Por Hérlon Fernandes Gomes
Hoje, no
aniversário de Brejo Santo, compartilho com vocês do primeiro capítulo de Quem
Matou Chico Chicote? Uma novela sobre o "Império do bacamarte"
(ou seria um romance?), que explora o episódio
do Fogo das Guaribas, ocorrido em 1927. Boa leitura.
CAPÍTULO
I - INFÂNCIA
Donina pôs a
mão no peito para segurar a dor daquela visão. Sentia que ia desfalecer.
Manuelzão vinha às pressas com seu filho nos braços, Chico, de doze anos.
Acompanhavam-nos um séquito de mais uns seis homens, todos envolvidos na
escavação de uma cacimba ali nas proximidades. A senhora pôde observar, também,
que Domingos, o moleque de mandados e de recados, trazia arrastada pela estrada
uma cobra morta. - Uma cascavel, Donina. A traiçoeira tava entocada num pé
de juá. Pegou o menino. Só ouvimos o grito. Mas ele tá vivo!
A mãe, aflita,
nada conseguia verbalizar. Em sua cabeça só aparecia a figura de Araci, uma
velha índia mestiça, grande curandeira daquelas bandas, tantas vezes lhe
socorrera em situações difíceis. - Mandem buscar Dona Araci, já! Minha Nossa
Senhora! Coloquem o menino na cama. O garoto estava mais para outro mundo
do que para este. Uma febre alta fervia seu corpo. Donina lembrava que há menos
de um ano uma cobra igual dera fim a um cavalo da fazenda... O pensamento
fazia-a intensificar os argumentos de suas orações, para todos os nomes de
O marido
chegou esbaforido. Tinha sido informado do acidente. Encarou o desespero da
mulher, tentou exprimir um olhar de confiança, embora soubesse que só um milagre
salvaria o filho. Em um discurso mental, repreendia o filho. Que menino mais
atentado! Poderia estar na escola, como os irmãos! Incutiu de se meter com as
coisas dessa cacimba. Não fazia dois meses que quase havia morrido naquela
peraltice de tirar mel de um enxame... Agora de novo... Se tivesse lhe dado
ouvidos... Jovino percorria a estrada em trote largo. O patrão lhe
entregou o melhor cavalo. De longe pôde divisar Araci a varrer o terreiro. A
velha fez um olhar de insatisfação ao receber aquele portador, pois lhe
adivinhava que precisava deixar sua tapera e a calma da sua solidão. Mas era o
dever chamando.
Arrumou um
pequeno matulão com seus saquinhos de ervas e vidros com suas poções
misteriosas e, por último, sua memória centenária lembrou que precisava cumprir
uma diligência no meio do caminho, em busca da cura. Era um preparo difícil,
ela não tinha mais idade para rituais dessa espécie...Pediu para que o
desconfiado capataz a suspendesse na garupa do burro. Recomendou prudência com
a velocidade, pois suas juntas enferrujadas de artrite poderiam não suportar.
Um sacrifício desses, só sendo pra Donina. A caridosa senhora lhe compensava
com justeza as rezas que fazia nos seus filhos.
Em determinada
parte do caminho, ordenou que o rapaz parasse o cavalo e a arriasse nas
proximidades de um brejo, onde se empoçava a água de um riacho. O encarregado
sem indagar, cumpriu o pedido da velha. No seu vagar, a senhora levantou a
barra do vestido até pouco acima dos joelhos e entrou na água lamacenta.
Permaneceu em silêncio por cerca de cinco minutos. Jovino, em busca de entender
o que acontecia, benzia-se sem parar. Dona Araci era cheia de magia, respeitada
e temida naquelas bandas. Ou se salvavam por suas rezam, ou se perdiam nas suas
pragas. Que tipo de oração era aquela? Surpreendeu-se ao ver as pernas da
rezadeira, ao sair da água, apinhada de prastadas negras, que a ela destacava
uma a uma, deixando fios de sangue nos cambitos engelhados. Eram sanguessugas.
- São
suficientes. Vou precisar de pelo menos uma dúzia dessas para limpar o sangue
do garoto. Se houver tempo...Os horrendos bichos foram depositados dentro de
uma cabaça com água. - Se apresse e me ajude, Jovino.
Desde quando
foi avisada do que havia sucedido ao menino, sabia que era caso difícil, mas
não poderia dizer impossível. Às vezes os santos, com a intervenção das coisas
sagradas podiam conseguir uma segunda chance, um milagre, uma saída. Era o
jeito ouvir o que tinham a dizer os espíritos da mata. Achegou-se perto da
cama, tomou o pulso do menino, sentiu a temperatura de seu corpo: crepitava em
febre e respirava imperceptivelmente. O veneno já lhe arroxeava a brancura da
pele. Era preciso agir rapidamente. Avaliara a necessidade de se fazer umas
Juntou um
molho de galhos de pinhão roxo, fez o sinal da cruz e passou a encampar uma
batalha invisível sobre o corpo desnudo de Chico, interrompida por suores
intensos e um eterno balbuciar de palavras, nomes sagrados de um linguajar
ininteligível. Abriu os olhos, acendeu um boró, e passou a dispor as
sanguessugas em uma simetria misteriosa no corpo do infante. Aquele veneno
maldito e peçonhento misturava-se ao sangue do menino, misteriosamente forte,
afinal, a cobra não sobrevivera ao próprio bote. Estranho tudo aquilo. O menino
tinha um sangue valente. Seu destino se desenhava trágico... A índia sentiu os
velhos espíritos da mata lhe segredarem coisas horríveis: um mar de
sangue... Após horas e horas de transe e dezenas de folhas de pinhão
murchas espalhadas pelo chão, a última sanguessuga despregou-se morta do corpo
de Chico.
