Por Rangel Alves
da Costa*
A maioria das
pessoas talvez não conheça o que seja canga nem qual a sua serventia. Antecipo
afirmando que é um instrumento de madeira colocado no pescoço dos animais para
que não fujam ao comando do condutor. E também para que uma dupla de bois siga
na mesma direção. Também conhecida por jugo ou junta de bois, era muito
utilizado nos animais puxando carro-de-bois e também noutros pescoços de bichos
arredios.
Conceitualmente,
canga é uma peça de madeira encurvada, simples ou dupla, que se coloca no
pescoço ou cachaço dos animais de carga. É o instrumento utilizado para
unir dois bois, para que andem no mesmo compasso enquanto puxam um arado ou uma
carroça. A madeira é talhada de modo a ser ajustar aos pescoços ou perfurada no
molde destes. Neste último caso, a madeira se abre ao meio e novamente é unida
quando os pescoços estão presos.
Após a
colocação da canga, o carreiro sobe no carro de madeira rangente e passa a
comandar, com berros e chicotadas, os bois submissos. Além do chicote de couro
cru geralmente leva à mão uma vara com ponta de metal afiado para espetar o
lombo dos bichos, ainda que estes estejam se esforçando ao máximo para carregar
tanto peso. Desse modo, a canga, muito mais que um instrumento para juntar os
animais na mesma direção, é utilizado para deixá-los em posição de submissão,
de verdadeiro jugo, em posição ideal para serem açoitados e feridos pelos seus
algozes.
Mas nem só os
animais eram submetidos à canga, ao jugo pesado sob o pescoço, pois também o
bicho humano já foi atormentado pela sua ira. Até hoje os desenhos de Debret e
outras ilustrações acerca da escravidão mostram os negros fugidios acorrentados
e sendo puxados a partir de uma madeira envolvendo seus pescoços. Avistam-se as
cangas como instrumentos de escravização, de sujeição e tortura.
Também noutros
tempos, muitos condenados à morte por decapitação eram colocados em cangas à
espera que sobre suas cabeças descesse a lâmina cortante. As cenas terríveis
sempre mostrando mãos presas à madeira, os corpos de um lado e a cabeça de
outro, e apenas a canga dividido a vida da morte. E num simples gesto do opressor,
então o algoz descia a lâmina e fazia a cabeça cair ao chão.
No Nordeste
brasileiro, o surgimento de grupos de bandoleiros das caatingas fez surgir o
termo cangaço, como forma de denominar aqueles que enveredavam nas hostes da
bandidagem por viverem sob a canga do Estado, do mando e da opressão. Neste
sentido, a canga era o peso suportado pelo homem da terra escravizado,
perseguido, injustiçado. E canga também o fardo que suportavam no meio tão
hostil, empobrecido e entremeado de angústias e sofrimentos. Daí o termo
cangaço.
Contudo, cangaço
também remete a frangalho, a resto, a maltrapilho, a uma situação de penúria.
Quando o ser está irreconhecível nas suas forças, diz-se que dele restou apenas
o cangaço; quando mais parece um errante rasgado e imundo, jogado à desdita da
vida, afirma-se que está um cangaço. De qualquer modo, sempre deixa subentender
uma situação de pobreza, sofrimento, desvalia.
Assim, a canga
serve para exemplificar, a um só tempo, a obediência forçada do bicho de carga,
a escravização degradante e abjeta, o limite da vida e da morte, uma situação
de dor e suplício. E em tudo o sofrimento silencioso, a sujeição sem revide, a
condenação sem chance de qualquer apelo. Sob a canga ou envolvido pela sua
madeira, o pescoço encurvado significa o ser se exaurindo e já sem forças para
reagir. Mas, no caso dos escravos e bichos, estes tinham de tudo suportar e
seguir em frente, sentindo ainda o chicote no lombo ou a espetada do ferrão nas
costelas.
Será que o
homem moderno se envergonhou da canga e a relembra agora como um degradante
objeto de mortificação e tortura? Seria idílico imaginar o homem como aquele
que reconhece seus erros e procura se redimir das atrocidades cometidas. O
mundo é outro, a realidade possui feições bem diferenciadas de outros tempos,
mas muita canga ainda continua sendo colocada em pescoços.
Mas nem só em
pescoços a canga é colocada. Toda vez que a riqueza submete a pobreza,
escravizando-a, utilizando-a para fins escusos está colocando a canga. Toda vez
que o Estado deixa o ser humano impotente diante de suas garantias
fundamentais, está colocando canga nas classes carentes. Toda vez que o
autoritarismo se impõe para calar a voz do cidadão, para negar seus direitos e
conduzir como bem desejar a vida da sociedade, está usando a canga.
A pobreza vive
com a canga ao pescoço, no estômago, aos pés. Vivem carregando canga todos
aqueles que necessitam de atendimento público de saúde, que procuram os órgãos
públicos para cumprir exigências, que precisam adquirir alimentos e outros
meios de sobrevivência. E que canga pesada diante da insegurança. A canga
moderna é, assim, toda essa impotência que submete e desonra o ser humano,
principalmente aquele que, pela situação de pobreza, já vive na forca.
Poeta e
cronista
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