Não estou
certo disso, Virgulino. Você precisa parar com essa loucura, precisa tomar novo
rumo na vida.
– Tá bem, seu
pade. Agora, já qui o sinhô me dá esse conseio, eu lhe peço: deixe eu
assisti a missa... É um pidido qui lhe faço...
O coração do
padre Artur amoleceu.
– Vá. Pode ir.
Só não pode é entrar armado na igreja.
Na sala ao
lado, dona Marieta escutava a conversa, apegando-se a todos os santos que
conhecia para que tudo terminasse bem. Ao perceber que não havia mais perigo,
dados os termos do acordo que acabava de ouvir, correu até a casa da vizinha
para contar a novidade. Assegurou à comadre que Lampião era um homem muito
educado.
Num instante,
todo mundo sabia da notícia: Lampião estava no Poço e ia assistir à missa. Quem
pensou em se esconder mudou de ideia ao ver o padre Artur sair da casa de China
são e salvo, e atrás dele os ilustres visitantes, descontraídos, afáveis,
palitando os dentes.
Começava a
chegar gente das redondezas para a missa – gente a pé, a cavalo, em carros de
bois. Ao ouvirem a novidade, a reação de todos era a mesma: assombro, medo,
curiosidade.
Aos poucos, o
povo foi se aproximando, olhando de longe o movimento na casa de China. João
Cirilo e Miquéias estavam bebendo cachaça com os cangaceiros, cheios de
intimidades. Mandaram chamar os amigos, garantindo que Lampião era amigo do
Padre Autur, ninguém precisava ter medo. Uns meninos passaram na frente da
bodega e Lampião jogou moedas para eles. Quando os moleques chegaram em casa
com aquele dinheiro todo, cessaram de vez os receios. “Eta home danado de bom é
Lampião” – diziam.
Na hora da
missa, a igrejinha estava lotada. Mesmo assim, quando Lampião chegou com seus
homens, as pessoas deram um jeito, se espremeram, coube todo mundo. Lá fora
ficou apenas um cabra, de vigia. Mas Lampião não cumpriu a promessa feita ao
padre Artur: estavam todos armados e equipados.
Durante a
celebração, ninguém prestou atenção ao padre. Mesmo os que estavam na frente
davam sempre um jeito de se virar de vez em quando, a pretexto de qualquer
coisa, para dar uma espiada nos cangaceiros. Lampião sabia rezar, ajoelhava-se
nas horas certas, sentava-se ou ficava de pé nos momentos adequados, respondia
até aos “Dominus vobiscum” – coisas que no Poço só dona Marieta sabia.
Depois da
missa, os cabras dirigiram-se à casa de China, e o povo, já familiarizado com
eles, foi atrás, formando-se um ajuntamento em frente à bodega. China não
conseguia dar conta do movimento. Gente que nunca comprou nada em sua venda, de
repente virou freguês.
O padre Artur
estava preocupado. Desde o amanhecer, os cabras estavam bebendo. Cangaceiro é
cangaceiro, ninguém se iluda. Tinha de mandar Lampião embora, antes que
acontecesse uma desgraça. Resolveu deixar os batizados e casamentos para mais
tarde. Depois de tirar os paramentos, foi bater na casa de China. Ao avistá-lo,
Lampião foi ao seu encontro:
– Mais seu
vigaro, veja o sinhô qui dia feliz! Só tá fartano ũa sofona! Cadê esse tá de
Agenô Pitomba?
– Pois é,
Virgulino, é justamente sobre isso que vim lhe falar. Você me disse que estava
de passagem...
Lampião coçou
o queixo, embaraçado. Estava gostando daquele lugar. Depois dos batizados e
casamentos ia ter festa. João Cirilo tinha dito que à noite ia ter um baile de
arromba, o sanfoneiro era Agenor Pitomba. E outra coisa: nunca tinha visto
tanta mulher bonita. Tudo doidinha por folia, que mulher é bicho danado pra
gostar de cangaceiro. Mas, que fazer? Não se desrespeita um padre, pois ai do
vivente que for excomungado por um padre, vai direto pras profundas dos
infernos.
