Virgulino
Ferreira da Silva, conhecido popularmente pelo apelido de Lampião, foi o
principal e mais conhecido cangaceiro brasileiro. Nasceu na cidade de Serra
Talhada (PE) em 7 de julho de 1898 e faleceu em Poço Redondo (SE) em 28 de
julho de 1938. Ficou conhecido como o "rei do Cangaço".
Biografia:
Nasceu numa
família de classe média baixa.
Trabalhou
com o pai, na infância e parte da adolescência, cuidando de gado.
Trabalhou
também com transporte de mercadorias em longa distância, utilizando burros como
meio de transporte de carga.
Envolveu-se
em brigas familiares na juventude e entrou para um bando de cangaceiros para
vingar a morte do pai.
Em 1922,
passou a comandar um bando de cangaceiros.
Em 1922, seu
bando efetuou assalto à casa da baronesa de Água Branca (AL).
Em junho de
1927, Lampião comandou seus homens na fracassada tentativa de tomar a cidade de
Mossoró (RN). Chegaram nesta ocasião a sequestrar o coronel Antônio Gurgel.
Na década de
1930, Lampião e seu bando passou a ser procurado por policiais de vários
estados do Nordeste. O bando passou a viver de saques a fazendas e doações
forçadas de comerciantes.
Em 1930,
conheceu Maria Déia (Maria Bonita) que ingressou no bando, tornando-se mulher
de Lampião. Em 1932 nasceu a filha do casal, Expedita.
Em 27 de
julho de 1938, Lampião e vários cangaceiros do bando estavam na fazenda
Angicos, sertão de Sergipe, quando foram mortos por policiais da volante do
tenente João Bezerra.
No ideário
popular, Virgulino conquistou o apelido de Lampião num de seus embates com a
polícia militar, quando gabava-se que - no decorrer de uma luta - sua
espingarda não deixara de ter clarão, "tal qual um lampião".
Lira [LIRA,
João Gomes de. Lampião: Memórias de um soldado de volante. Floresta (PE):
PMF/SECD, 1997. vol. 1] admite quatro hipóteses para a alcunha famosa, como se
segue:
A primeira
delas surgiu após a retirada dos Ferreira para Alagoas onde fixaram residência
no lugar Santa Cruz do Deserto, município de Mata Grande. Com eles foram muitos
amigos e agregados, como: Pergentino Belxó, Luiz Gameleira, Manoel Tubino, e
Cajazeira (estes dois últimos, já cangaceiros afamados). Por último,
juntaram-se a eles os irmãos Benedito (José, Olímpio e Manoel). Foi exatamente
na afirmação de Olímpio Benedito que no intervalo da marcha "ao meio dia,
no descanso na Lagoa dos Soares, quando palestravam e brincavam, surgiu naquele
descanso, naquela palestra, o vulgo de Lampião para Virgulino Ferreira."
(1997 p.43)
A segunda
deu-se, durante forte perseguição exercida pelo tenente Lucena (antes
mencionado como sargento) sobre os Ferreira, quando do ingresso dos mesmos no
bando de Antônio Porcino. Que, nas Alagoas, sob forte fogo cerrado em
Pariconha; Virgolino "com o seu rifle peado, formando na boca do mesmo um
grande e luminoso farol, dando a impressão de um lampião, surgiu o nome de
guerra do famoso cangaceiro." (1997 p. 57)
A terceira foi
em condições semelhantes à segunda, travada nas trevas de uma noite sem luar e,
Virgolino salientando-se mais que os demais e "com toda a escuridão,
entravam em feroz fuzilaria. Os bandidos jogavam balas como chuva em cima da
polícia que, destemidamente, avançava contra os inimigos. A luta foi seriamente
arrochada, apesar do número inferior de bandidos (doze homens), isto sem haver
recuo, mas devido ao forte avanço do tenente Lucena os cangaceiros deram
costas, deixando morto o cangaceiro Gafanhaque." (1997 p. 59)
A quarta e
última versão tem origem num forte tiroteio onde foi morto o cangaceiro
Pitombeira e ferido o bandido Lavandeira. Virgolino surpreendeu seu chefe de
então, o famoso Sinhô Pereira, conquistando sua confiança e inspirando-a em
todo o grupo. Indagado pelo mesmo, após um boa noite de descanso, sobre os
requisitos que o mesmo teria para ser um cangaceiro de verdade e continuar em
seu bando, respondeu "apenas que no seu rifle, no tiroteio da noite
anterior, jamais faltou clarão. Ao ouvir estas palavras, os célebres
cangaceiros Baliza e Cajazeira, gritaram: - Temos agora, um lampião! Temos
agora um lampião! Não andaremos mais no escuro!. Daquele dia em diante,
Virgulino passou a atender, por Lampião." (1997 p. 61)
Segundo
Vassalo Filho [VASSALO FILHO, Miguel. Lampião - o grande
cangaceiro.], Lampião fisicamente "tinha cerca de 1,70 de altura, tipo
amulatado, compleição rígida e era cego do olho direito. Sua canga era
composta, além das armas habituais, de carne assada, charque, bolachas e café,
pedaços de queijo e rapadura, misturados com farinha de mandioca. Conduzia
ainda algodão, tintura de iodo, casca de juá e aguardente alemã [schnaps].
