AMIGOS
Em março 2018,
eu trouxe ao Facebook a interessante e intrigante reportagem do "Diário de
Pernambuco", publicada na edição de 24 de maio de 1936, intitulada CHEGOU
AO RECIFE UMA DAS VÍTIMAS DE LAMPIÃO, onde nela, o nome MARIA BONITA como a
cangaceira mulher de Lampião, é grafado, salvo melhor informação, pela primeira
vez na imprensa nacional, antes do ano de 1938, quando de sua morte em Angicos.
Eis o trecho
da reportagem:
“MARIA BONITA
E O GRUPO - Diz um morador de Malhada que o grupo de Virgínio é composto de 7
homens e duas mulheres. Os nove se dividem em três, sendo que as mulheres ficam
com Virgínio. Cada grupo anda distanciando do outro quinhentos metros. Os
“cabras” esperam sempre pelo chefe para decidir qualquer questão. Maria Bonita,
a amasia do chefe do grupo, usa calça culote, dois parabéluns à cinta e
cartucheira.”
O que levou a
baiana Maria de Deia, a Maria de Lampião, a ser chamada, quase num átimo, e
para sempre, de MARIA BONITA, passa, como sabemos, pelo grande sucesso da
literatura brasileira, o romance "MARIA BONITA", de 1914, a
obra-prima do famoso escritor baiano, Afrânio Peixoto (1876-1947), que,
conforme leio, “um romance simbólico, que aproveita o mito de Helena, cuja
beleza é fonte, ao mesmo tempo, de amor e morte. A personagem central é uma
mulher de sentimentos puros, mas cuja extraordinária beleza só serve para
espalhar a desgraça em torno. Sua culpa única é ser bonita, daí a cobiça que
desperta nos homens, levando todos à tragédia, pela fatalidade que vive dentro
dela”. A história de uma sertaneja bela e sofrida. Um livro muito lido, e
elogiado pela crítica especializada, o "MARIA BONITA" de Afrânio
Peixoto.
Mas, mais ainda, penso eu, tem a MARIA BONITA de Lampião a ver com o filme
"MARIA BONITA", baseado nesta obra de Afrânio Peixoto, cujas
filmagens se iniciaram justamente em 1936, no ano que veio a lume a matéria
acima referida, do glorioso jornal pernambucano, produção cinematográfica
amplamente divulgada pelos jornais do Sul, e que veio a cartaz em 1937;
coincidentemente, no mesmo ano que Abraão Boto exibiu e viu, depois, apreendido
o seu extraordinário documentário sobre Lampião, a sua Maria e o bando de
cangaceiros, na caatinga nordestina.
Esta reportagem, que trago a seguir, logo após esta minha ousada participação,
onde, de forma inédita, o nome MARIA BONITA é apresentado com o da mulher de
Lampião, ou expressou verdadeiramente a informação que chegara à redação deste
Jornal, ou o MARIA BONITA da mulher de Lampião foi nasceu na redação deste
Jornal; digo isto, considerando o fato de ter sido esta a única menção que
temos, pelo menos nos principais jornais e revistas do país, ao nome MARIA
BONITA relacionado ao cangaço, antes de 1938, que eu saiba.
Fato é que o MARIA BONITA da mulher de Lampião ofuscou completamente o
"MARIA BONITA", livro e filme, da obra ficcional de Afrânio Peixoto.
Nunca mais os jornais se referiram a estes como e quanto dizem da cangaceira de
Paulo Afonso.
Sobre esta
reportagem do "Diário de Pernambuco", conheço apenas um trabalho,
assinado pelo escritor ilustre Frederico Pernambucano de Mello, acessível na
internet.
“Diário de
Pernambuco” – 24/05/1936
CHEGOU AO
RECIFE UMA DAS VÍTIMAS DE LAMPIÃO
Manoel Bezerra
relata à reportagem do DIÁRIO DE PERNAMBUCO sua dolorosa história – Novas
atrocidades do famigerado bando pelos sertões – Receio dos coiteiros – O
roteiro da malta sinistra.
Foi divulgada
pelo "DIÁRIO DE PERNAMBUCO" a notícia de que uma das vítimas de
Lampião viajaria para esta capital no trem do horário que vem de Rio Branco. O
pobre homem, que fora barbaramente emasculado pelo facínora, quando visitou a
fazenda Catimbau, nos arredores de Buíque, vinha internar-se num dos hospitais
daqui e submeter-se a um tratamento que lhe conservasse a vida. Sua jornada
dolorosa do alto sertão até aqui, viajando sem o mínimo conforto durante o dia
inteiro num carro de segunda classe, foi alvo de atração da reportagem desta
folha, que resolveu, também, ouvir dos próprios lábios de Manoel Bezerra, o
relato da dolorosa atrocidade.
