Por Dilton Cândido Santos Maynard
Coronel Dermiro Gouveia
Era um homem
temido e extremamente sedutor. Dizem que tinha ímã nos olhos e detestava gente
preguiçosa. Quando ia à cidade, vestia-se elegantemente, com direito a bengala
e cartola. Estava sempre perfumado. No sertão, manejava com habilidade o
chicote e sabia fazer-se respeitar. Em todo o Nordeste, chamavam-no coronel
Delmiro Gouveia, ou simplesmente “coronel dos coronéis”.
Em meio à
pobreza e ao atraso do sertão, Gouveia criou a usina hidrelétrica Angiquinho,
encravada nas paredes de uma cachoeira, para obter eletricidade das águas do
Rio São Francisco. Com a energia, impulsionou a Companhia Agro-Fabril Mercantil
(CAM), conhecida como Fábrica da Pedra — a primeira a produzir linhas de coser
no país.
Delmiro
Augusto da Cruz Gouveia nasceu em 5 de junho de 1863 em Ipu, Ceará. Órfão de
pai, mudou-se ainda criança para Recife. Depois de perder a mãe, em 1877, caiu
no mundo, dedicando-se a vários ofícios: foi tipógrafo, trabalhou na Brazilian
Street Railways Company, virou mascate e chegou a despachante de barcaças no
Cais de Ramos. Por fim, ingressou no negócio de peles de bode, carneiro e
cabra, criando, em 1896, a Delmiro & Cia. Segundo o escritor Graciliano
Ramos (1892-1953), Gouveia “adquiriu tanta habilidade que poderia, segundo
afirmam os tabaréus, esfolar uma cabra viva sem que ela percebesse que estava
sendo esfolada”.
Atacando
ferozmente a concorrência, em pouco tempo o jovem empresário figurava nos
jornais como o “Rei das Peles”, tornando-se o único exportador de couros do
Nordeste para os Estados Unidos. Os lucros lhe trouxeram uma vida de fausto:
sua residência, a Vila Anunciada (assim batizada em homenagem à primeira
esposa), foi transformada em um espaço para grandes festas e saraus.
Apesar de não
vir de família tradicional e de possuir pouca instrução, Gouveia tornou-se
presidente da Associação Comercial de Pernambuco. Seu figurino era elegante:
ditou moda com os “colarinhos Delmiro Gouveia”, tinha um apreço todo especial
por roupas brancas e perfumes importados. A fama de negociante próspero logo foi
acompanhada pela de galanteador que enviava rosas e bilhetinhos apaixonados às
amantes.
Delmiro
visitou a Exposição Universal de Chicago, em 1893, e voltou de lá com a cabeça
cheia de idéias. Provavelmente, a experiência inspirou-lhe a criação do Derby,
um mercado com 129 metros de comprimento por 28 de largura, 18 portões, 112
janelas e venezianas, e um restaurante. Funcionavam no Derby 264 boxes, todos
com balcões de mármore, onde se vendiam hortaliças e verduras.
Os visitantes
que desembarcavam no porto de Recife eram transportados pelo leito do Rio
Capibaribe para um hotel construído próximo ao mercado. Mas a grande atração
era mesmo a iluminação elétrica, inédita na cidade. O público lotava o mercado
para experimentar os carrosséis e divertir-se com as barracas de prendas, o
teatro, as regatas, além do velódromo para ciclismo. Para muitos, o Derby foi a
versão pioneira de um shopping center no Brasil.
Do prefeito
José Coelho Cintra (1843-1939), Delmiro Gouveia obteve isenção de impostos e
outros favores, mas os privilégios não foram suficientes para que mantivesse o
empreendimento por muito tempo. No dia 2 de janeiro de 1900, o Derby ardeu em
chamas. O misterioso incêndio teria sido uma resposta à ousadia do empresário,
que eliminava intermediários baixando os preços, e certa vez chegou a atacar a
bengaladas o senador Francisco Rosa e Silva (1857-1929), poderoso líder
político pernambucano e então vice-presidente da República. Delmiro acabou
preso, acusado de ter ordenado o fogaréu para receber o seguro.
