Por: Rangel Alves da Costa(*)
AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 10 (O HOMEM, O VIRGULINO, O LAMPIÃO)
Erroneamente, ao se falar em Lampião logo vem a lume aspectos dizendo respeito ao maior dos cangaceiros que já existiu nas terras nordestinas, o exímio comandante e estrategista conduzindo o seu bando, as façanhas guerreiras, o quase invencível combatente, o insurgente contra as injustiças sociais reinantes no seu tempo.
E erroneamente porque ao se pensar assim o fenômeno Lampião, logo estará abrindo um fosso entre o cangaceiro e o homem. E é nessa divisa, na visualização entre o Virgulino e o Lampião, que deve partir todo o entendimento sobre quem verdadeiramente foi esse homem, o que o guiava na sua luta, quais os seus verdadeiros objetivos em manter uma vida tão perigosa ao lado de tantos que lhe deviam respeito e adoração.
Entender Virgulino, e também Lampião, exige um enveredar na busca do conhecimento do homem mais do que qualquer outra coisa. Ora, quem um dia, por força das circunstâncias ou não, decidiu levar uma vida errante foi o cidadão Virgulino Ferreira da Silva, o rapazote das bandas pernambucanas de Vila Bela.
Por outro lado, quem já estando na estrada um dia se fez líder, o maior entre todos os cangaceiros, foi Lampião. Virgulino repousava por baixo da pele lanhada de espinho e de sol, na inquietude de seu espírito, nas reminiscências próprias, íntimas e familiares, que nunca deixou de ter. Já o Lampião se fazia do olho adiante, debaixo do pé, no passo que dava. Este não vivia em função do homem Virgulino, mas como necessidade de se manter e se fazer ainda mais Lampião.
Aquele outro, o Virgulino, era o de nome e sobrenome, trazia na mente as recordações, as dores e os sofrimentos, mas também as alegrias do passado. Era o sujeito moreno, de média estatura, cabelos um tanto escorridos e desgastados, chegado a magro, com uma deficiência no olhar já adquirida na idade adulta. Neste repousava o coração, os sentimentos, o vigor físico, a disposição para a luta.
E ainda neste a infância, o percurso feito de meninote a rapaz, o trabalho na terra, a lide diária na família pobre em relação aos poderosos de então, os sonhos de todo rapazote, as raivas, o ódio criado quando da perseguição dos seus; a dor pela morte do parente, o sofrimento pela raiz familiar esfacelada, a difícil decisão tomada, a decisão em si e suas consequências, o adeus. E quando ele deu adeus e passou cancela adiante ainda era o Virgulino, o homem dentro da pessoa que era, para em seguida ser apenas de alcunha e renome.
Contudo, antes da tão conhecida transformação, quando de liderado passou a ser líder maior, há ainda um espaço no homem fazendo uma ligação entre o que era e o que passou a ser. Não é de hora pra outra que uma pessoa se reconhece plenamente capaz de fazer aquilo que escolheu, nunca basta um querer para que tudo aconteça segundo o desejado. Neste momento ainda surgem as dúvidas e os temores.
No meio do mundo, já muito além da cancela de casa, ainda que sempre acompanhado de irmãos que enveredaram pelo mesmo caminho, Virgulino ainda não tinha deixado de ser mais a si mesmo do que a outro, aquele que viria crepitosamente mais tarde. Já sabendo bem o que queria, e que não era propriamente a continuidade de uma vingança pessoal contra os inimigos da terra, ainda assim buscava o reconhecimento com base na sua coragem, astúcia e firme personalidade.
Neste momento, neste percurso que ainda fazia para o reconhecimento, o homem procurava compartilhar seus sentimentos de indignação e ódio contra as injustiças sociais, contra os poderosos que tantas perseguições faziam, contra todos aqueles que semeavam os desmandos e abusividades pelo sertão. Estando vivendo uma nova realidade e com tais objetivos, logicamente que a luta que começaria já nascia plenamente justificada.