Neste intuito um representante do "DIÁRIO DE PERNAMBUCO" viajou para
Vitória a fim de (...) passagem no mesmo trem em que viajava o ferido e
acompanha-lo até o Recife. Essa medida foi motivada principalmente pelo receio
de que o pobre homem, dados seu estado de gravidade e a prolongada viagem, aqui
chegasse agonizante, impossibilitado de relatar-nos o ocorrido.
EM VITÓRIA
Chegamos a
Vitória com bastante antecedência. Percorremos ligeiramente a cidade e á hora
do trem, já aguardávamos na estação há longo tempo sua chegada.
À aproximação do comboio divisamos a plataforma do carro de segunda classe um
soldado de polícia. Logo que os carros pararam, a ele nos dirigimos e, à nossa
pergunta, o militar levou-nos ao interior do vagão onde, efetivamente,
prostrado ao longo de um dos bancos, estava Manoel Bezerra num estado de
lamentável penúria. Vestia camiseta branca e calça de brim comum. Aparentava
ter uns 22 anos de idade. Seu rosto moreno de vez em quando se contraia num
rictos de dor.
Ao dar sinal de partida o trem e afastarem-se os curiosos para saltar, pois na
maioria eram da cidade, aproximamo-nos dele, que estava de olhos fechados. A
essa altura, o comboio iniciava sua marcha e o pronunciado mal cheiro que se
sentia no interior do carro, com o deslocamento do ar tornou-se menos intenso,
permitindo respirar-se melhor. O condutor aparece para marcar as passagens. Ao
receber a nossa, diz espantado:
- “Mas essa passagem é de primeira classe... A primeira é no carro da
frente...”
Explicamos nossa função de repórter, ao que ele pilheria: Enquanto muitos
compram de segunda e querem ir para a primeira com o senhor deu-se o contrário:
comprou de primeira e veio para a segunda...”
Um passageiro atalha:
- “Ele veio ouvir as desgraças deste pobre homem para contá-la a toda gente...
Pode ser que assim tenham pena do sertanejo e resolvam acabar com Lampião...”
A TRISTE
HISTÓRIA
Manoel Bezerra
recostava, agora, a cabeça na mão. Aproveitando um momento em que descerrou os
olhos, pedimos que nos contasse tudo como se dera. Ele, num esforço, começou a
murmurar e depois a falar mais alto. A cada momento interrompe a narrativa para
gemer.
Contou que era solteiro, noivo, e possuía pequena propriedade. Na terça-feira
passada voltava da roça para a sua casa quando, ao entrar na sala, ouviu vozes
num falatório que vinha da vizinhança. Ali residia seu amigo Pedro Firmino
Cavalcanti e, receando tratar-se de alguma anormalidade contra ele, decidiu
verificar o que havia. Ao sair de casa, divisou uma aglomeração de pessoas.
Destacou-se do grupo um homem que lhe acenou com a mão. Uma vez que o chamavam,
não suspeitando tratar-se de bandidos, foi verificar o que queriam de sua
pessoa.
Ao chegar mais perto, o malfeitor gritou:
- “Venha cá!”
Continuou ele:
- Quando cheguei lá vi que a casa estava cercada. Oito homens e duas mulheres
estavam armados até os dentes. Tinham todos a cara de assassinos. Uma delas, a
quem chamaram de Maria Bonita, me deu logo duas chibatadas. Um homem dos olhos
vermelhos chegou para perto de mim e disse: ‘Vá buscar meu cavalo ali’. Esse
homem era Virgínio, cunhado de Lampião. Fui buscar o animal que estava a uns
trinta metros e quando o entreguei ao tal Virgínio, ele, então, sem me deixar
fugir, realizou seu intento.”
Relatou-nos, então, Manoel, que por mais que implorasse, o bandido não o
atendeu. Disse-lhe: “Não tem santo que lhe acuda”, e utilizando um trinche-te
que pedira a um cabra, mutilou-o desalmadamente. Depois de emasculá-lo, mandou
que pusesse pimenta, sal e cinza na ferida e fosse para casa.
Manoel, que perdera muito sangue, se cansava na sua narrativa. Calou-se, fechou
os olhos e continuou deitado.
