O escritor
cearense Franklyn Távora (1842-1888), ligado a Tobias Barreto e à Escola do
Recife[1], idealizou um protótipo de
cangaceiro, o Cabeleira (título do livro). Trata-se do imaginário
José Gomes. Este personagem, o Cabeleira, perambulou pelo interior do
Pernambuco, injustiçado, tentando levar para os menos favorecidos uma justiça
que o Estado e os poderosos se negavam a implementar. É de alguma forma um
antepassado remoto do herói do sertão, um bandido social, tipologia que foi
também explorada por Eric Hobsbawn.
Eis o
personagem, na descrição do escritor cearense: “O Cabeleira chamava-se José
Gomes, e era filho de um mameluco por nome Joaquim Gomes, sujeito de más
entranhas, dado à prática dos mais hediondos crimes. ”[2] Além de idealizar um anti-herói,
cujo ambiente familiar vincula-se a um sujeito metaforicamente prenhe de más
vísceras, Franklyn Távora, ao longo da obra, também inventou um juiz
ventríloquo das ordens dos mais fortes. Assim: “(...) mais sou eu acaso juiz?
Não sou mais do que o executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi
um criminoso, para o qual, se a mim competisse julgá-lo, teria eu uma condenação
mais branda. Mas o direito de o mandar ir embora não o tenho eu. ”[3]
Franklyn
Távora insurgiu-se contra a (in) justiça de sua época, e sua obra traduz um
desencanto. É um crítico. Ao narrar a execução do Cabeleira, o escritor
cearense valeu-se de imagens fortes para criticar uma justiça cega, se é
possível um equívoco malicioso: “O juiz nomeado pelo Governador para assistir à
execução em conformidade do disposto na provisão régia, ordenou que o escrivão
repetisse a leitura da sentença. Os delinquentes ouviram pela vigésima vez, com
sincera contrição, esse padrão do absolutismo colonial. ”[4] E após a execução da sentença:
“Cena bárbara que enche de horror a humanidade, e cobre de vergonha e luto,
como tantas outras, a história do período colonial! ”[5]
Para Franklyn
Távora os efeitos pedagógicos da pena eram nulos: “A execução do Cabeleira e
seus corréus não atalhou as desordens e delitos, a que se refere a provisão;
não trouxe terror nem emenda aos malfeitores. ”[6] E zurziu a pena de morte, em
passagem bem atual: “Ah! Meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes
têm demonstrado não ser mais que um crime jurídico, de feito não corrige nem
moraliza. O que ela faz é enegrecer os códigos que em suas páginas a estampam,
por mais liberais e sábios que sejam como é o nosso; é abater o poder que a
aplica; é escandalizar, consternar e envilecer as populações em cujo seio se
efetua. ”[7]
Franklyn
Távora imputou à sociedade os crimes que a justiça condenava. Escreveu: “A
justiça executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na
ignorância e na pobreza. Mas o responsável de males semelhantes não será
primeiro que todos a sociedade que não cumpre o dever de difundir a instrução,
fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza? Se a sociedade não
tem em caso nenhum o direito de aplicar a pena de morte a ninguém, muito menos
tem o de aplicá-la aos réus ignorantes e pobres, isto é, àqueles que cometem o
delito sem pleno conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade.
”[8]
Aqui a
singular posição de Franklyn Távora. Raivoso para com o sistema o qual, a seu
ver, reproduzia a miséria, verdadeira causa do chamado comportamento marginal,
legou-nos uma obra genuinamente brasileira, reveladora de nossas mazelas, e de
pontos recorrentes que nos cobrem de insatisfações e frustrações. Ler este
livro de Franklyn Távora, ainda hoje, é um encontro com um tipo ideal — ainda
que literário — que transita por nossos rincões e grandes cidades. Os
injustiçados estão entre nós, porque a injustiça também está em nós, ainda que
clamemos, o tempo todo, que a buscamos a justiça, todo o tempo.
1 Nesse particular, conferir,
especialmente, Aguiar, Cláudio, Franklyn Távora e o seu tempo, São Caetano
do Sul: Ateliê Editorial, 1997, pp.69-88.
2 Franklyn Távora, O
Cabeleira, São Paulo: Ática, s.d.,pág. 19.
3 Franklyn Távora, O
Cabeleira, pág. 150.
4 Franklyn Távora, O
Cabeleira, pág. 153.
5 Franklyn Távora, O
Cabeleira, pág. 154.
6 Franklyn Távora, O
Cabeleira, pág. 155.
7 Franklyn Távora, O
Cabeleira, pág. 155.
8 Franklyn Távora, O
Cabeleira, pág. 155.
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