Por: Manoel Neto
“A Expedição
Contra Lampião”, com esse título Humberto de Campos revive o tema cangaço nas
suas crônicas diárias, então publicadas em todo o país por diferentes
periódicos que lhe asseguravam muitos leitores e, por consequência, enorme
popularidade, como já afirmamos no capítulo anterior.
Oportuna essa aproximação do autor com o cangaceirismo nordestino, pois era a
união da “fome com a vontade de comer”, mormente, naquela quadra, quando
despertava curiosidade crescente na opinião pública, cotidianamente informada
sobre as andanças dos bandos errantes nos carrascais sertanejos, notadamente de
Lampião, informações estas carregadas nas tintas e quase sempre tingidas com
muito sangue e descritas com pormenores estarrecedores.
Mais uma vez é a repressão aos cangaceiros, muito embora, o autor se refira
explicitamente a Lampião, a quem denomina - “o famoso sanguinário bandido que
domina há doze anos os sertões do Nordeste brasileiro [1]”, que ocupa as
meditações do cronista. Sobre este texto colhemos evidências que nos levam a
acreditar haver sido ele publicado em 1931, isto por que, trabalho do professor
Jorge da Matta Villela, intitulado “Operação anti-cangaço: As táticas e
estratégias de combate ao banditismo de Virgulino Ferreira, Lampião [2] nos
dá ciência que:
“Neste inicio de 1931, segundo CHANDLER [3], o centro de planejamento da
campanha contra Lampião havia-se deslocado para a capital federal”. E no centro
deste plano estava o Capitão Carlos Chevalier. Ele pretendia utilizar aviões na
captura de Lampião e em conjunto com as aeronaves (que na verdade pareciam ser
apenas uma) seriam empregues sistemas de radiocomunicação que travariam contato
com um contingente de mil homens, dentre os quais 200, por exigência do capitão
do ar, cariocas.(Cf. VILELLA, p. 112).
Avião Waco RNF
NC 663Y fabricação 1930 um destes seria usado por Chevalier.
Fonte: Lampião
- Entre a espada a Lei. Sérgio Augusto Souza Dantas, Pág. 314.
A informação transcrita acima que Mattar colheu em Chandler nos permite
elucidar um dado cronológico importante. Melhor explicando: esclareço de
imediato que “A Expedição Contra Lampião”, objeto de nossos comentários neste
capítulo reporta-se justamente ao ataque planejado pelo oficial Chevalier
contra os salteadores sertanejos. Tendo em conta esse dado, podemos presumir
que a crônica foi produzida por Campos em 1931, posto que ele não comentaria em
ano posterior notícia notadamente datada. Ao puxarmos o fio de uma meada,
sabemos, estamos “cutucando o cão com vara curta”.
Assim é que fomos passar os olhos no indispensável trabalho de Marilourdes
Ferraz [4] e lá encontramos o seguinte trecho: “Em 1931, dois
episódios marcaram de modo extraordinário a vida do Rei do Cangaço no sertão
baiano”. (Cf. FERRAZ, p. 338). Como o primeiro episódio relatado não é relevante
para o que tratamos neste artigo passemos ao segundo:
“[...] Em maio deste mesmo ano, surge o bando no povoado de Várzea da Ema
(grifo nosso) para levar a efeito a vingança contra o fazendeiro Petronilo Reis [5].
Agora quase meia centena de homens integravam o grupo, que chegou arrasando,
queimando e matando. Essa tarefa devastadora teve a duração de quase quarenta e
oito horas, num mês ameno, com o mato muito verde. Quando Lampião deu a ordem
de partida, deixava para trás mais um lugar devastado e uma área esturricada
pelo fogo” (ob. cit. p. 339).
