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segunda-feira, 2 de abril de 2018

ORDENHA DAS CABRAS.


Benedito Vasconcelos Mendes

Cada um dos quatro vaqueiros da Fazenda Aracati recebia, diariamente, dois litros de leite de vaca e mais uma certa quantidade de leite de cabra, que era produzido na fazenda. Meu avô não utilizava leite de cabra, de modo que todo o leite destes animais era dividido para as quatro famílias dos vaqueiros. O leite de cabra era transformado em queijo, destinado ao  consumo familiar dos vaqueiros e o excedente comercializado nas bodegas da vila de Caracará, localizada nas proximidades da Fazenda Aracati. O aproveitamento do leite das cabras pelos vaqueiros, além de ajudar na alimentação da família, servia também como uma fonte adicional de renda.                                          

A ordenha das cabras era tarefa exclusivamente feminina. Ao amanhecer, as  mulheres dos  vaqueiros, cada uma com sua cuité, lavavam as mãos com sabão preto (sabão da terra) na cozinha da casa-grande e depois  iam para o chiqueiro dos caprinos ao lado para ordenhar as cabras. O leite era tirado com muita rapidez, com dois dedos, polegar e indicador. Quando a cuité enchia, o leite era despejado em uma lata de 20 litros (vasilhame de querosene), que ficava sobre um jirau de estroncas de sabiá, ocasião que era coado em um pano de algodãozinho. Cada cabra tinha um nome. Lembro-me da cabra de nome Atrevida, que, por ser de primeira cria, ainda não estava mansa e adestrada para a ordenha,  o que exigia que uma das ordenhadoras a segurasse pelos chifres, enquanto a outra tirava o leite. As cabras produziam pouco leite, menos de um litro, na média do rebanho. Naquela época não havia na região as raças caprinas modernas produtoras de leite. O rebanho da Fazenda Aracati era de SRD (sem raça definida), oriundo da miscigenação  de raças nativas, especialmente, das raças Canindé, Marota, Repartida e Moxotó. A fertilidade das cabras era alta, raro era o nascimento de um só cabrito por barrigada, pois o comum era nascer dois filhotes por parto, às vezes três. Uma outra característica dos caprinos é a rusticidade. O rebanho era altamente resistente às doenças e às  parasitoses, especialmente, às verminoses, além de muito adaptado ao consumo de  alimentos grosseiros e de baixo valor nutritivo. Nos anos de chuvas escassas, de pouco pasto, os caprinos consumiam até cactáceas espinhentas, pois eles conseguiam retirar, com os chifres, os espinhos do xique-xique e do mandacaru, bem como parte dos pelos urticantes do quipá e depois consumiam os cladódios suculentos. Quando se alimentavam de quipá, os animais apresentavam ferimentos nos cantos da boca, provocados por pelos cáusticos e irritantes existentes na superfície desta planta.                                                                                                
Os bovinos e ovinos  dão preferência ao consumo do pasto rasteiro, enquanto os caprinos preferem as folhas e brotos dos arbustos e  árvores da caatinga. São capazes até de subirem em galhos inclinados  de arbustos e árvores, para comer os brotos, quando esta inclinação  for acentuada e permitir a subida dos animais. Era comum se observar caprinos em pé, na posição ereta, com as patas dianteiras apoiadas na copa, tentando comer  as folhas de forrageiras arbustivas  ou arbóreas. Aqui e acolá, morria um animal com a pata anterior  enganchada (presa) em alguma forquilha dos ramos da copa. Por não conseguir se libertar, depois de alguns dias contido, o animal morria de sede e de fome, sob o sol escaldante.                                                                                                                                                                                         
O leite e o queijo apresentavam  um cheiro muito forte, odor  próprio de pai-de-chiqueiro,  pois o bode (reprodutor) permanecia no mesmo chiqueiro onde se ordenhava as cabras. Atualmente, atenua-se este cheiro indesejável retirando-se  o bode do ambiente da ordenha, pois este cheiro típico  é produzido por uma glândula existente no macho reprodutor e este odor é facilmente absorvido pelo leite.                                                                                             
Diferentemente do que ocorre hoje, o  preço do quilo de queijo de leite de cabra era menor do que o de leite de vaca. O queijo de cabra, naquela época, era  considerado, na região, um queijo de inferior qualidade. O mesmo ocorria com a carne de caprino, que era mais barata e considerada de qualidade inferior, quando comparada com a carne de boi.                                                             

Os caprinos, ao lado dos  ovinos deslanados tropicais, são os mamíferos domésticos mais rústicos que criamos no Semiárido nordestino. Para combater as verminoses nestes animais era usado um vermífugo natural, conhecido vulgarmente como Batata-de-purga (planta nativa do Nordeste brasileiro). As bicheiras causadas pelas larvas da mosca varejeira eram curadas com óleo queimado (óleo lubrificante usado). 

Para o empanzinamento usava-se o vinagre. Na  década de 1950, os remédios de uso veterinário eram quase todos naturais, pois ainda não existiam, no comércio regional, muitos medicamentos industrializados.                                
A Fazenda não tinha aprisco elevado, os caprinos dormiam em chiqueiro sem cobertura, feito de madeira deitada e trançada (cerca de faxina). O esterco não era retirado de dentro  do chiqueiro. O leite das cabras era tirado neste ambiente sem higiene, com muita poeira no verão e muita lama no inverno. 
                                                                                        
Socialmente, a criação extensiva de caprinos no Nordeste do Brasil apresenta duas desvantagens: uma é a facilidade de roubo, que já faz parte da cultura regional,  e a outra é a dificuldade de conter os animais pelo uso de cerca de arame farpado. O costume de roubar caprinos e ovinos está arraigado no cotidiano de muitos sertanejos. A contenção de caprinos por cercas é difícil, pois mesmo se usando 10 fios de arame farpado (em cerca para bovinos, usa-se 6 ou 7 fios) ainda é difícil evitar que eles saiam da propriedade. No passado, muitas brigas, inclusive com mortes, entre fazendeiros vizinhos foram causadas por invasão de caprinos nos roçados (plantio de milho, feijão, batata-doce, melancia, jerimum e outras culturas). Alguns proprietários malvados reagiam a invasão de suas plantações, por caprinos  do vizinho, com a condenável prática do “rejeto”, que era o cruel e doloroso suplício provocado aos animais, pelo corte dos tendões das patas, que invariavelmente levava à morte, já que impedia  a locomoção dos animais. Os caprinos caiam e permaneciam deitados até morrerem,  no próprio  local onde era praticado este  abominável crime. No passado, os caprinos foram pivôs de muitas desavenças entre fazendeiros vizinhos, ou seja, entre o proprietário dos animais e o proprietário da terra invadida, que em muitos casos terminava em morte.

Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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