Acervo do pesquisador Raul Meneleu Mascarenhas
Cristina Mata
Machado escreveu um livro a respeito do cangaço e, para provar que não mentia,
trouxe do Nordeste cangaceiros, seus filhos e netos.
Aos 27 anos,
Cristina Mata Machado não pode ver sangue. Em criança, morria de medo quando
lhe contavam histórias de cangaço. No entanto, ela acaba de escrever um livro
chamado As Táticas de Guerra dos Cangaceiros e, para lançá-lo, reuniu nove
remanescentes do bando de Lampião e descendentes de seu chefe. Labareda, o
velhinho sorridente de 71 anos, é um desses homens que vivia pela caatinga,
lutando, fugindo ou perseguindo inimigos. Entre seus pertences, há o antigo
bacamarte que data do tempo de Lampião. Hoje, ele é vigia e porteiro em
Salvador. Sua aparência serena e seus hábitos tranquilos vêm em apoio à tese de
Cristina: "O cangaceiro não é bom nem mau. Ele era apenas um sertanejo
injustiçado, que entrava na ilegalidade por falta de qualquer outro
caminho."
Com Cristina,
na foto à esquerda, Sila, Ana e seu marido, Criança, Dadá, Labareda,
Marinheiro, Pitombeira, Volta Seca e Balão. À direita, fotografia feita por
Melquíades da Rocha em julho de 1938.
PARA Expedita
e Verinha, o cangaço não passa de uma notícia. A filha e a neta de Lampião e
Maria Bonita cumpriram o início da vida conforme determinou o Capitão
Virgulino: — Cangaço não é lugar para criar filho. Expedita foi levada, ainda
um bebé, para a fazenda de Manoel Severo, um amigo de seu pai. Da mãe ela não
se lembra nem vagamente. Lampião a visitou algumas vezes, de raro em raro, e
nessas ocasiões percebeu que Expedita o temia. Só uma vez a beijou. Expedita
cresceu e casou.
Está viajando
com a filha mais nova, Verinha, que não gosta de falar sobre cangaceiros, nem
considera algo importante seu avó ter sido o mais famoso deles. Suas
preocupações giram todas em torno dos estudos. Quer cursar Medicina — o irmão
mais velho, Djair, quer ser engenheiro — mas vê o futuro com incerteza: acha
que tanto ela quanto o irmão só poderão passar pela universidade se ganharem
bolsas de estudos.
Trinta e
um anos depois da morte de Lampião, os herdeiros do cangaço estão
pobres. Como diz Labareda: — No cangaço a gente tinha dinheiro mas não
tinha o que comprar. Agora a gente tem o que comprar mas não tem dinheiro. A
grande pretensão de Cristina Mata Machado é desmitificar, em seu trabalho, a
figura do cangaceiro, restituindo-lhe uma imagem humana, de defeitos e
virtudes: nem um anjo, nem um demônio.
Cristina dá
a data do atestado de óbito do cangaço no Brasil: 28 de julho de 1938. Foi numa
fazenda no sertão de Sergipe, a 12 quilometros da fronteira de Alagoas. Angicos
aparecia encravada entre duas serrinhas, com um córrego de muitas pedras,
formando grotas bem cobertas e resguardadas. No centro dessa quase-fortaleza,
espalhadas entre as moitas de xique-xique, as barracas do acampamento de
Lampião, armadas há vários dias. Balão. homem de confiança de Virgulino,
lugar-tenente de Corisco, estava lá e conta como foi. — Já fazia cinco dias que
a gente estava em Angicos, onde chegamos numa sexta-feira. O dia do mês não me
lembro, porque não tinha folhinha. Quando chegou terça-feira, o Capitão
resolveu partir (a intuição de perigo iminente era o grande trunfo de Lampião).
Mas de manhãzinha chegou um sobrinho dele, de nome José, para se juntar ao
bando. O Capitão resolveu adiar a viagem, para equipar o menino. De tardinha
chegou ao coito um homem por nome Pedro de Cândido, que foi logo contando que
"tem muito macaco em Piranha", um lugar lá perto.
Noto emoção
e um brilho mais profundo nos olhos de Balão, quando se refere a Pedro de
Cândido. E logo percebo que nesse homem duro persiste o mesmo horror à delação
e à traição. — Foi daí que o capitão disse a ele: "Pedro, volte lá e sonde
para que lado vão esses macacos." Pedro foi e voltou de noitinha, coisa
assim de oito horas, e contou: "Eles foram para o sertão de
Pernambuco; pode ficar tranqüilo."