Papel e lápis, além de muito dinheiro. Todos esses apetrechos de sua
"canga" chegavam a pesar mais de 20 quilos, o que demonstrava a
resistência de quem os conduziam, em longas caminhadas de léguas e léguas e
durante tantos anos."
O cangaceiro e
o escritor na terra do faz de conta
De quando
Graciliano capturou Virgulino usando o poder da mente
RESUMO
Antologia que reúne escritos de Graciliano Ramos sobre cangaço atribui-lhe
entrevista fictícia com Lampião. Publicado sem assinatura no semanário
"Novidade" e inédito em livro, o texto traz marcas que o associam ao
autor de "Vidas Secas", colaborador do periódico, no qual pela
primeira vez abandonou pseudônimos.
*
O sambinha não
era tão popular quanto "Tico-tico no Fubá" ou "Com que
Roupa?", seus colegas no "hit parade" de 1931, mas traduzia uma
verdadeira obsessão nacional daqueles anos. A voz de Castro Barbosa apregoava
com garbo nas rádios: "Adeus, Amélia/ vou decidir minha sorte./Eu vou pro
Norte./Vou pegá o Lampião". (ouça abaixo)
Não havia quem
não quisesse "pegá" Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o
bandoleiro mais famoso do Brasil. A muitos poderia faltar sede de vingança, mas
a ninguém cairiam mal duas ricas recompensas oferecidas por sua captura: tanto
o governo da Bahia quanto uma empresa, a perfumaria Lopes (do sabonete Dorly e
pó de arroz Lady), pagavam 50 contos de réis, cada um, por sua cabeça.
Embora o
pescoço do cangaceiro tenha chegado intacto ao final daquele ano, coube a uma
pequena publicação de Maceió cumprir, à sua moda, o desígnio da canção. Em sua
edição de 16 de maio de 1931, um semanário chamado "Novidade" pegou
Lampião.
É verdade que
a revista alagoana talvez não tenha satisfeito o apetite dos leitores fiéis,
que provavelmente haviam visto uma semana antes um anúncio na página 2:
"No próximo número: uma entrevista de Lampião à ’Novidade’".
A conversa
seria efetivamente publicada: perguntas e respostas ao "herói legendário
do sertão nordestino". Mas o texto (reproduzido abaixo), esclarecia-se
logo na abertura, era uma entrevista fictícia: feita por "via
telepática".
O bate-papo
virtual poderia jazer só na memória de gerações de traças alagoanas, não fosse
a suspeita de uma dupla de pesquisadores de São Paulo. Ieda Lebensztayn e
Thiago Mio Salla sustentam, em livro a sair no fim do mês, que a entrevista é
criação de um dos maiores nomes da literatura brasileira: Graciliano Ramos
(1892-1953).
O postulado
constará do volume "Cangaços" [Record, R$ 34, 224 págs.], compilação
de textos sobre o banditismo sertanejo publicados pelo autor alagoano entre
1931 e 1941, em veículos de seu estado natal ou do Rio de Janeiro, então
capital do país. Organizado pela dupla de gracilianólogos paulistas, o livro é
composto por 14 artigos de imprensa e por dois capítulos de "Vidas
Secas".
A inclusão no
volume de fragmentos do romance mais celebrado do autor (lançado em 1938, está
atualmente em sua 124ª edição) não é fortuita. Além de tratarem diretamente do
cangaço, os capítulos dão cor a um dos sustentáculos do livro de Lebensztayn e
Mio Salla: o livre trânsito entre Graciliano o articulista e o ficcionista.
