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segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

UM COITEIRO

*Rangel Alves da Costa

O sol deitava sua língua de fogo sobre os carrascais sertanejos. Tempo quente, fervendo, abrasador. Somente às sombras dos pés de pau é que se podia ter um repouso menos angustiante depois das veredas percorridas. E assim estava aquele homem parecendo lanhado de tudo, na pele, na roupa, na alma. Mas era apenas um coiteiro depois de mais um contato.

Mas não era normal que coiteiro estivesse assim, todo rasgado e estropiado, como se de uma guerra estive se salvado por sorte. Fato é que aquele se imaginou perante a iminência de um fogo cruzado que jamais existiria. Ao menos por enquanto. Deixado o local onde o bando de cangaceiros estava arranchado, mais adiante ouviu vozes e passos pelas caatingas. É a volante, pensou. O mundo vai se acabar agora, imaginou. Então, temendo ser o primeiro alvo, embrenhou-se de tal modo entre cipós, pontas graúdas e espinhos, que nem o mais afoito bicho do mato teria mais ligeireza. Era a vida correndo perigo.

Porém não daquela vez. Não sabe bem se caçadores ou pessoas desavisadas andando por aquele território tão hostil e perigoso. Ora, por todo lado o perigo dos cangaceiros e das volantes. Logo adiante um coito nos escondidos e também veredas tantas vezes percorridas pelos volantes no encalço do bando cangaceiro. Ele conhecia aquilo tudo como a palma da mão, igualmente sabia que era besteira maior andar por ali sem algo muito importante a fazer. E ali era o seu mundo por que um dia se viu lançado na sina triste de ser coiteiro.


Sina triste e perigosa. Não bastasse o sertanejo ter uma vida tão difícil em meio às secas e estiagens, à pobreza e à desvalia de tudo, as injustiça e opressões, aos desmandos e submissões, ainda ter de se envolver numa guerra onde não era nem caça nem caçador, mas tão somente auxiliando um dos lados dessa trincheira sangrenta. Mas com sua razão de ser. O lado que ajudava e defendia era precisamente aquele que lutava com sua bandeira, o estandarte aviltado pelo poder e sua lança implacável perante o pobre homem da terra.

Num sertão onde a lei vigente era somente a escrita e reescrita pelo poder, onde os reclamos pelas opressões não possuíam respostas e os da terra eram tratados como bichos de ordem e de açoite, certamente que o homem vitimado sempre tendia ao lado que ao menos se mostrasse lutando por sua luta. E este era o lado cangaceiro. Ademais, ninguém suportava mais ter na sua porta uma força policial que sempre se mostrava com a mais bestial desumanidade. Não eram outros, senão as forças volantes, que extorquiam, que maltratavam, que sangravam, que matavam. Culpar apenas o cangaço pelo terror era não querer enxergar o mal trazido pela farda e pela patente.

Quando mais jovem, ele mesmo - naquele momento ainda estropiado debaixo do pé do pau – já havia sofrido na pele a maldade da volante. E não foi outro o motivo de enveredar como homem de apoio ao bando cangaceiro que de vez em quando se fazia presente na região. Certo dia, a volante chegou à sua porta e foi logo apontando arma. Ou dizia onde o bando estava acoitado ou pagaria com a vida. Ele não sabia sequer que os cangaceiros estavam por ali. Assim mesmo foi amarrado e levado até o tronco de uma baraúna, onde foi chicoteado até ter o corpo todo sangrado. Pensou que ia morrer. Mas ainda não havia chegado o seu dia. E assim acontecendo com inúmeros homens honestos e trabalhadores pelos rincões matutos.

Daí em diante se tornou coiteiro. Um acaso que mais tarde se tornou em ritual de passagem. Quando, doutra feita, quem bateu à sua porta foi o bando cangaceiro, ao invés de medo se sentiu encorajado para servir no que fosse preciso. Matou um bode, acabou com tudo o que tinha na despensa, mas diminuiu a fome daqueles homens de chapéus estrelados e adornos brilhosos. Mateiro, conhecedor de cada canto e recanto da região, detalhou cada local onde o bando poderia repousar sem grande perigo de ser surpreendido. Ganhou tamanha confiança que logo recebeu a incumbência de levar a cangaceirada até um destes locais. E no outro dia retornou levando mais carne fresca.

Vida difícil a de coiteiro. Servindo como elo entre o bando e o mundo exterior, não só transportava alimentos, dinheiro, armas, munições, remédios, panos e linhas, como intermediava os grandes encontros com os portentosos que subsidiavam – em troca de forjadas amizades e de proteção – a existência e subsistência daquela luta sem trégua. Por isso mesmo a implacável perseguição também ao coiteiro e a sua maestria em ser um terceiro e primordial elemento nessa guerra de fim de mundo.

Mas ele não podia pensar muito. Mesmo ferido na fuga da inexistente volante, precisava agir rápido antes que os soldados pudessem surgir a qualquer instante. Ademais, levava no bolso uma missiva das mais importantes, e nela dizendo: “Coronel Timóteo, as armas prometidas ainda não chegaram. O dinheiro também não. Já cuspi no chão. Não deixe secar. Cap. Lampião”.


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