E justificada principalmente porque a opção pela vida cangaceira logo afastaria de si qualquer semelhança com criminosos comuns, com assassinos cruéis, bandidos de beira de estrada, com jaguncismos e pistolagens. Ora, basta ver que nem antes nem depois de se transformar em Lampião, Virgulino jamais aceitou matar por dinheiro, praticar crime de mando como um bandido qualquer. Talvez aí esteja uma essencial diferença entre o cangaço e o banditismo.
Seguindo percurso e destino, e já cortando estradas distantes, muito além das redondezas de origem, o homem já se firmava verdadeiramente como tal. Já estava no caminho que havia escolhido, tinha ciência das consequencias da nova vida abraçada, estava resoluto em seguir adiante e deixar de ser subordinado, apenas um entre tantos homens de bando cangaceiro, para se tornar num líder.
E quais seriam, então, as principais características que Virgulino deveria demonstrar para se tornar Lampião, em verdadeiro líder? Ora, nessa vida de guerras e guerrilhas sertanejas, quando o momento invoca rapidamente uma única forma de agir, sem tempo para pensar ou ponderar sobre o pior ou o melhor, logicamente que a experiência diante de cada situação surgida é o grande diferencial de um líder que quer sair vencedor.
Daí que as experiências adquiridas por Virgulino nos seus momentos de subordinado, quando sentiu as fragilidades e as forças nas ações levadas a efeito, não ficaram apenas a serviço do bando ao qual servia. Enquanto uns apenas agiam e depois relegavam o aprendizado, ele guardava cada experiência vivenciada como algo a ser sempre aprimorado.
Assim, quando decidiu tomar as rédeas do seu destino e formar o seu próprio bando, apenas procurou aprimorar os conhecimentos adquiridos sobre estratégias de defesa e de ataque, sobre os sinais da presença do inimigo, a rede de relações pessoais que deveria manter com a sertanejada, a influência que deveria conseguir e manter perante autoridades e poderosos.
Neste momento já era Lampião, já era aquele que fazia mosquetão alumiar e inimigo desabar, já era o líder cangaceiro, já era o chefe a quem todos deviam respeito e obediência. Até chegar a esse estágio passou por constante aprimoramento, por lições que não eram aprendidas senão no calor da luta, pelo desenvolvimento de manobras capazes de reverter as situações mais favoráveis. E tudo no mesmo instante em que se embrenhava pelas veredas de sangue, sentia a bala zunindo adiante e derredor, via o amigo ferido, sentia o outro já sem vida por cima das pedras bicudas.
Conhecendo tais aspectos e direcionando seus comandados para vencer armadilhas e emboscadas, impondo estratégias de não deixar rastros nem sombras do paradeiro, foi seguindo adiante, circundando, retornando ao mesmo lugar para fazer bem feito. E nesse ir e voltar, na extensa rede de relacionamentos que mantinha, criou dentro de si uma espécie de mapa mental. E a partir dele visualizava todo o sertão, cada lugar inimigo, cada caminho de fogo, cada abrigo mais seguro, cada coito e refúgio de pernoite.
E mesmo se tornando completamente Lampião, extraía de dentro do homem Virgulino que nunca deixou de existir tudo aquilo que precisava para não se desumanizar, para não perder a temência a Deus e a fervorosa religiosidade, para não se afastar dos sentimentalismos próprios de quem que precisava refletir sobre si mesmo, sobre sua vida e tudo aquilo que acontecia ao redor.
Nesse momento, saindo um pouco de Lampião e se voltando ao Virgulino, demonstrava o amor que sentia por sua Maria, fazia as amizades, cantava no coito alguns prazeres que certamente possuía naquela vida difícil. Era o cangaceiro humano, o Capitão amigo de sua tropa, o homem que conversava e não escondia o seu desejo de um dia deixar aquela vida e poder armar uma rede num alpendre sertanejo. Viver, simplesmente poder viver.
Assim, quando na madrugada de 28 de julho de 38 foi cercado e chacinado na Gruta do Angico pela volante do seu também amigo, o Capitão João Bezerra, tombou e morreu apenas o homem Virgulino. Lampião continuou vivendo nos braços da história na mente do povo sertanejo. E assim se eternizará.
(*)Poeta e cronista
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