– Pade Artur,
o qui eu prometi ao sinhô eu cumpro. – E, dizendo isso, alteou a voz: –
Mininos, venham se dispidi e pidi a bença ao pade! Zequié, venha cá. Você
tamém, Virgino. Cadê o resto?
O Capitão
levou o padre até os outros cangaceiros, que estavam se divertindo entre o
povo, olhando de longe para as mocinhas, como quem não quer nada. No alpendre
de uma casa estavam as filhas de Antônio Marques e de Lé Soares. Uma das filhas
de Lé não tirava os olhos do cangaceiro Mariano. E o cangaceiro também estava
de olho nela. Naquele instante Mariano estava conversando com um vaqueiro,
perguntando quais eram os homens ricos do povoado, além de Julião, um velho que
era proprietário de muitas terras, porém sovina como o diabo. Lampião
apresentou o companheiro:
– Este aqui,
seu pade, é Mariano, cabra bom, anda cumigo fais munto tempo, é fio dum lugá
chamado Afogados da Ingazeira, im Pernambuco, lá pras banda do Pajeú, o mermo
lugá onde nasceu Antonho Silvino, de quem na certa o sinhô já viu falá. Se
dispeça do pade, Mariano.
O próximo a
despedir-se foi um cangaceiro avermelhado, de cabelo claro, feições firmes:
– Esse aí é
Luís Pedo, seu vigaro. Ele num gosta de apilido. É cuma se fosse um irmão meu.
É tamém de Pernambuco. E aquele ali é da Quixaba, se chamava-se Anjo Roque e
agora é Labareda, derna de onte qui tá cum nóis. Aquele outo é Zé Furtaleza. Os
outos dois são primo, é Curisco e Arvoredo. E agora venha vê um segipano. Dexei
ele pro fim de proposto. É o premero cabra de Segipe a me acumpanhá. Nóis chama
ele de Vorta Seca.
O padre Artur
ficou chocado com o que via. O cangaceiro sergipano não passava de um menino,
um mulatinho de olhos vivos e jeito brincalhão que nem fios de barba tinha
ainda. O vigário perguntou a idade dele.
– Onze ano –
respondeu o garoto.
– Deus
misericordioso!... – balbuciou o velho padre, condoído com tão terrível
desgraça. – Uma criança...
– Criança!? –
contrapôs Virgulino. – Nun se ingane não, pade Artu. Esse muleque, com essa
carinha de besta, tem corage de fazê coisa qui até o diabo duvida! Nasceu pra
sê cangacero!
O Capitão
levantou o rosto, consultando a posição do Sol, e decidiu que era hora de tomar
a estrada. Pegou o apito que levava amarrado com uma tira de couro à cinta do
cantil e soprou forte duas vezes, chamando os cabras.
– Vou simbora,
pade Artu. Até mais vê. Adiscurpe os mau jeito.
– Deus o leve,
Virgulino. Pense no que eu lhe falei. Arranje um jeito de largar essa vida.
Procure o coronel João Maria, da Serra Negra. Ou o coronel Antônio Caixeiro, da
Borda da Mata. Diga que falou comigo. Eles podem lhe ajudar.
– Munto
obrigado, seu pade.
Enquanto
Lampião ia falar com China, o padre Artur Passos procurou Volta Seca, que já
estava montado, junto com os companheiros. Estava sinceramente preocupado com o
destino daquele pobre menino. Segurando as rédeas do cavalo do garoto
cangaceiro, o padre perguntou:
– Meu filho,
por que você deixou sua família, para seguir essa vida?
– Eu nun tenho
famia. Meu pai agora é Lampião.
– Você tem
certeza de que é essa a vida que quer ter?
Embora a
pergunta fosse feita a Volta Seca, quem respondeu foi Mariano, que estava
perto, escutando a conversa:
– Ninguém é
cangacero purqui gosta, seu vigaro. Nóis nun tem outo jeito não. A nossa vida é
esta.
– E vocês não
têm medo das forças do governo?
– Medo de
macaco? Nóis? Os macaco é qui se pela de medo da gente, home!