OUVINDO UM
SOLDADO
Deixamos o
enfermo e fomos em busca de outras informações.
O soldado Manoel Basílio, que acompanhava o doente, informou-nos que o grupo de
bandidos, após a sangrenta pousada em Catimbau, saiu pela estrada de Buíque e,
à distância de uma légua, entrou pela cerca de arame de propriedade do senhor
P. França.
Virgínio atirou o trinche-te dentro do canavial.
– “Mais adiante – continua o soldado – os bandidos prenderam um parente deste
rapaz.”
Manoel Bezerra abriu os olhos e perguntou de que se falava. Ciente da narração
do soldado, acrescentou:
– “Virgínio prendeu o meu primo legítimo Firmino Salvador e por ele mandou
procurar o trinchete, dizendo que ‘se encontrasse algum macaco (policial),
morresse mas não lhe entregasse o seu instrumento.’
Meu primo foi e correu até Buíque, entregando o trinche-te ao delegado de
polícia. De Firmino eles levaram três cavalos. Depois é que foram a Catimbau.”
Deixamos o emasculado e o soldado, e fomos ouvir o condutor do trem, que nos
prometera algo.
ATERRORIZADOS
O condutor
levou-nos a um passageiro. Este se reuniu a outros e cercaram o repórter. Contaram-nos
outras atividades de Lampião. Como indagássemos os nomes dos nossos
interlocutores, eles, como que estivessem unidos pelo mesmo terror, negaram-se
a decliná-los, alegando “precisar viver”; que “ se dissessem os nomes lá no
sertão havia alguns “coiteiros’ que forneceria a lista aos bandidos, e que
pagariam caro.
- “Saindo de Buíque, os cangaceiros estiveram em Malhada – informou-nos um
passageiro. No caminho encontraram o sr. Agenor Tenório, que viajava em
companhia de outro. Procediam da fazenda França (...). Os cabras de Virgínio
perguntaram logo si tinham dinheiro e como responderam negativamente, os
bandidos pediram que desmontassem e levaram seus cavalos, deixando-os a pé.
QUASE ATACADOS
PELA POLÍCIA
–
“Quinta-feira, pela madrugada – continua o nosso informante – o grupo deixou
Malhada, a 9 quilômetros de campo de aviação de Rio Branco. Atravessou a linha
de ferro entre as estações de Tigre e Pinto Ribeiro e foram à fazenda Estrela
D’ Alva de propriedade da Cia Pastoril do São Francisco. Deixaram ali uma carta
para o gerente, dr. Gumercindo pedindo 10 contos. A carta tinha a assinatura:
Virgínio, cunhado de Lampião.
Saquearam a cidade e chegaram até mesmo a levar alianças do dedo de algumas
pessoas. Os facínoras deixaram os cavalos em que viajavam e escolheram outros
para prosseguir a viagem.”
Um outro passageiro nos diz:
- “Às 16 horas do mesmo dia entraram em Umbuzeiro. A população, tendo aviso da
aproximação dos facínoras, havia abandonado a cidade, ficando somente uma casa
de negócio aberta.
Deram um saque e numa venda tomaram muita aguardente num engenho de alambique
de barro.”
ASSASSÍNIOS
Saíram de
Umbuzeiro sem cometer nenhum assassinato. No caminho, porém, encontraram Pedro
de Alcântara e Sebastião Sebas, na fazenda Matanças. Perguntaram sobre os seus
destinos, ao que responderam sempre estar comprando queijo para revender.
Desconfiados da veracidade das palavras dos transeuntes, conduziram-nos à casa
do fazendeiro conhecido por José Cobra, nas proximidades. Este vacilou em
responder. Mas, sob ameaças de pontas de punhais, confessou que Pedro de
Alcântara e Sebas tinham ido lhe avisar da presença do bandido. Como também a
Sátiro Feitosa. Irritados, os bandidos mataram Sebas no terreiro da casa e
Pedro na sala, com um tiro de pistola máuser na cabeça. Em seguida, intimaram
José Cobra a dar-lhes 2:500$000, no que foram satisfeitos. Dali rumaram para a
fazenda Ribeirão Fundo, de propriedade de Sátiro Feitosa. Já nas terras da
fazenda, entraram na casa de Gedeão Hipólito, e amordaçaram sua esposa.
Estiveram depois na casa de Sátiro. Um cabra procurou o proprietário e lhe
disseram que havia se retirado. Então, perguntou por Gedeão.