Cel. Petronilo
de Alcântara Reis
Este acontecimento narrado por Ferraz nos obriga a uma digressão, porém
necessária. Quando tratamos da primeira crônica de Humberto de Campos, “A
Última Proeza de Lampião”, em que o mesmo aborda os acontecimentos
transcorridos em Curaçá, nos sertões da Bahia, destacamos as dificuldades para
precisar a data da publicação do texto, em razão de inexistir referência na
coletânea consultada. Além disso, em outras fontes coligida, como também,
auscultando nomes conceituados que averiguaram e continuam averiguando o
episódio, os mesmos confirmaram passagens de Lampião na Sede de Curaçá, mas
desconheciam o incidente narrado por Campos, pelos menos naqueles moldes e
extensão. Fato de tal monta como aquele textualizado por Campos não teria sido
perpetrado por lá.
Marilourdes Ferraz
Ocorre,
contudo, que a narrativa constante do “Canto do Acauã” ao mencionar Várzea da
Ema e a violência do ataque, bem como, o número de cangaceiros participantes,
nos obrigou a considerar que naquele ano o pequeno povoado – Várzea da Ema -
onde nascera o famoso guerrilheiro Pedrão, conselheirista que lutou em Canudos,
integrava o território de Curaçá, havendo, por consequencia, a possibilidade
clara de Campos haver citado este município, em razão das informações que
coligiu para redigir o seu escrito. Cabe neste momento uma observação que
devemos ter em conta quando o tema é cangaço e que também se encaixa aqui como
uma luva, observação esta proveniente de Luiz Rubem Bonfim [6], qual seja:
“Não existia na época um jornalismo investigativo sobre a presença de Lampião
na Bahia, as matérias publicadas nem sempre eram assinadas pelos jornalistas,
os periódicos da capital não focavam apenas notícias, mas também opiniões,
comentários e editoriais. As informações sobre Lampião e seu bando na Bahia,
eram obtidas através das agências de notícias, da abordagem de viajantes na
estação ferroviária da Calçada em Salvador, no trecho ferroviário Salvador a
Juazeiro, na Secretaria de Segurança Pública no bairro da Piedade, moradores do
sertão se dirigiam às redações em Salvador, também eram enviados do interior
telegramas e cartas assinadas” (grifo nosso).
(BONFIM, ob. cit., p. 15).
Que outras fontes estariam disponíveis para o ilustre autor de “Notas de Um
Diarista”, cujo interesse pelo cangaço era eventual? Escrevia em cima da perna,
diariamente, fazendo uso do seu enorme talento e inegável erudição, não havendo
tempo para pesquisas mais acuradas, detalhes. Sofria de grave enfermidade que
lhe roubava a visão gradativamente, escrevendo com enorme dificuldade para por
“o pão na mesa”, como salientou inúmeras vezes. Leve-se em conta igualmente
quer a notícia em si, já rendia “panos para manga”. Daí nossa especulação sobre
a possibilidade de que o lugar exato do corrido, considerando os indícios,
venha mesmo a ser o então distrito de Várzea da Ema, hoje pertencente à
Chorrochó, sendo que naquela época ambos estavam inseridos em território de
Curaçá. Estaríamos certos?
Capitão Carlos
Saldanha da Gama e Chevalier.
Voltemos agora ao capitão Chevalier e sua iniciativa na ótica do “moço de
Miritiba”. Dizendo está noticiada “há dias a organização de uma coluna militar,
de mil e poucos homens, para dar combate ao bandoleiro Lampião, o famoso e
sanguinário bandido que domina há doze anos os sertões do Nordeste brasileiro”
(Cf. CAMPOS, Notas de um Diarista, p. 31), Humberto vai adiante detalhando
informes sobre a empreitada em curso, não sem uma fina ponta de ironia e certa
estranheza diante da complexa estrutura logística que se ajuíza organizar para
combater cangaceiros nos terrenos áridos e espinhosos da caatinga. Mencionando
a chefia da empreitada dá asas ao seu raciocínio:
“Comandada pelo Capitão Chevalier essas forças levam canhões, metralhadoras,
aviões, automóveis, o material bélico indispensável, em suma, para mim, batalha
com tropas regulares. E é assim constituído, armado, municiado, apetrechado,
que o pequeno exército vai entrar pelas terras adustas do Brasil nordestino, entre
toques de corneta, rufos de tambores e a trepidação bárbara dos motores, na
terra e no céu. Para justificar esse aparato bélico, informa-se que a quadrilha
chefiada pelo salteador se compõe de 150 homens. E há nisso um evidente
exagero. “O cangaço profissional para ser exercido com eficiência, prescinde de
grandes grupos, que lhe comprometeriam a mobilidade” (CAMPOS, p. 31).