A conversa de
Lampião com China foi reservada. O Capitão estava interessado em coisas
práticas. Queria saber se Aracaju ficava longe e se em Itabaiana havia muitos
macacos.
– Capitão, se
o sinhô tá pensano im ir pro Aracaju, pode mudá de ideia, purque fica nos
confim do mundo. Tabaiana é a merma coisa. Lá quem manda é o coroné Dorinha, e
a cidade tem mais sordado do qui gente!
– Seu China,
quem foi qui diche qui eu quero ir pra Aracaju? Daqui eu vou é pra Serra Nega!
Agora, mudano de assunto, eu quero qui o sinhô me conte aí a histora de uma
butija qui o sinhô achou.
China tomou um
susto. Até isso tinham contado a Lampião?!
– Butija, seu
Capitão? – perguntou China, se fazendo de desentendido.
– Me conte a
histora da butija, seu China – insistiu o cangaceiro. – O sinhô achou ou nun
achou ũa butija?
– Ah, sim, a
butija... Já lhe falaro disso pro sinhô, é? Foi coisa sem importança, Capitão.
Eu tive um sonho, ũa arma do outo mundo dizeno onde tinha um dinhero interrado
nũa casa véia.
– E tinha
dinhero mermo, seu China? Quanto?
– Ũa bobage,
Capitão. Era ũas mueda do tempo antigo, qui nun circulava mais, nun valia de
nada...
– Foi isso
mermo qui me dichero, seu China. Eu tava só quereno uvi a histora de sua boca.
E agora vou simbora. Diga a dona Marieta qui adiscurpe o trabaio qui nóis deu a
ela. Munto obrigado pur tudo.
– Eu é qui
agardeço, Capitão.
Saindo do
interior da casa, Lampião soprou o apito novamente e dirigiu-se ao cavalo.
Aumentou o alvoroço. As pessoas esticavam-se na ponta dos pés para ver mais uma
vez o Capitão Virgulino, que estava indo embora. As moças apinhavam-se nas
portas e janelas. Dizia-se que Volta Seca tinha dado um de seus muitos anéis a
Mocinha de Dedé, e ela agora mostrava o presente às amigas, que morriam de
inveja.
China veio
falar de novo com Lampião, que já considerava seu amigo:
– Capitão,
gostei munto do sinhô. Se argum dia vosmicê vinhé de novo pur aqui, a casa tá
as suas orde. Se eu nun tivé aqui, tou no terreno. Tenho ũas terrinha num lugá
chamado Recurso, logo aí na saída da rua.
– Eu já sabia,
seu China. Mais é assim qui se fala. Tou veno qui o sinhô é um cabra macho. Cum
certeza vou vortá outas veis aqui. Até mais vê!
O Rei do
Cangaço, imponente em sua montaria, acenou para o povo de Poço Redondo. Os
cangaceiros esporearam os cavalos, fazendo cabriolas, mostrando destreza, e
dispararam a galope pela estrada que ia para a Serra Negra. O povo ficou
olhando o bando se afastar levantando uma nuvem de poeira.
Todos estavam
maravilhados com os modos gentis do Capitão cangaceiro. A partir dali os mais
velhos teriam muito que contar, muito assunto para os encontros com os amigos.
E os mais novos teriam razões para sonhar de olhos abertos, imaginando novas
perspectivas em suas vidas. Devia ser maravilhoso viver como cangaceiro, ficar
famoso, ter dinheiro, ter mulheres, ser temido e adulado aonde chegasse,
podendo fazer o que quisesse na vida, como Volta Seca, que aos onze anos de
idade já era homem!...
Em vez de ir
para a Serra Negra, como dera a entender ao sair de Poço Redondo, logo adiante
o astuto cangaceiro mudou de rumo, pegando a estrada de Monte Alegre.”
* * *
O texto acima,
entre aspas, é reprodução literal do capítulo 95 de Lampião – a Raposa das
Caatingas. No capítulo 174, faço considerações acerca das circunstâncias que
levaram Poço Redondo a ser identificada como “A Capital do Cangaço”.
Fonte: facebook
http://blogdomendesemendes.blogspot.com