Emblema disso
é uma frase empregada em "Cadeia", capítulo de "Vidas
Secas", que pode ser lido como um conto (não à toa, o cronista Rubem Braga
definiria o livro, anos depois, como "romance desmontável"). Nele,
Fabiano, o protagonista, afirma: "Apanhar do governo não é desfeita".
No texto de
apresentação e num alentado posfácio sobre Graciliano e o cangaço, os dois
organizadores do livro mostram que o escritor já havia usado a frase, igual, em
três crônicas sobre o tema, duas delas publicadas antes que o próprio Ramos
sofresse vicissitudes nas mãos do governo -no fim do dia 3 de março de 1936 ele
seria encarcerado, em meio ao cerco aos comunistas do governo Vargas, e só
seria liberado em janeiro de 1937.
Mais do que
incorrer no autoplágio, com o uso repetido da frase, Graciliano sublinhava seu
"leitmotiv": a resistência às injustiças sociais. É num texto sobre
Lampião, seu primeiro artigo dedicado em especial ao rei do cangaço, que o
slogan aparece a primeira vez.
"Lampião
nasceu há muitos anos, em todos os Estados do Nordeste", começa Ramos, que
descreve o bandoleiro como "zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão
má". Ele relata as mazelas da juventude de Virgulino Ferreira. "As
injustiças e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele
é resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar
do governo não é desfeita", emenda o escritor, em texto para a mesma
"Novidade" que publicaria a entrevista falsa com o cangaceiro.
FINA FLOR
A
"Novidade" era o máximo. Feita nos fundos de uma livraria de Maceió,
idealizada por dois jovens intelectuais da cidade, Valdemar Cavalcanti
(1912-82) e Alberto Passos Guimarães (1908-93), a revista durou só seis meses,
mas reuniu a fina flor intelectual da região. O romancista José Lins do Rego, o
poeta Jorge de Lima, o futuro dicionarista Aurélio Buarque de Holanda e o
antropólogo Manuel Diegues Jr. (pai do cineasta Cacá Diegues) foram alguns
colaboradores regulares -de outras praças, viriam colaborações de figuras como
o poeta Murilo Mendes.
Mas o grande
feito, pouco sublinhado a respeito dessa publicação quase esquecida, foi o de
ter sido, em mais de um sentido, o veículo de estreia de Graciliano Ramos.
Reeditada em
2012, a biografia mais conhecida do autor, "O Velho Graça", de Dênis
de Moraes [Boitempo, R$ 52, 360 págs.], aponta que, aos 11 anos, o alagoano já
publicara seu primeiro texto, o conto "O Pequeno Pedinte".
Mas, ao longo
de décadas, a contar desta obra de engajamento mirim, publicada em "O
Dilúnculo - Órgão do Internato Alagoano" em 1904, as dezenas de textos de
sua lavra saíram sob pseudônimos. Eram assinadas por X, Lúcio Guedes, J.
Calisto, Anastácio Anacleto ou Ramos de Oliveira.
Como aponta
Thiago Mio Salla, em outro volume recente organizado por ele, que compila só
textos do alagoano inéditos em livro, "Garranchos" [Record, R$ 52,
378 págs.], foi apenas a partir de 1931, em sua contribuição para
"Novidade", que o autor passou a assinar como Graciliano Ramos.
Ele tinha 38
anos, já havia sido prefeito de Palmeira dos Índios, ainda não havia publicado
nenhuma obra de ficção. "Caetés", seu primeiro romance, sairia só em
1933. Mas um dos capítulos desse livro, o de número 24, foi publicado em
"Novidade" em junho de 1931, marcando oficialmente o começo do
prosador.
Ieda
Lebensztayn, 38, desbravou por quase sete anos a história da revista alagoana,
tema de seu doutorado na USP. Como aponta em "Graciliano Ramos e a revista
’Novidade’: contra o lugar-comum", artigo publicado em "Estudos
Avançados" (USP, nº 67, 2009), "se a ’Novidade’ se deseja como reação
crítica ao lugar-comum da violência, aos estereótipos, à retórica dos bacharéis
e políticos e expõe como problema o papel do intelectual num mundo de barbárie,
os textos de Graciliano nela publicados, anunciando a obra posterior, são sua
melhor expressão".