Cabe-nos de imediato melhor apresentar o Capitão Carlos Saldanha da Gama e
Chevalier, este o seu nome completo. De antemão podemos assegurar que naqueles
idos era o citado oficial figura conhecida. Participara das conspirações que
resultou na sublevação vitoriosa denominada Revolução de 1930, havendo, porém,
poucos anos antes, em 1921, integrado a turma:
“[...] de Observadores Aéreos ao lado do Capitão Newton Braga, dos Tenentes
Eduardo Gomes, Ivo Borges, Amílcar Velloso Pederneiras, Gervásio Duncan de Lima
Rodrigues, Ajalmar Vieira Mascarenhas, Sylvino Elvidio Bezerra Cavalcante,
Plínio Paes Barreto”
Na mesma década e, antes, no final dos anos 20, historiografou a insurreição
militar acontecida em 1922, na fortificação militar de Copacabana, movimento
popularizado como “os 18 do Forte” [7]. Em 1931 alcança generosos espaços
na mídia ao apresentar seu plano para capturar Lampião. Não se pode dizer,
contudo, que tenha sido o primeiro, talvez, sim, o mais ambicioso. Se corrermos
os olhos nos jornais baianos publicados quando Lampião ganhara fama nacional e
suas façanhas repercutiam com freqüência quase diária na imprensa, veremos que muitos
foram àqueles, notórios ou anônimos, que “tiravam do bolso do colete” planos
mirabolantes para capturar o antigo tropeiro de Vila Bela. O professor Jorge
Vilella, autor já citado neste texto, observa que:
“Entre os anos
de 1922 e 1938 os governos das capitais nordestinas, seus jornais e uma parcela
de seus cidadãos tiveram uma preocupação em mente: como dar cabo daquele que
era, já desde o primeiro dos seus 16 anos como chefe de cangaço, o maior de
todos os cangaceiros” (VILELLA, ob. cit.)
Urgindo cumprir
este desiderato, algumas iniciativas oficiais foram espantosamente
encaminhadas, apesar das pouquíssimas chances de lograrem êxito. Refiro-me no
caso a iniciativa do Capitão João Miguel, que agindo de forma insensata,
autoritária e cruel, resolveu evacuar as populações rurais e confiná-las nos
cidades-sedes dos municípios indexados no seu plano, como maneira de desmontar
o apoio voluntário e involuntário que os coiteiros asseguravam aos bandidos.
Famílias inteiras foram obrigadas a deixar seus lares e pertences, suas roças,
afazeres e criações para em muito pouco tempo transformarem-se em pedintes, em
párias, a perambular por praças e demais logradouros públicos das cidades,
inteiramente despreparadas para receber e cuidar daquele excedente populacional.
Em decorrência desta sandice, pais de família perderam-se no álcool e na
violência, meninas se prostituíram, sem contar o sofrimento atroz de velhos e
crianças. Este caos se estabeleceu em 1932 quando os sertões nordestinos
padeciam uma das mais inclementes estiagens do século, fenômeno que por si só
era um flagelo, batizada então de “seca de João Miguel [8]“.