Inocentado,
passou por uma séria crise conjugal. Para fugir do redemoinho, viajou para a
Europa, ficando cerca de um ano longe dos negócios, que iam mal, e do
casamento, que desmoronara. Quando, enfim, retornou ao Brasil, estava falido.
Em um ato
intempestivo, Gouveia resolveu raptar a menor Carmela Eulina do Amaral Gusmão,
por quem se apaixonara. A moça era filha do governador de Pernambuco,
Segismundo Gonçalves (1845-1915), importante aliado de Rosa e Silva. Alguns
biógrafos sugerem que Eulina (futura mãe de três filhos seus) foi a “vingança
de saias” aplicada por Delmiro em Segismundo, pelos ataques aos seus negócios.
Fugindo para
Alagoas, Gouveia estabeleceu-se na cidade de Água Branca, onde recebeu apoio
das poderosas famílias Torres e Luna e retomou o negócio de peles e couros.
Recuperou-se dos prejuízos, e em março de 1903 fixou-se na Vila da Pedra.
Próxima ao sítio que comprou na região ficava a cachoeira de Paulo Afonso. O
que lhe inspirou um plano ousado: a partir da queda d’água, construir uma hidrelétrica
para fornecer energia ao Recife, sua antiga morada, e a outras cidades do
Nordeste. Tudo arquitetado, Gouveia associou-se a americanos para viabilizar o
projeto. Mas nem tudo saiu como o esperado. O governador Dantas Barreto
(1850-1931) teria dito ao negar a concessão: “O negócio é bom. Tão bom que deve
esconder alguma velhacaria!” Os americanos pularam fora, mas Gouveia levou a
idéia adiante, limitando-a às suas terras.
Enquanto a
hidreletricidade era ainda assunto de revistas, Gouveia, de arma em punho,
obrigava seus empregados a descer pelo abismo de Paulo Afonso para instalar a
usina. A energia obtida moveu a Fábrica da Pedra, que prosperou alavancada
pelos tempos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os carretéis ingleses
passaram a sofrer uma inesperada concorrência no mercado nacional, com o rápido
crescimento das linhas marca Estrela. No exterior, Gouveia lançou a linha
Barrilejo. Sua clientela estrangeira incluía Chile, Argentina, Peru, Bolívia,
Antilhas e Canadá.
O negociante
modificou a paisagem do sertão alagoano. A vila pulou de menos de uma dezena
para cerca de 250 casas, com uma população de quase cinco mil pessoas. As
bebidas alcoólicas foram proibidas — mas isso, evidentemente, não valia para o
rei das peles: instalado em um confortável chalé, abastecido de champanhes
caros e vinhos de Bordeaux, tornou-se o “senhor da Pedra”. Seus cinco
automóveis, os primeiros a cruzar aqueles sertões, assustavam os camponeses.
Junto com a indústria, levou para a pequena localidade a máquina de gelo, o
telégrafo, o cinema (como ingresso das crianças, cobrava o boletim escolar com
boas notas), o carrossel, a tipografia, bandas de música e a jornada de
trabalho de oito horas, com folgas aos domingos.
A fábrica
possuía uma vila operária, onde Delmiro impôs normas rigorosas aos moradores.
Havia horário para fechar as portas, vistoria da higiene nas casas e multas
para quem cuspisse no chão. Das moças, o cearense exigia vestidos abaixo dos
joelhos e cabelos arrumados. Os filhos dos empregados eram obrigados a estudar
— se faltassem, os pais recebiam duras advertências. Todos deveriam andar
sempre asseados. Arno Pearse, observador estrangeiro, registrou que os
operários iam para o trabalho “mais bem vestidos do que o europeu médio no
domingo”.
Quando dispunha
de tempo, Gouveia fiscalizava pessoalmente o funcionamento de tudo. O perfume
forte denunciava sua presença, deixando os empregados em pânico. Deslizes
freqüentemente levavam os infratores aos troncos das baraúnas próximas à
fábrica. Há relatos de empregados que “fizeram mal” a alguma trabalhadora, e
após um dia amarrados na árvore, aceitaram o “conselho” do coronel e se
casaram, apadrinhados pelo próprio. Talvez por isso, Mário de Andrade
(1893-1945) tenha escrito que “Macunaíma (...) pensou em morar na cidade da
Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia, porém lhe faltou ânimo. Para viver lá,
assim como tinha vivido era impossível”.
