Por: Honório de Medeiros
Como sabemos,
a famosa “Teoria do Escudo Ético” de Frederico Pernambucano de Mello está
exposta em três parágrafos do capítulo 4 do clássico "Guerreiros do
Sol", abaixo transcritos a partir de sua segunda edição:
Frederico Pernambucano de Melo
"Muito se
tem falado nos paradoxos da chamada moral sertaneja. No Nordeste, talvez melhor
que em qualquer outra região, sente-se a existência desse quadro de valores -
inconfundível em muitos dos seus aspectos. Chega a ser quase impossível, por
exemplo, explicar ao homem do sertão do Nordeste as razões por que a lei penal
do país - informada por valores urbanos e litorâneos que não são os seus -
atribui penas mais graves à criminalidade de sangue, em paralelo com as que
comina punitivamente para os crimes contra o patrimônio. Não se perdoa o roubo
no sertão, havendo, em contraste, grande compreensão para com o homicídio. O
cangaceiro - vai aqui o conteúdo mental do próprio agente - não roubava,
"tomava pelas armas"."
"Dentro
desse quadro todo próprio, a vingança tende a revestir a forma de um legítimo
direito do ofendido. "No sertão, quem se não vinga está moralmente
morto", repitamos mais uma vez a frase tão verdadeira de Gustavo Barroso,
conhecedor profundo desse paralelismo ético sertanejo."
"Ao
invocar tais razões de vingança, o bandido, numa interpretação absurdamente
extensiva e nem por isso pouco eficaz, punha toda a sua vida de crime a coberto
de interpretações que lhe negassem um sentido ético essencial. A necessidade de
justificar-se aos próprios olhos e aos de terceiros levava o cangaceiro a
assoalhar o seu desejo de vingança, a sua missão pretensamente ética, a
verdadeira obrigação de fazer correr o sangue dos seus ofensores. O folclore
heroico, em suas variadas formas de expressão, imortalizava-o, omitindo
eventuais covardias ou perversidades e enaltecendo um ou outro gesto de
bravura. Concretizada a vingança, por um imperativo de coerência estaria aberta
para o cangaceiro a obrigatoriedade de abandonar as armas, deixar o cangaço. Já
não teria mais a socorrer-lhe a imagem o escudo ético por esta representado.
Como então realizar tal vingança, se o cangaço era um bom meio de vida?"
Já tive
oportunidade de observar que o “escudo ético” não é propriamente um epifenômeno
da cultura moral sertaneja nordestina, muito menos apenas do cangaço. Essa
opinião é corroborada, como se pode depreender, a partir da entrevista de
Anthony Daniels à revista "Veja" de 17 de agosto de 2011 - edição
2230, ano 44, nº 33 -, na qual o psiquiatra e escritor inglês, ao analisar a
influência da tese do suíço Jean Jacques Rousseau de que o ser humano é
fundamentalmente bom, e que a sociedade o corrompe, afirma que esta prejudicou
profundamente sua noção de responsabilidade: "Por influência de Rosseau,
nossas sociedades relativizaram a responsabilidade dos indivíduos."
Como digo sempre: a realidade está na mente, antes de estar na realidade.
Trocando em miúdos: o racional antecede, em última instância, o real.
E continua:
"O pensamento intelectual dominante procura explicar o comportamento das
pessoas como uma consequência de seu passado, de suas circunstâncias
psicológicas e de suas condições econômicas. Infelizmente, essas teses são
absorvidas pela população de todos os estratos sociais. Quando trabalhava como
médico em prisões inglesas, com frequência ouvia detentos sem uma boa educação
formal repetindo teorias sociológicas e psicológicas difundidas pelas
universidades. Com isso, não apenas se sentiam menos culpados por seus atos
criminosos, como de fato eram tratados dessa maneira."
Exemplifiquei,
em texto anterior, citando o exemplo ocorrido neste começo de século XXI,
aqui no Rio Grande do Norte, e que já virou lenda, no qual se atribui a
injustos mal tratos físicos da Polícia, o ingresso do célebre Valdetário
Benevides Carneiro, líder do bando dos Carneiros, no crime. "Como não há
justiça" teria dito em outras palavras Valdetário, "vou fazer a
minha."
Valdetário carneiro
Ou seja: há o
escudo ético, mas ele não é específico da moral sertaneja nordestina. Parece
ser um epifenômeno decorrente da criminalidade, seja rural, seja urbana, não
sendo suporte, portanto, para uma teoria que caracterize o epifenômeno do
cangaço.
Por outro
lado, especificamente no que concerne a essa famosa “teoria do escudo ético” de
Frederico Pernambucano de Mello, é certo lembrar que Câmara Cascudo, em 1937,
no seu “Vaqueiros e Cantadores”, já o expunha, no que diz respeito ao cangaço,
quando no Capítulo denominado “Ciclo Social”, trata do “Cangaceiro”.
Câmara Cascudo
Para Cascudo,
ao explicar por que a valentia, quanto aos cangaceiros, originava a “aura
popular na poética” dos cantadores, necessário se fazia a existência, como
pressuposto, do fator moral, que nada mais era que o “escudo ético”. Disse
Cascudo:
“Para que a
valentia justifique ainda melhor a aura popular na poética é preciso a
existência do fator moral. Todos os cangaceiros são dados inicialmente
como vítimas da injustiça. Seus pais foram mortos e a Justiça não puniu os
responsáveis.”
Teria lido
Pernambucano de Mello “Vaqueiros e Cantadores”? Na bibliografia de “Guerreiros
do Sol” o grande teórico do cangaço arrola, de Câmara Cascudo, “Tradições
Populares da Pecuária Nordestina” e “Viajando pelo Sertão”. O mais provável é
que ambos souberam perceber, com quase cinquenta anos de diferença, na história
da violência rural sertaneja nordestina do final do século XIX e início do
século XX, esse fato específico, qual seja, a justificativa moral para a
entrada dos cangaceiros na vida bandida.
A diferença é que Pernambucano de Mello transforma esse fato em algo
determinante para explicar o cangaço, enquanto Cascudo propõe que o mesmo fato
é fundamental para a existência da poética sertaneja nordestina de mitificação
do cangaceiro.
Extraído do blog do escritor e pesquisador do cangaço: Honório de Medeiros
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br
Veja também:
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
http://sednemmendes.blogspot.com
http://mendespereira.blogspot.com