O então 1º Tenente Felipe Borges de Castro num documento datado de 1939 [9],
portanto, depois do trucidamento de Lampião e parte do seu bando na Grota do
Angico, também apresentou sua solução para erradicar o cangaço. Na sua proposta
Castro reconhece que a ação nefasta da Polícia que frequentemente usa de
“medidas violentas” contra supostos colaboradores dos cangaceiros, pessoas em
alguns casos, vítimas de informações infundadas oriundas de informantes dos
policiais, é extremamente prejudicial à campanha repressora. Feita esta
constatação o militar sugere a criação de “uma colônia correcional agrícola num
dos pontos mais frequentados pelos bandoleiros” [10]. A esta providência
somar-se-iam duas outras iniciativas: “a criação de uma Delegacia Especial em
zona atingida pelo banditismo [11]” e a “difusão na zona do banditismo da
doutrina de Deus e catequeses por um sacerdote católico”. Na avaliação do já
citado Mattar Vilella,
“o projeto
utópico do Tenente Castro é um plano de separação e arresto, a criação de um
amplo espaço carcerário e didático no interior do qual todos os implicados no
problema do banditismo, mesmo sem prova criminal, pudessem ficar fechados
mantendo sua influência negativa separada do mundo [12]“.
Sempre atento e perspicaz o Cego Véio [13] mostrava-se
escrupulosamente cuidadoso e discreto em relação aos seus colaboradores,
avaliando corretamente a importância dos mesmos para o perfeito funcionamento
da intricada rede de apoio que cuidadosamente montara, como alerta Maria
Cristina da Matta Machado:
“Lampião era muito discreto, comportamento importante para quem vive ameaçado
de ter inimigos, até mesmo nas suas fileiras. Jamais falava com todos os seus
camaradas de luta os assuntos ligados à segurança moral e física dos seus
coiteiros” (MATTA MACHADO, 1969, p. 68) [14]
[1] A
área territorial em que o cangaço se fez mais assíduo integra os Estados de
Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, e Sergipe.
Procedente, entretanto, é a observação de Luiz Rubem Bonfim, no seu livro “LAMPIÃO,
Conquista a Bahia”, quando o mesmo destaca que o vocábulo Nordeste era usual
para referência a Bahia. Quanto aos demais Estados nordestinos eram registrados
como “estados do Norte”, embora, não pareça ser o caso no texto comentado.
[2] VILLELA, Jorge Mattar. Artigo publicado na Revista de Ciências
Humanas, de Florianópolis, Santa Catarina, no número 25, à página 112, em abril
de 1999:
[3] CHANDLER, 1981apud Mattar, 1999, p. 112. Ob.cit.
[4] FERRAZ, Marilourdes. O Canto do Acauã. Das memórias do Cel. Manoel
Flor (Coronel Manoel Flor). Comunigraf Editora. 3ª edição. Recife, 2011. 661 p.
Il:.
[5] Senhor de muitos cabedais, grande proprietário de terras e criador de
gado e principal liderança de Santo Antonio da Glória, hoje município de
Gloria, situada próximo a divisa de Pernambuco e Alagoas.
[6] BONFIM, Luiz Rubem F De A. Lampião Conquista a Bahia. Impressão Graf
Tech. Paulo Afonso, 2011. 422 p. Il:.
[7] Chevalier publicou os seguintes títulos “Memórias de um revoltoso ou
Legalista”, de 1927 ; “Os 18 do Forte”, de 1930 e “Os 18 do Forte – Siqueira
Campos”, obras hoje somente encontráveis em sebos e com alfarrabistas.
[8] O Capitão João Miguel integrava os quadros do exército Brasileiro e
sendo comissionado na Polícia Militar com o fito de participar da luta contra o
banditismo na Bahia, durante o governo do Interventor Juraci Magalhães, ocasião
em que o posto de Comandante das Forças em Operação Contra o Cangaço na
Bahia. Era especialista em comunicações. Sobre a seca de 1932 e outras
estiagens nos sertões nordestinos sugerimos a leitura do livro “Vida e morte no
sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX”, do
historiador paulista Marco Antonio Villa.
[9] Novo Plano Para Extinção do Banditismo. Felipe Borges de Castro galgou
a posição de Coronel e escreveu um importante trabalho para a compreensão da
política de repressão ao cangaço na região, o livro “A Derrocada do Cangaço na
Nordeste”, reeditado recentemente pela Assembleia Legislativa da Bahia.
