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segunda-feira, 26 de maio de 2014

DOS RETRATOS NA MEMÓRIA

Por Rangel Alves da Costa*

Não pretendo contar um causo, abordar sobre conceitos e teorias nem tecer filosofias acerca da realidade do mundo e da vida. Quero apenas falar de minha história através da lembrança de meu povo, de minhas raízes sertanejas. Da porta de casa pra dentro e do batente pra fora, muito hei que recordar.  

Minha mãe era do lar, como se dizia por lá. Mesmo estudada, preferiu se dedicar a casa e à família. Cozinhava, bordava, sonhava, era feliz, ainda que tenha encontrado muitos espinhos na estrada. Deixou sete filhos e um bocado de netos. E também uma saudade danada.

Conheci Adília, aquela mesma cangaceira do bando de Lampião, esposa de Canário, que havia deixado a vida de luta sangrenta de coito em coito, de emboscada em emboscada, com uma marca de bala na perna que quase estraçalha tudo. Era humilde, simpática, sorridente com os amigos e em quem confiava. Apenas uma sertaneja com suas memórias esvoaçando nos varais do tempo.

Meu pai era autodidata, mas se fez doutor em tudo que colocou a mão. Foi líder político, prefeito por três gestões, compositor, escritor, radialista, cronista maior do sertão, do seu povo e sua história. Incansável pesquisador da saga cangaceira, deixou escritos que desvendam verdades e desnudam mentiras. Continuará sempre lembrado e festejado como o guardião maior da saga do povo sertanejo.
Conheci Sinhá Constância, ou simplesmente a Velha Constância, mulher de grandes posses nos tempos idos, mas cujo destino lhe reservara a solidão e o abandono. Vivia solitária numa choupana nos arredores da cidade, daí saindo nos dias de feira para clamar pela sobrevivência. Estendi-lhe a mão, e o coração. E nem conhecia bem o cenário de fundo de sua história, eis que mãe de um dos maiores homens nascidos em terras sertanejas: Zé de Julião, ou Cajazeira no bando de Lampião. Este mesmo que após sair com vida da chacina de Angico não conseguiu vencer as injustiças humanas, as covardias e as ingratidões. Sonhou ser prefeito de seu lugar, de seu Poço Redondo, e por isso foi perseguido e morto através das mãos injuriosas da política. E como queria tê-lo conhecido!


Meu avô paterno era homem de sangue no olho, de poucas palavras e muitas ações. Comerciante, fazendeiro, caçador, não sabia ler nem escrever. Mas ninguém fazia medição de terra melhor que ele. Também não errava no nome nem na conta de quem lhe devia. Um apaixonado pelo sertão, se comprazia em ouvir repentes e seguir como romeiro para os lados do Juazeiro do Padim Ciço. Era devoto sem querer deixar transparecer.

Conheci Abdias, Mané Cante, Tião de Sinhá, João Paulo, Humberto, Chico de Celina, os da família Vítor, e tantos outros sertanejos hábeis nas lides da vaqueirama, da montaria agalopada, do aboio, no trato da terra e do animal, nos afazeres daquele mundo de lua e de sol. Dialoguei histórias sem fim, proseei palavras matutas pelo prazer da sabedoria naquele povo. Bebi da mesma casca de pau, mordi o mesmo umbu e ainda trago comigo aió e embornal cheio de relatos e de saudades daqueles encontros inesquecíveis.

Meu avô materno era bodegueiro, amigueiro, honrado pela amizade que mantinha com Lampião. Figura proeminente na povoação poço-redondense, abria as portas de sua residência para repasto e repouso de muita gente afamada. Foi em sua casa, sob as bençãos milagrosas da panelada sertaneja de minha avó Marieta, que o Capitão do sertão dividiu a mesma mesa com o Padre Arthur Passos, no célebre episódio conhecido como o encontro do mosquetão e da cruz. Depois da gulodice do regabofe, o bando de Lampião foi assistir missa celebrada pelo vigário. Mas com a condição de todo o armamento pesado ficasse do lado de fora. Dizem que foi assim. E foi mesmo.

Conheci Mané Félix, aquele mesmo reconhecido como um dos coiteiros mais confiados pelo Capitão Lampião. Dizem que o líder cangaceiro lhe confiava os passos e os segredos sem temer fraqueza ou traição. Era homem simples, de elevada estatura, mas lentamente caminhando pelas marcas do tempo e tendo sempre na cabeça seu chapéu de couro cru. De vez em quando batia na porta de casa e perguntava por Alcino, meu pai. E lá de dentro sempre ouvia que se sentisse à vontade que dali a pouco tinham muito que conversar. Não demorava muito e os dois já percorriam nas palavras os caminhos sertanejos, as veredas de um tempo de vinditas e padecimentos.

Conheci tantos e tantos e muito mais. Conheci os meus e conheci muita gente cujo sangue sertanejo nos tornava uma só família, uma só raiz. E guardo as feições e as palavras como retratos persistentes na minha memória e no meu olhar ao passado. Por isso sou de hoje e de ontem. E em mim nada é esquecido se faz parte do meu mundo e da minha história.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Anônimo09:55:00

    Pois é amigo Mendes, o nobre Escritor, Poeta e Advogado Rangel Alves da Costa, embora residindo na Capital do seu Estado, tem muita aproximação com o Torrão que lhe viu nascer - Sua querida POÇO REDONDO - Terra do Político e Escritor ALCINO COSTA, de saudosa memória.
    Tenho tido a grata satisfação de arquivar as crônicas e artigos escritos pelo amigo Rangel há alguns anos.
    Abraços,
    Antonio Oliveira - Serrinha

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