Por Rangel Alves
da Costa*
Considero os
personagens de romances, contos e pequenas histórias como seres que possuem
vida própria. Nascem com características humanas próprias, ganham personalidade
e destino, e percorrem sua trajetória até o ponto final. E neste momento,
dependendo da força criativa do autor, ganham a imortalidade.
Contudo, não
só pela força criativa do autor, mas também, e talvez principalmente, pela
oportunidade que ele tem de tirar seus personagens da gaveta e colocá-los na
liberdade dos livros publicados. Ora, os personagens precisam viver,
sobreviver, ser vistos, reconhecidos, amados ou odiados, e até copiados, para
alcançar a imortalidade.
Comungo da
existência dessa imortalidade mesmo naqueles personagens que não têm a
oportunidade de ganhar a liberdade através da publicação de seu mundo. Mesmo
relegados ao esquecimento, ao abafado mundo das gavetas e baús, sufocados
dentro das páginas tantas vezes reescritas, não deixam de ter características e
personalidades próprias, de serem tão reais naquele microcosmo ficcional.
É lamentável
que ainda vivamos em um país onde escritores – e excelentes contistas,
prosistas, romancistas e poetas –, na maioria das vezes não possuem qualquer
oportunidade de publicar seus livros, de dar liberdade aos seus personagens,
cujas vidas passam a se resumir aos escuros mofados das gavetas. São
escritores, mas ao mesmo tempo carrascos e algozes de seus próprios
personagens.
Ora, ao criar
seus personagens, dando-lhes vida e destino, logo imaginam agindo perante a
imaginação do leitor. Sem tal exteriorização, sem que as criaturas deixem de
viver apenas nos originais, tudo se torna num difícil e terrível dilema para
aqueles que cortam a noite e adentram a madrugada dando o sopro de vida e da
ação a inúmeros seres. E fazê-los nascer sem ter a mínima certeza que algum dia
suas criaturas encontrarão a liberdade perante os olhos dos leitores.
Aquele que
escreve e tem condições de arcar com os custos altíssimos da publicação ou
lançamento de um livro, ou, por via sempre mais desejável, consegue patrocínio
suficiente para editar sua obra, certamente proporcionará a liberdade merecida
aos seus personagens. Tirando-os das gavetas, dos baús ou de onde permaneciam
sufocados, coloca-os perante a imortalidade. E isto porque o escrito e
publicado possui a perenidade do próprio valor da obra. Daí ser possível a
imortalidade.
Como já
afirmado, diferentemente ocorre com aquele que, mesmo produzindo uma obra
grandiosa e de garantida acolhida se publicada, se vê totalmente
impossibilitado de levar ao público sua arte literária, sua criatividade para o
desenvolvendo de enredos e tramas, sua força para dar contextualização àquilo
que numa noite de insônia começou a gerar. Noite de insônia ou no ofício do
dia.
Então, além do
problema pessoal gerado pelo sentimento de falta de apoio, e por consequência o
impedimento de que seja lido e reconhecido o valor de sua obra e seu próprio
valor enquanto criador, então começa a surgir um problema que reputo ainda
maior. E este diz respeito à destinação dada àquilo que as circunstâncias não
permitem que seja aproveitado.
As gavetas
acolhem silenciosamente as vidas que não alcançaram a devida libertação. As
traças e cupins festejam e começam a devorar uma a uma aquelas vidas e seus
destinos. As tramas, enredos e contextos se distorcem de dor até perderem a
razão de permanências, as motivações de suas existências. E os autores, verdadeiros
deuses da criação, forçados que são a aceitar as negações impingidas, enterram
seus mortos dentro da própria alma.
Lamentável que
seja assim. E igualmente triste saber que neste momento inúmeros personagens
sopram seus últimos instantes de vida, ameaçados que estão pelas traças que
povoam a escuridão dos esquecidos.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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