[10] Apud. VILELLA, Jorge |Mattar. Ob. cit.
[11] Idem
[12] VILELLA Jorge matar. Passim. Sugerimos a leitura entre outros de
Lampião na Bahia, de Oleone Coelho Fontes, onde o autor relata outras
iniciativas de particulares sequiosos de notoriedade ou portadores de uma
coragem suicida, que se ofereciam para capturar Lampião por meios de
estratagemas os mais diversos e inusitados.
[13] Porr esta alcunha muitos oficiais, soldados, rastejadores e
contratados das volantes se referiam a lampião, em razão do seu olho afetado
por acidente que causou-lhe a peda parcial da visão.
[14]MACHADO MATA, Cristina da. As Táticas de Guerra dos Cangaceiros. Laemmert,
rio de Janeiro, 1969,223 p.
Longa seria a
lista e certamente assunto para muitas laudas a história da repressão ao
banditismo nos sertões do Nordeste, notoriamente no período em que o cangaço
experimentou modificações expressivas no seu modus operandi, atingindo um nível
de sofisticação profissional adredemente estruturada pela astúcia militar e
estratégica de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião. Para combatê-lo e aos
seus subgrupos, sob diferentes comandos, fizeram-se necessárias articulações
políticas entre os estados atingidos [15]. Considerável dispêndio de
recursos públicos, reciclagem das forças policiais regulares e das suas formas
de combate, como também, a incorporação de contratados eventuais,
geralmente moradores das caatingas, afeitos ao terreno e conhecedores dos
socavões por onde transitavam os bandoleiros, em verdade, guias sem os quais
soldados e oficiais encontrariam enormes dificuldades de locomoção e
orientação. Muitos deles tornaram-se rastejadores, isto é, indivíduos que
divisavam em meio ao ambiente hostil e ilegível aos olhos leigos, as marcas
deixadas pelos bandos marginais.
Ao comentar os preparatórios do capitão Chevalier, Humberto de Campos evidencia
está mais familiarizado com as táticas e estratégias de luta dos adornados
combatentes das caatingas. De chofre, sem maiores rodeios, chama a atenção do
público leitor para o inédito conjunto de homens, armas e apetrechos a ser
empregado na Campanha, afirmando que para justificar tão onerosa e complexa
operação, os seus planejadores, à frente o oficial irredento de 1930,
ancoravam-se na perspectiva de bater-se com uma quadrilha composta por 150
homens. Então Campos pondera explicitando conhecimento de causa:
E há nisso, evidente exagero. O cangaço profissional, para ser exercido com
eficiência, prescinde de grandes grupos, que lhe comprometeriam a finalidade. A
sua tática reside na mobilização rápida, na facilidade da dispersão no momento
do perigo, e esta não é possível se os cangaceiros dispusessem de contingentes
consideráveis. Antônio Silvino [16] jamais admitiu mais de uma dúzia
de cabras, e Lampião nunca reuniu mais de 40, e isso mesmo para entrar em
Juazeiro, temendo uma surpresa de Padre Cícero [17]. É sabido, mesmo, que
o seu processo consiste em reduzir os seus contingentes à medida que é
perseguido, de modo a desorientar os perseguidores, eclipsando-se na caatinga
(CAMPOS, pp. 31, 32).
A citação conscientemente longa se impôs em decorrência da relevância de
algumas observações nela contidas, que ratificam nossa percepção de que o
articulista àquela altura já conhecia maiores detalhes sobre o modo de guerrear
de Lampião e seus seguidores, observações estas que grifamos no trecho citado.
Interessante é que Campos já se refere ao “cangaço profissional”, num tempo em
que a vida bandoleira no Nordeste ainda era analisada sob outros prismas.
Vale ressaltar igualmente que em Mossoró, para citar das mais infelizes
sortidas de Lampião contra uma localidade, os sitiantes somavam mais de 150
homens, muito embora fosse um somatório de bandos que atuavam dispersos e
independentes, inclusive nos seus comandos. Portanto, época houve, antes de
ingressar na Bahia em 1928, que os agrupamentos eram mais numerosos, ao revés
do mencionado no texto.