Exausta e
cambaleante, a centenária apoiou-se no braço de Donina e vaticinou: - Seu
menino tem uma luta difícil a travar pelo resto da vida. Ele tem um destino...
Agora esse veneno temperou-lhe o gênio. Há certas coisas na vida que não
podemos evitar. Entregue-o às bênçãos de uma Santa Maria para que não lhe falte
luz. Queime essas folhas secas de arruda, deixe essas janelas abertas. Amanhã
ele estará bom novamente. A mãe pouco prestou atenção àquele mistério.
Bastava-se lhe a tranquilidade daquela promessa, de que ele estaria bem.
O menino
acordou fraco, mas sem febre. A primeira pergunta que fez foi sobre se já
tinham terminado de cavar a cacimba. O pai riu, Donina passou a recomendar que
o filho caçula, depois daquele livramento, tivesse uma rotina de vida igual a
dos quatros irmãos, de escola e catecismo. Chico prometeu cumprir o pedido
materno, todavia, duas semanas depois, seus pais receberam a visita do
professor Mino Krebs, preocupado com a saúde do menino, afinal, há dias os
irmãos Manuel, Joaquim e João informavam que o irmão não comparecia porque
estaria doente.
A inesperada
visita acabou delatando as mentiras de Chico e lhe rendeu uma surra do pai.
Afinal, descobriu-se que o filho faltava às aulas, para jogar pião e empinar
pipa com as crianças, em um campo de várzea, onde todos tinham como única
preocupação a brincadeira. Para comprar o silêncio dos irmãos, prometia-lhes
piões e pipas que arrebataria nas competições às quais se destacava como exímio
ganhador.
Diante desse
cenário, após se aconselhar-se com o Padre Abath, Donina convenceu Francisco
que o filho deveria ser educado em um ambiente mais rígido de disciplina e, a
contragosto do menino, mandaram-no ao Seminário do Crato, cerca de vinte léguas
de casa.
Seminário
Episcopal do Crato, 13 de Abril de 1894
Ilustríssimo
Senhor Capitão Francisco Pereira de Lucena,
Por meio desta
missiva que segue com o portador, venho explicar os motivos que levaram a
direção a afastar o menino Francisco, seu filho, do quadro de alunos desta casa
de venerandas e ilustres tradições.
Com efeito, a
vocação sacerdotal é um chamado, do qual o seu filho não aparenta
aptidão. Ontem, tive de intervir energicamente contra uma contenda
envolvendo seu filho que, após discussões frívolas com o também interno Horácio
Teixeira, se armou de um punhal, passando a investir contra a integridade
física do outro garoto, não consumando seu intento porque me pus entre os
adversários.
Este lugar é
um ambiente em que a paz deve ser regra de ouro, firme nos ensinamentos do Pai,
motivo pelo qual tenho a desagradável incumbência de informá-lo sobre a
expulsão do discente Francisco Pereira de Lucena, por conduta
incompatível com os
preceitos deste Seminário.
Deus abençoe a
V.M. e a toda sua família.
Dom Quintino
Rodrigues de Oliveira
De volta ao lar, o menino Chicote sentiu que poderia respirar novamente, longe daquele ambiente sufocante de paredes altas e silêncio mórbido, cheio de rotinas enfadonhas e atividades que não lhe rendiam nenhum prazer. Nascera para correr livre, para montar seu cavalo. Estava livre. Prometera a si mesmo, pela milésima vez, que se comportaria; tentaria segurar seus impulsos de raiva e altivez que lhe renderam por último aquele desgosto dado ao pai. No lombo de Furacão, percorreu as terras da família avaliando os descuidos que sua ausência, de poucos meses, trouxe. O velho pai tinha era é de ter consciência que ele era muito mais útil ali, para executar com zelo os comandos que precisavam ser feitos.
O velho
Francisco, entretanto, respeitado pela comunidade inteira por sua patente de
capitão, temia aquele espírito indomável e beligerante do filho, em sempre
querer impor as próprias vontades a tudo. É bem verdade que o rapazinho não era
preguiçoso. Realmente nascera para os negócios. Encaminhara o menino ao
Seminário por insistência de Donina, apegada à crença de que a fé nos
ensinamentos cristãos abrandassem aquele temperamento inconsequente.
Continua...
Hérlon
Fernandes Gomes
Pesquisador e escritor
Brejo Santo, Ceará
Pesquisador e escritor
Brejo Santo, Ceará
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