Um homem declarou ser o próprio.”
MATOU E
SANGROU A VÍTIMA
“O bandido
bradou:
– “Aqui está um presente que lhe mandaram porque foi avisar a seu patrão.”
– “O presente foi um tiro na cabeça” – aparteou outro passageiro que até o
momento não havia dito nada.
O primeiro continuou:
– “Em seguida sangrou sua vítima. Indo ao interior da casa, encontrou o negro
velho José Lourenço, cozinheiro. Como respondesse que nada sabia, mataram-no.
Também sangraram este. Entre Umbuzeiro e Malhada os bandidos haviam conseguido
cercar os vaqueiros, que pastavam o gado de uma fazenda, para roubar-lhes os
cavalos com os arreios. Dois dos cavalos estavam cansados, quando chegaram a
Ribeirão Fundo. Por isso, Virgínio entregou-os a um morador da fazenda para
leva-los ao coronel de Arcelino Brito.”
Soubemos que o tenente Manoel Neto chegou a Tigre quando os bandidos estavam em
Umbuzeiro. A polícia ia a caminhão, mas a estrada não deu passagem. Foi
necessário que o tenente fosse por outra estrada e assim não encontrou mais
cangaceiros.
O grupo dirigiu-se para a serra de Ipojuca, rumo a Mimoso, estação próxima a
Rio Branco.
EM ALAGOA DO
MONTEIRO
A última hora
soubemos que o grupo esteve na fazenda Raposa, de propriedade de José Branco.
Roubaram dali 15:000$000 em dinheiro. Enquanto uma turma de cangaceiros
realizava esse roubo, uma outra atacara Angico, em (...) onde mora Fortunato
Reinaldo.
Desse fazendeiro exigiram 10 contos e como só tivessem seis, levaram um seu
filho de nome Anfrísio, como garantia dos 4 contos. Fortunato mandou pedir
emprestado o dinheiro em Poção, o qual não foi entregue aos bandidos. Estes não
compareceram ao local marcado para a entrega da quantia referida, que era a
serra de Jurema.
A malta esteve por último no Fundão, na Paraíba. Aí os facínoras assassinaram
duas moças e uma velha de 84 anos de idade.
Sexta-feira o grupo internou-se na serra do Franco para o lado da serra Pendura
e não foi mais visto. Segundo nos informou um sertanejo de Alagoa do Monteiro,
ele estava para os lados de Brejo do Jatobá.
Adiantou-nos que sobem a 75 contos de réis somente em dinheiro os saques no
município de Alagoa do Monteiro.
OS GUIAS
Ao entrar no
estado da Paraíba até o saque de Umbuzeiro serviu de guia aos bandidos
Malaquias Batista, genro do sr. Fernandes, e preso na ocasião em que os
cangaceiros ‘visitaram’ a casa deste, de onde roubaram 13 contos. De Umbuzeiro
por diante, Sebastião Tavares foi preso por Virgínio para indicar-lhe o
caminho.
AS VÍTIMAS
Gedeão
Hipólito deixou 9 filhos menores. Pedro de Alcântara, 4. Sebes, 5.
Foram mortos mais as duas moças, a velha, dois homens, dos quais um cadáver não
foi encontrado.
Sobre a morte de Pedro de Alcântara corre outra versão. É a de que ele fugia
para salvar o dinheiro que estava em caixa na Mesa de Rendas.
MARIA BONITA E
O GRUPO
Diz um morador
de Malhada que o grupo de Virgínio é composto de 7 homens e duas mulheres.
Os nove se dividem em três, sendo que as mulheres ficam com Virgínio. Cada
grupo anda distanciando do outro 500 metros. Os cabras esperam sempre pelo
chefe para decidir qualquer questão.
Maria Bonita, a amasia do chefe do grupo, usa calça culote, dois parabéluns à
cinta e cartucheira.
A outra mulher viaja em (...)
– Manoel Bezerra, logo ao chegar à Estação Central, foi internado no Pronto
Socorro, onde ficou em tratamento. Apresenta algumas melhoras.
SEGUIU PARA O
SERTÃO O DELEGADO
Anteontem
seguiu para Rio Branco o delegado auxiliar, Sr. Ranulfo Cunha. Dali esta
autoridade comunicar-se-á com o secretário da Segurança Pública pelo telégrafo
da Greal Western, transmitindo-lhe as últimas notícias sobre os grupos dos
bandoleiros.
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