Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
Imagem de Higino José Belarmino
Dizer que
Padim Ciço, um santo, fez Virgulino Ferreira um bandido é um sacrilégio. Mas o
santo fez o bandido virar capitão, sim, embora historiadores do cangaço omitam
esse episódio em seus livros. Há outras omissões. Embora os personagens da
História ainda estejam dispostos a depor para a História. Por enquanto, porque
estão todos muito velhos.
O coronel
aposentado Higino José Belarmino, o homem que mais combates travou com Lampião
e seu bando, durante a primeira fase do cangaço, até 1928, desistiu de ler
qualquer livro, jornal ou revista que trate desse assunto. Tem dois motivos
para isso. O primeiro é pessoal: até hoje, segundo ele, ninguém descreveu
corretamente a morte dos dois irmãos de Virgulino Ferreira, Antônio e Livino,
considerados por todos como mais violentos, ferozes e ousados do que o irmão.
Prova é que morreram logo, em combates com o então tenente Higino. O segundo
motivo – e o que mais irrita o coronel – é a sua obsessão pela minúcia. “Já
perdi a conta dos doutores (escritores, jornalistas, sociólogos) que vieram
aqui falar comigo. E esta é a segunda vez que trazem a maquininha (gravador)”.
A maioria dos entrevistadores do coronel conversava horas – até dias – com ele,
anotando um dado ou outro, geralmente datas. “Um negócio feito assim só pode
sair torto”, diz ele. O coronel está alertando, com muita seriedade, todos os
estudiosos do assunto.
A maioria dos
livros históricos – que fique claro: a maioria – ou ensaios sobre cangaceirismo
parte de premissas discutíveis (alguns até partem de preconceitos) ou escolhem,
a esmo, um determinado ângulo do fenômeno. Então temos livros que, sem maiores
explicações, rotulam Lampião de “revolucionário”, vestem-no de Robin Hood,
tratam as volantes como “forças opressivas” e, no fundo, descrevem o velho
lugar comum que leva o leitor a identificar o bandido como mocinho e
vice-versa. Se a intenção é politica, esses escritores perdem, nos seus
preconceitos, ótimos detalhes que até ajudariam a defesa de suas teses; que,
por exemplo, os métodos usados pela polícia na luta, em nada, mas em nada
mesmo, se diferenciam dos métodos dos cangaceiros. Quando o coronel Higino diz que
“eu era um boi”, fica claro sua identificação com os inimigos. A volante,
enfim, seria um grupo de cangaceiros funcionários públicos. Igualmente ferozes
e ingênuos. Outros pontos: não é possível pesquisar o cangaço sem o
conhecimento profundo da República Velha, das condições socioeconômicas do
Nordeste, na época, da psicologia do seu povo, das complicadíssimas árvores
genealógicas, os clãs, os feudos, as pequeninas máfias. Como falar de cangaço
sem o entendimento das relações estado-igreja-povo? A função dos beatos, o
messianismo, o compadrismo político, tudo isso contribuindo direta e
indiretamente para a formação dos bandos sanguinários, na verdade manuseados
por uma série de elementos que vão desde o cínico senhor feudal às relações
econômicas do Nordeste com o Centro-Sul. Há um exemplo edificante, de um homem
que pesquisa o assunto há mais de vinte anos e ainda não escreveu o seu livro:
o paulista Antônio Amaury C. Araújo.
À medida que
ele avança no conhecimento do cangaceirismo, mais dados lhe são exigidos.
Talvez uma pesquisa dessas, que além de muita cultura e paciência, obriga a
gastos inestimáveis de dinheiro, nunca venha a ser feita no Brasil. A solução
poderia estar num trabalho de equipe, financiado por uma riquíssima instituição
cultural. E alguém teria realmente interesse de esmiuçar tão obsessivamente um
período regional da História do Brasil? É fácil concluir que um trabalho assim
é impossível, mas não se pode perdoar a desonestidade (ou o despreparo, vá lá)
de alguns autores. Como é possível perdoar um “historiador” que, pelo simples
fato de venerar o Padre Cícero do Juazeiro, omita da sua “história do cangaço”
o episódio da “promoção” de Virgulino Ferreira a “capitão”?
Alguns
personagens desta página – todos da primeira fase do cangaço, a mais
desconhecida, que vai de 1914 a 1928, quando Virgulino atravessou o rio são
Francisco e foi brigar na Bahia – estão dispostos a testemunhar, depor. Ainda
podem chegar à minúcia. Mas os historiadores bem intencionados devem se
apressar: a média de idade dessa primeira fase está por volta dos oitenta anos.
A arteriosclerose começa a apagar a memória de muitos. A morte natural está bem
próxima. E logo agora que se descobre que cangaceirismo está longe de ser um
assunto esgotado pela História, como dão a entender os representantes do
sensacionalismo escrito, falado, filmado e televisionado.
Fonte: facebook
Página: Antonio Corrêa Sobrinho
Grupo: O Cangaço
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