Civis e
militares contra Lampiao em Mossoró, junho de 1927.
Independente das ponderações expressas fica, entretanto, o reconhecimento de
que “o jovem oficial revolucionário vai prestar, todavia, um relevantíssimo
serviço a sua terra, com essa expedição” (CAMPOS, p. 32). Mas, cauteloso e
reflexivo adverte o capitão Chevalier: “Para combater cangaceiros, faz-se
mister mais a habilidade individual do que a bravura, e mais perfídia vulpina
do que, propriamente, arte militar”.(ibid. p. 32). Ou seja, o expedicionário
teria que usar de “perfídia vulpina”, ou melhor, usar a sagacidade, a
esperteza, a mobilidade da raposa, animal que integra a fauna catingueira,
prevendo adiante
“[...] que vamos assistir a um duelo entre a artimanha de um bandoleiro e
a intrepidez de um verdadeiro soldado, ou, mais caracteristicamente, um
encontro entre um cavaleiro que maneja um florete e um bárbaro que avança
contra ele sustentando com a s duas mãos a sua formidável tangapema (grifo
nosso) de maçaranduba” (CAMPOS, passim).
O contraponto entre civilização e barbárie que neste extrato fica delineada no
confronto entre “o cavaleiro que maneja o florete” e o bárbaro munido de
tangapema – mesmo que tacape, borduna, armas de guerra indígenas – representado
pelos homens do cangaço, foi usado reiteradamente por Euclides da Cunha
designando os camponeses sublevados em Canudos, tratamento reincidente em
outros autores quando historiaram as insurreições do Contestado [18] e
Pau-de-Colher, levantes rurais, nos quais milhares de seres humanos foram
sacrificados com requintes de crueldade pelas armas “civilizatórias” do
Exército e das forças policiais dos estados beligerantes.
Não nos esqueçamos das volantes e suas arbitrariedades e violências, quando
soldados representando os Governos, estadual e federal, comportavam-se de forma
truculenta. Lamentável por tudo a referência aos índios brasileiros, vítimas de
agressões e dizimados durante séculos pelos colonizadores, latifundiários e
autoridades dos mais diversos calibres e procedências. Afrancesada e recolhida
ao conforto das cidades, especialmente as litorâneas, a intelectualidade
brasileira ou a maior parte dela costumava “chamar de feio tudo que não era
espelho”, parafraseando Caetano Veloso, e Humberto de Campos não era exceção,
carregando sobre o seus ombros o pesado fardo do “espírito da época”. Volta-se
posteriormente para aquilo que considera ultrajante para o país e sem rebuços,
direto e incisivo opina:
“”A impunidade
de Lampião constitui, sem dúvida, uma vergonha para a nação brasileira, e
reclamava, de há muito, a intervenção do Exército, isto é, de forças da União,
para acabar com o escândalo da sua sobrevivência. Mas não reclamava, talvez, a
honra de uma expedição tão vultosa, como essa que lhe está destinada”. (grifo
nosso). (CAMPOS, ob. cit. p. 33).
Retoma a tese
de uma intervenção federal como resolução adequada pata enfrentar a
resistência obstinada e ardilosa dos cangaceiros, sem perder de vista, contudo,
o juízo sobre o exagero das forças e equipamentos mobilizados para a tarefa,
considerando que talvez “o Diabo não seja tão feio com se pinta”.
Logo mais vai descer ao terreno das especulações ao tomar como exemplo episódio
ocorrido com o rei de Túnis, que tendo sua cidade arrasada pelas tropas de Luiz
XIV, Rei de França, teria afirmado aquele monarca que pela metade dos gastos
dispendidos pelo Rei Sol para por abaixo “o velho porto africano”, ele próprio
executaria a tarefa pela metade do valor gasto, o que pouparia vidas e
recursos. Logo volta a realidade dos fatos e escreve:
“Amando a agitação e o perigo, o Capitão Chevalier não aceitaria, sem dúvida,
uma proposta de Lampião, no sentido de lhe darem a metade das despesas da
Expedição mediante o seu desaparecimento do cenário nordestino. [...] O que o
seduz é aventura e não o resultado feliz”. (Idem).