No exame da
íntegra das 24 edições de "Novidade", conteúdo recém-incorporado à Hemeroteca
Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional (hemerotecadigital.bn.br), nota-se
que só três entrevistas foram publicadas pelo semanário. A quarta conversa
editada pelo veículo, aquela com Lampião, foi a única entrevista fictícia,
gênero no qual se sobressairia depois o dramaturgo Nelson Rodrigues.
BATE-PAPO
Fora da
ficção, não era moleza entrevistar Lampião. Autoridade reconhecida no tema do
cangaço desde os anos 1980, o historiador recifense Frederico Pernambucano de
Mello, 66, conta apenas duas entrevistas confirmadas com o cangaceiro-mor.
A mais
conhecida é uma dada em Juazeiro do Norte ao médico e jornalista Otacílio
Macedo (jornal "O Ceará", Fortaleza), feita em 1926, ano em que
Lampião passou a ser conhecido em todo o Brasil.
A outra,
sustenta ele, foi dada a Demóstenes Martins de Andrade e teria saído
originalmente em "O Serrinhense", de Serrinha (Bahia), e depois no
"Diário de Notícias", de Salvador. "Nela, Lampião chega a
elogiar as pastilhas Valda."
Há ainda um
depoimento, dado a Benjamin Abrahão. Célebre por ter fotografado e filmado
Lampião, o sírio-libanês radicado no Brasil foi tema do longa "Baile
Perfumado", dos cineaastas Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1996), e de
livro de Pernambucano de Mello, "Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros"
[Escrituras, R$ 45, 352 págs.].
Graciliano, o
"entrevistador" de Lampião, também não era dos mais entrevistáveis.
Lebensztayn e Mio Salla estão concluindo uma pesquisa sobre os bate-papos
feitos com o escritor alagoano. Eles serão publicados em livro, no segundo
semestre, também pela Record, editora que concentra a obra do escritor desde o
início dos anos 1970. Com nome provisório de "Falas", o volume terá
estimadas 22 entrevistas e deve sair à época de uma mostra audiovisual sobre o
escritor prevista para o Museu da Imagem e do Som, de São Paulo.
Mio Salla, 34
(e desde os 19 estudando a obra do escritor), diz que não há registros de
outras entrevistas ficcionais de Graciliano, como a de Lampião que atribuem a
ele.
No entanto, o
professor da Escola de Comunicações e Artes da USP diz que desde a primeira vez
que bateu os olhos em "Lampião entrevistado por ’Novidade’", na
Biblioteca Nacional, no Rio, em 2005, não teve dúvidas de que o texto era de
Graciliano.
"São inúmeros
elementos que indicam sua autoria. Desde uma ironia muito peculiar, uma
pilhéria presente em textos publicados por ele em jornais, até o deboche do
chamado ’lampionismo literário’", afirma.
Com linha
semelhante de argumentação, um dos principais gracianólogos do Brasil, o
professor Wander Melo Miranda, da Universidade Federal de Minas Gerais,
concorda com a atribuição.
"Sua
visão lúcida e bem-humorada -no caso da entrevista imaginária, da qual podem
ter participado também Lins do Rego e Jorge de Lima- é uma ’novidade’ para a
época e até hoje. Sem estereótipos, sem a visão artificial de literatos e da
’gente do asfalto’ sobre o assunto, Graciliano trata o ’amável facínora’ como
um astro pop ’avant la lettre’, percebendo muito bem o que o mito popular revela
e esconde: uma sociedade injusta, economicamente atrasada, submetida a
desmandos de toda ordem e à aparição de heróis ou bandidos salvadores",
afirma, em depoimento à Folha.
SURPRESA
Em janeiro de
1938, Graciliano Ramos escreveu, em crônica também recolhida em
"Cangaços": "A polícia do Nordeste continuará a perseguir o
bandido, provavelmente o agarrará de surpresa e mostrará nos jornais a cabeça
dele separada do corpo".
Seis meses
depois, "pegaram" Lampião. Ele, sua mulher, a Maria Bonita, e outros
nove cangaceiros do bando foram mortos e degolados -as 11 cabeças foram
expostas na escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas.
No artigo
"Cabeças", publicado dois meses depois, e também incluído em
"Cangaços", Graciliano Ramos sentenciou:
"Cortar
cabeças nem sempre é barbaridade. Cortá-las no interior da África, e sem
discurso, é barbaridade, naturalmente; mas na Europa, a machado e com discurso,
não é barbaridade. O discurso nos aproxima da Alemanha. Claro que ainda
precisamos andar um pouco para chegar lá, mas vamos progredindo, não somos
bárbaros, graças a Deus".
