampião está sendo contada e recontada de forma equivocada, senão mentirosa. Prefiro confiar em pesquisas, em antigos relatos oriundos de fontes fidedignas (em muitos casos e sobre muitas situações), a abraçar como verdadeiras algumas assertivas, perceptivelmente surgidas para afamar o informante. Neste sentido, diz a reportagem que o padre Kehrle é o maior testemunho vivo da história do cangaço. Ora, o ano era o de 1972 e nesta época muitos ex-cangaceiros continuavam vivos, a exemplo de Sila e Adília.

Na verdade, de fácil percepção é o fato de que o religioso nada mais pretendeu do que ganhar escopo de importância no mundo do cangaço. Dizia-se, então, acusado pela polícia de proteger Lampião e seu bando e de ter feito uma grande ação evangelizadora em meio aos homens das caatingas. Não obstante isso, seu relato acerca das vinditas de sangue dos Ferreira não condizem com a verdade histórica. Acaba transmudando toda a saga familiar para Alagoas e deixa de citar as raízes da violência ainda em Pernambuco, como se menosprezasse as reais sementes dos ódios e das violências.

Não nos parece veraz a narrativa acerca do envenenamento. Cita uma casa onde a morte se deu, mas não cita sequer o local onde estava escondido o agrupamento cangaceiro. Era como se o bando dependesse apenas de um balde de água para matar a sede. Como o balde entregue naquele dia estava envenenado - e muita gente matou a sede ao mesmo tempo -, então houve envenenamento conjunto. Noutras palavras, era como se o leiteiro entregasse o leite envenenado certa manhã e grande parte da casa morresse por causa disso. Ademais, no relato não há lugar para o Angico, para o cerco na madrugada, para o curto tiroteio, para o sangue derramado e a fuga desesperada de cangaceiros.

Também não condiz com a verdade histórica a citação segundo a qual as forças policiais perseguiam de mentirinha o bando Lampião. A acreditar nisso, o Fogo do Maranduba teria sido a mais perfeita encenação entre cangaço e volante. Muito mais teria para contestar acerca das palavras do padre, mas creio que a própria reportagem cuida de definir bem o informante: “Uma pausa. Padre Kehrle vai tirar o demônio do corpo de uma mulher que chora há três noites”. E cura. Mas não a História.


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