Desavisado pressupõe ser o Capitão sediado no litoral a recusar proposta do seu
“colega” de patente, o comandante das tropas catingueiras, que tinha para si
planos mais ambiciosos, sonhava ser o “Governador do Sertão”, conforme já
propusera em um dos seus famosos bilhetes, este encaminhado ao Sr. Júlio de
Melo, mandatário de Pernambuco, no mês dezembro de 1926, no qual redigiu a
debochada proposta de uma divisão territorial e de poder. Seria ele Lampião,
responsável pela região sertaneja do território pernambucano, cabendo a Júlio
Melo, governar o litoral. Provocativo garatujou textualmente:
“Faço-lhe esta
devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor pra evitar guerra no sertão e
acabar de vez com as brigas... Se o senhor estiver de acordo, devemos dividir
os nossos territórios. Eu que sou Capitão Virgulino Ferreira Lampião,
Governador do sertão, fico governando esta zona de cá, por inteiro, até as
pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco
até a pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois
então é o que convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda os seus
macacos me emboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um
governando o que é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho
e para que não se diga que sou bandido, que não mereço. Aguardo resposta e
confio sempre[19]”
Como se vê avaliava mal o acadêmico. Àquela altura, em meados dos anos vinte
não houvera Lampião cruzado o Rio São Francisco rumo a Bahia. Não intentara
contra a cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, fato ocorrido somente no
dia 13 de junho de 1927, mas já se convertera em figura carimbada nos sertões,
caminhando rapidamente para se tornar história e mito, memória e imaginário.
A seriedade do assunto tratado não toldava, contudo, o fino humor de Humberto
de Campos. Finaliza sua crônica de forma imaginativa e jocosa: “Eu tenho
receio, entretanto, que o excesso de pares comprometa o sucesso da contradança,
e que ouçamos, daqui do litoral, marcação do celerado sertanejo:- “Dames à
droite!.... Chevalier à gauche!...” E que, como consequencia, a quadrilha
continue...” (CAMPOS, ibid. pp. 34,35).
Evocando as quadrilhas tão animadas e comuns nas festas sertanejas de junho,
Campos fez-se profeta e acertou no alvo: muita água ainda rolaria debaixo da
ponte. Mas isso fica para o próximo capítulo!
[15] Foram
celebrados vários convênios de cooperação entre os Estados molestados pelo
cangaço, dentre os quais destacamos aquele acordado em 1927, entre os dias 28 e
30 de dezembro, cujo principal intuito era coibir com mais veemência a ação dos
coiteiros.
[16] Antônio Silvino. Nascido Manoel Baptista de Morais, em Ingazeira,
Estado de Pernambuco, faleceu na Paraíba em 1944., Precedeu Lampião e foi o
mais afamado e temido bandido do seu tempo, ganhando o apelido de “Rifle de
Ouro”.
[17] Lampião visitou Juazeiro do Norte em março de 1926. Lá recebeu a
patente de Capitão, armas, munição e fardamento pra organizar um Batalhão
Patriótico, com o fito de combater a Coluna Prestes. Sobre quem o convidou há
controvérsias, que ainda suscitam debates e dissenções entre os pesquisadores e
estudiosos.
[18] A revolta do Contestado eclodiu em 1912, na região sul do Brasil, em
área confluente dos Estados de Santa Catarina e Paraná. Apesar da forte
conotação religiosa do movimento, outros interesses sócio-econômicos foram
decisivos para a sublevação.
[19] Consulta realizada ao site
http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/. Acesso em 20/02/2013.
Manoel Neto
Centro de
Estudos Euclides da Cunha
UNEB -
Salvador - BA
http://lampiaoaceso.blogspot.com