*
Lampião
entrevistado por "Novidade"
Como o célebre
cangaceiro, o herói legendário do sertão nordestino, encara certas coisas
brasileiras: os direitos de propriedade, o progresso, a justiça, a família, o
sertão, os coronéis, o cangaceirismo e a sua própria vida
Lampião é hoje
uma das criaturas mais interessantes do Nordeste. Não apenas do Nordeste: do
Brasil todo*. Vagamente conhecido há dez anos em alguns municípios sertanejos,
pouco a pouco foi adquirindo um prestígio terrível e tornou-se famoso e temido
em vários Estados. Cresceu extraordinariamente, entrou no folclore, na poesia e
no romance. É um nome nacional. Ultimamente, com a projetada aventura do
capitão Chevalier1, o célebre cafuzo está na ordem do dia. - Com o intuito de
bem servir aos seus bons fregueses e amigos, como se diz na gíria de
negociantes, ’Novidade’ imaginou entrevistar Lampião. Para isso pediu o
concurso de alguns oficiais de polícia, mas todos eles, por modéstia, recusaram
a incumbência, alegando que não são repórteres. - Na impossibilidade de
obtermos um encontro com o notável salteador, recorremos a um truque: um dos
nossos redatores, antigo sócio de centros esotéricos, deitou-se, acendeu um
cigarro, fechou os olhos e conseguiu, por via telepática, a seguinte
entrevista.
Lampião
recebeu-nos com o punhal na mão direita e o rifle na esquerda. Vestia roupa de
mescla, calçava alpercatas, trazia cartucheira, chapéu de couro enfeitado,
camisa aberta, rosário, retrato do padre Cícero na lapela. Ofereceu-nos uma
pedra para descansar, sentou-se numa raiz de baraúna e perguntou:
- Que anda
fazendo por esta zona?
- Aqui
marombando, capitão, assuntando, tomando a maçaranduba do tempo. Eu sou
representante de "Novidade".
-
"Novidade"? Pois eu não quero saber de novidades. Aqui ninguém conta
novidades. Foi por causa das novidades que o Sabino 2 levou o diabo. E não gosto
de gente que assunta. O senhor é macaco ou bombeiro?
Sentimos um
baque no peito.
- Deixe disso,
capitão, não se afobe. "Novidade" é um jornal.
- Um jornal?
- Sim, senhor,
um papel com letras para embromar os trouxas. Mas o nosso é um jornal sério, um
jornal de bandidos. É por isso que estou aqui. Um jornal sisudo. Temos
colaboradores entre as principais figuras do cangaço alagoano, temos
correspondentes...
Lampião
mostrou a dentuça e grunhiu:
- Uhn! Anda
procurando um chefe.
- Ah! não!
protestamos. Já temos. O lampionismo em literatura é diferente do seu. O que eu
quero é entrevistá-lo, entende?
- Que quer
dizer isso?
- É uma
tapeação. O senhor larga umas lorotas, eu escrevo outras e no fim dá certo. É
sempre assim. Às vezes, como agora, nem é preciso que a gente se encontre.
- Por quê?
- Por quê?
Porque se eu fosse escrever o que o senhor diz não escrevia nada.
Lampião
matutou, balançou a cabeça e concordou.
- Bom. Vamos
começar. Pegue no lápis.
E começamos:
- Quais são as
suas ideias a respeito da propriedade?
O amável
facínora tirou da patrona um pedaço de fumo e entrou a picá-lo com o punhal.
- Eu, para
falar com franqueza, acho que essa história de propriedade é besteira. Na era
dos caboclos brabos, como o senhor deve saber, coisa que um sujeito agadanhava
era dele. Depois vieram os padres e atrapalharam tudo, distribuindo terra para
um, espelho para outro, volta de conta para outro... Fechou-se o tempo e houve
um fuzuê da peste, que está nos livros. Mas meu padrinho padre Cícero não vai
nisso. E eu também não vou. Isso por aqui é nosso: gado, cachaça, mulher, tudo.
É de quem passar a mão, entende?
- Perfeitamente.
E que me diz do progresso?
- De quê?
- Do
progresso, da civilização. Roupas bonitas, sapatos, frascos de cheiro,
conhaque, doutores, vitrolas...
