Madrugada em
Alagoas quando a tropa, numa pisada felina, foi-se aproximando de Lampião. Eram
quatro horas da manhã. Bezerra dera ordens terminantes aos seus homens para que
aguardassem um sinal convencionado a fim de abrir fogo. No entanto, os soldados
haviam se aproximado demais do local.
O grotão
estava semi-silencioso. Fazia instantes que Maria Bonita acordara, deixando a
tenda com uma vasilha na mão, para vir acender o lume e fazer café da manhã no
terreiro. Um soldado do aspirante Ferreira, que se aproximara demais do coito,
não se conteve com medo talvez de ser descoberto. Esquecendo a ordem do
tenente, rompeu fogo por sua conta.
Dera tempo, no
entanto, a que Maria Bonita servisse um cafezinho ao Capitão. A rajada da
costureira do soldado foi dada quase à queima-roupa. Pois a cinco metros do
tenente Bezerra estava José Sereno, já desperto. O aspirante Ferreira Tinha
Virgulino a poucos metros da sua mira. A rajada do soldado deu início, assim,
ao tiroteio.
Luiz Pedro,
saltando de dentro de uma tenda, chapéu não mão, gritou:
- Compadre
Lampião, vamos embora que é gente muita!
Maria Bonita,
aturdida, teve tempo ainda de replicar a Luiz Pedro:
- Luiz, você
não disse que nunca abandonaria o seu compadre Lampião?
Aí Luiz Pedro
estacou. Não foi mais homem para correr. Não pode, porém, reagir a violência e subitaneidade do ataque. Quando ia fazê-lo, caiu trespassado, pesadamente.
Outra rajada
atingira de frente, na cabeça e em várias partes do corpo, o Capitão Virgulino.
Ele já estava de rifle na mão, mas vergou sobre os pés, esbujando no chão.
Maria correu para junto dele, as mãos postas aos céus, orando talvez. Dizem que
as últimas palavras do Capitão foram de mensagem à polícia:
“Não tenho
dinheiro”
Os que puderam
escapar, fizeram-no saltando as pedras do riacho, numa debandada infernal,
acometidos que foram de surpresa. A polícia calculou em meia centena o número
dos que estavam com Lampião em Angico.
O combate fora
de curtíssima duração, um quarto de hora, pouco mais ou menos.
Morta, ao lado
do Capitão, estava Maria Bonita. Trajava a defunta um vestido de seda cinza, de
sombra estampada, quando o cabo Bertoldo, degolou-a, com um só golpe de facão
“Jacaré”.
“Sua pele era
macia, seu corpo não tinha uma cicatriz, parecia feito de louça”, confidenciou,
mais tarde, em prantos, o cabo degolador.
As tendas de
chita, onde Lampião e o bando dormiam, arriaram sobre as armações de
forquilhas. Pelo chão, no fim da refrega, viam-se, dispersos, os objetos de
usos daquela estranha comunidade.
Estavam mortos
Luiz Pedro, Desconhecido, Cajarana, Diferente, Mergulhão, Elétrico, Caixa de
Fósforos, Quinta–feira, e Enedina, esta última mulher de José de Julião, que
logrou escapar.
O soldado José
Panta, ao ver tantos corpos estendidos, disse ao cabo Bertoldo:
- Bertoldo,
tem gente morta aqui que dá agonia!
- Viva Nossa
Senhora! – Gritou, em resposta, o cabo alagoano, cercado pelos soldados
Honoratinho, Antonio Ferro, Agostinho e Abdon.
O aspirante
Ferreira ordenou a degolação dos cadáveres. Um único soldado da tropa morrera,
o de nome Adrião, e um outro saíra ferido. O corpo do
morto foi recolhido pelos companheiros.
Adrião Pedro de Souza é o primeiro da esquerda - Esta foto pertence ao acervo do professor, escritor e pesquisador do cangaço Antonio Vilela de Souza
Reza a tradição que o sargento Aniceto,
para apoderar-se dos troféus, não perdeu tempo em retirar dos cangaceiros os
anéis que traziam. Empunhando o seu facão, decepava-os em bloco, embolsando os
dedos ainda com os anéis.
Depois da
degola, contavam-se onze cabeças. Elas foram postas em latas de querosene,
imersa em álcool e sal e levadas às canoas na beira do rio.
No percurso de
volta, rumo a Maceió, pelas estradas, formou-se alegre cortejo: três caminhões,
quatro carros.
Abismados, na
orla dos caminhos, pelas ruas e praças das cidades e povoados, os sertanejos
contemplavam aquelas medusas retardatárias. Como as gentes do nordeste baiano
haviam olhado, estarrecidas, quarenta anos antes, a cara disforme de Antonio
Conselheiro.
Durante o
trajeto, conseguiu-se formol para conservar as cabeças de Lampião e Maria
Bonita. As demais fediam, no seu apodrecimento.
Em Limoeiro de
Anadia, numa das paradas desse museu ambulante de horrores, olhando fixamente a
cara de Virgulino Ferreira da Silva, um homem do povo comentou:
- Parece
mentira, mas é o Capitão mesmo!
As mocinhas de
Palmeira dos índios ficaram exultantes com a passagem do circo exótico, do
teatro medieval. E, na vila de Mosquito, outro sertanejo assim falou:
- Mataram o
Capitão, eu sei, porque oração forte não vale dentro d’água...
Aludia ao
riacho seco, cujas pedras serviram de túmulo a Virgulino Ferreira, apenas
coberto por elas, no grotão dos angicos.
No momento em
que se feriu o combate, o tenente João Bezerra não tinha a menor noção do seu
alto feito d’armas. Soube que Lampião havia morrido quando dele se aproximou um
soldado, com uma cabeça na mão, no meio daquela fumaça que se levantava em
derredor e do nevoeiro chuvoso que se abatia dentro da madrugada,
comunicando-lhe isto:
- Seu tenente,
o cego também morreu.
E levantou,
diante do espantado comandante, que fora levemente ferido, a cabeça em que se
reconhecia o olho vidrado do Capitão Virgulino Ferreira da Silva Lampião.
Aquele olho
terrível que nos fitava do fundo da histórias do sertão...
FIM!
Fonte: Capitão
Virgulino Ferreira: Lampião
Autor: Nertan
Macêdo
Edições O
Cruzeiro Rio de Janeiro
Ano: 1970
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