Mas se em
muitos despertavam temor, as atitudes enérgicas do empresário eram, para
outros, simplesmente inaceitáveis. Fosse por desavenças pessoais, fosse por
interesses comerciais contrariados, a pele de Delmiro Gouveia estava a prêmio.
Aos 54 anos, era um cabra marcado para morrer. E driblar este destino foi um
golpe que o magnata não soube dar. “Foi covardemente assassinado a tiros de
rifle o grande industrial Delmiro Gouveia, uma das existências mais úteis e
laboriosas do Brasil atual”, alardeou a Revista da Semana. Os três tiros foram
disparados quando o empresário lia jornal na varanda de seu chalé, no dia 17 de
outubro de 1917. Em sua homenagem, a revista lembrava que ele “foi
estabelecer-se próximo à cachoeira de Paulo Afonso, criando a Vila da Pedra,
hoje em dia transformada pela sua energia ciclópica num dos mais importantes
centros rurais e industriais do país, numa verdadeira civilização encravada
dentro da barbárie do sertão nordestino”.
De Mário de
Andrade, o acontecimento mereceu o seguinte comentário: “Teve o fim que
merecia: assassinaram-no. Nós não podíamos suportar esse farol que feria os
nossos olhos gestadores de ilusões, a cidade da Pedra nas Alagoas”.
Em seu
testamento, Delmiro deixou uma fortuna calculada em quatro mil contos de réis.
E exigiu: “Quero que meu corpo seja inumado em cova rasa, sendo meu enterro
feito sem pompa alguma e dispenso também todos os sufrágios e quaisquer outras
solenidades”. Assim foi feito. A banda local acompanhou o féretro, mas, além
disso, nada mais houve.
Foram presos
dois suspeitos, que confessaram um crime que não cometeram após muita tortura.
Ao que tudo indica, a ordem partiu de coronéis da região. O processo-crime,
revisto anos depois, está repleto de falhas e, para alguns, é um belo exemplar
de erro jurídico.
No ar, ficou a
suspeita de que o assassinato fora encomendado pela Machine Cottons, grupo
inglês que fez uma férrea campanha para adquirir a Fábrica da Pedra e retomar o
monopólio no negócio de linhas, perdido durante a Primeira Guerra. Delmiro
negou-se a vender a companhia. Anos após a sua morte, o trust finalmente
comprou a fábrica. Os novos donos chocaram a população da Pedra: várias
máquinas da CAM foram quebradas e jogadas no leito do Rio São Francisco.
Delmiro
Gouveia virou mito. O homem um dia acusado de velhacaria tornou-se um mártir da
indústria nacional, vítima do “atraso” sertanejo e da pressão do capital
estrangeiro. Embora exista mais de uma dezena de biografias dele, como num
romance policial sua vida tem lacunas intrigantes. Ainda assim, exposições,
histórias em quadrinhos, filmes, ruas, avenidas e até a Vila da Pedra, hoje uma
cidade, levam seu nome. Imponente entre as rochas, Angiquinho lembra as
mudanças ocorridas no sertão. Projetada sobre ela, a sombra do coronel dos
coronéis ainda passeia impetuosa.
Dilton Cândido
Santos Maynard é professor da Universidade Estadual de Alagoas e autor da tese
“O Senhor da Pedra: os usos da memória de Delmiro Gouveia (1940-1980)”, (UFPE,
2008).
Saiba Mais -
Livros:
ARARIPE, J.C.
Delmiro Gouveia: a glória de um pioneiro. Fortaleza: BNB, 1997.
MARTINS, F. Magalhães. Delmiro Gouveia: pioneiro e nacionalista. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL,1979.
ROCHA, Tadeu. Delmiro Gouveia: o pioneiro de Paulo Afonso. Recife: Universidade
Federal de Pernambuco, 1970.
Saiba Mais -
Filmes:
“Coronel
Delmiro Gouveia”, de Geraldo Sarno,1977.
“Delmiro Gouveia: o homem e a terra”, de Ruy Santos,1971.
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