Lampião fez um
cigarro de palha de milho, tirou o binga, bateu o fuzil e pôs-se a fumar.
Depois falou:
- Sapatos,
como o senhor vê, não uso, mas o conhaque eu bebo. E gosto das vitrolas, são
engraçadas. Quanto aos doutores, até hoje não me fizeram mal. Estudam nos
papéis e falam muito. Creio que são uns inocentes. Enfim, não tenho queixa da
civilização.
- Como
considera a justiça?
- Aqui no
sertão, quando um camarada tem raiva de outro, toca fogo nele. E vai um filho
do defunto, agarra um mosquetão e uma rapadura, esconde-se por detrás dum pau,
dorme na pontaria, espera 15 dias e queima o sobredito. É a justiça mais usada
e não falha. Temos também a dos autos, demorada, mas que não é má, porque os
promotores se enrascam sempre e os jurados são bons rapazes.
- Sua opinião
sobre a família?
- De quem?
- De todo o
mundo. A família em geral. A mulher, os meninos, a rede, o baú, o rancho, o
papagaio, o saguim, a trempe, as panelas, isso tudo.
Lampião coçou
o queixo e resmungou:
- Para dizer a
verdade, nunca pensei nisso. E o senhor é danado de fuxiqueiro. Mulher,
meninos... Eu sei lá! Quando um sujeito é miúdo, nunca deve dizer que os filhos
que tem em casa são dele. E quanto a mulher, hoje a gente pega uma, larga
amanhã, arranja outra, casa aqui, descasa acolá, e assim vamos indo. Isso de
mulher é bichinho que não falta. E se um homem fosse se lembrar de todas com quem
fez vida, estava arrumado.
- A sua vida
assim agitada lhe dá grandes lucros, capitão?
- Lucros,
lucros, não são lá grande coisa. Nem roubo hoje dá lucro. Não se tem mesmo o
que roubar. Isso de dinheiro aqui, homem, uma bobagenzinha de nada. Nesse tempo
parece o povo até nem aprecia ter dinheiro pra gastar tanto quanto se gasta com
a vida de hoje. Agora o que eu não faço, nem pelo diabo, é deixar minha vida de
agora pra ir trabalhar na enxada, que eu não sou...
Lampião
estacou, passou o lenço pelo pescoço.
- Que calor
danado!
E nós,
aproveitando a deixa:
- E com todo
esse calor, o senhor gosta mesmo do sertão?
- Gostar, eu
gosto, moço. Isso de calor é coisa com que a gente se acostuma depressa. Um
coronel noutro dia me disse que o povo da cidade acha isso ruim, porque é
deserto e quente por demais. Cidadãos que nunca viram o sertão falam dele como
se tivessem vivido nele uma porção de tempo. É isso que estraga essa terra, não
é outra coisa não.
- E
relativamente aos coronéis, que pensa o senhor?
- Homem, eles
até não são ruins. Há realmente alguns metidos a bestas, mas também existem
pessoas direitas. Tenho boas relações com um bando deles.
Estava finda a
nossa missão. Despedimos-nos.
- Muito
obrigado, capitão Virgulino. E adeus. Desejo-lhe muitas felicidades nos seus
negócios.
Notas:
*
Originalmente publicado, sem assinatura, no semanário "Novidade"
(Maceió: Livraria Vilas-Boas, n. 6, p. 7, 16.mai.31), este artigo sairá em
livro pela primeira vez na coletânea "Cangaços", que reúne textos de
Graciliano Ramos sobre o tema, que será lançado pela Record. A autoria é
atribuída ao alagoano pelos organizadores da antologia, Ieda Lebensztayn e
Thiago Mio Salla. Para publicação na "Ilustríssima", foram mantidas
somente as notas com informações essenciais à compreensão dos fatos citados no
texto.
1. Carlos
Chevalier, oficial do Exército que utilizou armas, sistemas de rádio em
comunicação com muitos policiais e até aviões para capturar Lampião.
2. Sabino
Gomes, homem de confiança de Lampião, que, no bando, ocupava o posto de
lugar-tenente. Foi morto em março de 1928, na fazenda de Antônio Piçarra, no
Cariri cearense.
CASSIANO ELEK
MACHADO
GRACILIANO
RAMOS
ilustração ANA
ELISA EGREJA
Fonte: Folha
de São Paulo, 13/04/2014
http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Lampi%C3%A3o<r=l&id_perso=135
http://blogdomendesemendes.blogspot.com