Mas ele
tinha trazido a volante. Todos os macacos ficaram escondidos em volta. Até às
11 da noite ficou bebendo e conversando com a gente. Aí disse que precisava ir
embora. E ainda avisou: "Capitão, amanhã eu volto, lá pelas 9 horas, para
me despedir do senhor." — Naquela quarta-feira, levantamos às cinco da
manhã. O capitão chamou todos para rezar o ofício, como acontecia todos os
dias. E, quando terminou, pediu a Amoroso que descesse até a bica e fosse
buscar água para fazer o café. Amoroso não chegou a enfiar o cantil dentro do
riacho. O primeiro tiro de um macaco matou Amoroso ali mesmo. Dai foi só
fuzilaria. Tinha mais de cem macacos, cercando por todos os lados e quatro
metralhadoras varriam o xique-xique.
O capitão morreu
com um tiro na cabeça. A vinte metros dele morreu Maria Bonita. Nós éramos 36 e
cada qual cuidava de sair vivo. Luís Pedro, o homem mais chegado a Lampião,
furou o cerco, mas ouviu gritarem que o capitão tinha morrido e voltou. Ele
jurou que ia morrer com Lampião e veio de peito aberto. Recebeu uma rajada de
metralhadora e caiu morto. O fogo cerrado durou mais de meia hora. Ficaram
mortos, no chão de Angicos, Lampião, Maria Bonita, Amoroso, Nedina,
Quinta-feira, Luís Pedro, Elétrico, Mergulhão, Caixa-de-Fósforos, Jítirana e
Cajarana. Eram 11 cangaceiros. Mas morreu muito mais macaco.
"Labareda"
fotolito de Paulo Gil Soares. "
LABAREDA, que
está do lado, ouvindo, resolve interferir na narração. — Pois está certinho. A
volante diz que só morreu um macaco no ataque, Mas chega-ram em Piranha 28
fuzis sem dono (Labareda não estava em Angicos, mas numa fazenda perto de
Piranha). Faça as contas: se morreram nove cangaceiros — as mulheres não usavam
fuzil — o resto tinha de ser de macaco morto, e se chegaram 28 fuzis em
Piranha, morreram 20 macacos, pois o fuzil de Amoroso os companheiros
conseguiram levar.
Morto Lampião,
o bando se desintegrou e nunca mais se reagrupou. Alguns foram mortos em outras
ocasiões e outros se entregaram. Em 1939 o cangaço acabava de vez. Um herói que
arregimenta sertanejos para uma revolta popular ou um frio e sádico assassino,
que saqueia e mata por prazer: essas as duas imagens extremadas que até hoje
têm sido feitas dos cangaceiros.
As Táticas de
Guerra dos Cangaceiros pretende reduzir essas duas fantasias às suas
verdadeiras dimensões. Por isso, para lançar seu livro em São Paulo, a
historiadora Cristina Mata Machado, de 27 anos, fez questão das singulares
presenças de Dadá, Sita, Zé Sereno, Labareda, Criança, Marinheiro, Volta Seca,
Balão e Pitombeira, nove remanescentes do bando de Lampião. Cristina pesquisou
em mais de cem lugares e pequenas cidades do sertão nordestino e chegou à
conclusão de que a verdadeira imagem do cangaceiro nunca foi divulgada: — Nem
herói, nem sanguinário: apenas um sertanejo comum, forçado a desligar-se de seu
lugar e de sua gente, impelido a matar para poder continuar vivo, querendo a
paz e não podendo obtê-la.
Logo no
primeiro parágrafo de seu trabalho, Cristina diz que Lampião foi "um homem
como todos os outros do Nordeste".
"O fato
de haver entrado para a história e de ser conhecido fora das fronteiras do país
não o torna único, diferente ou original. Ele apenas surgiu na hora certa,
viveu um momento histórico e morreu quando já era um mito no sertão nordestino.
Lampião simbolizava e simboliza o sertanejo rebelde, desconfiado, astuto,
destemido, forte e livre, capaz de viver na mais dura caatinga, capaz de
sobreviver lutando, capaz de amar, capaz de seguir e perseguir um objetivo,
capaz de lutar contra tudo e contra todos, no momento em que julgar isso
necessário.
Muitos assim
existiam e existem no Nordeste. Lampião não pode ser visto como um fato
isolado, mas como resultado de uma época em que se processava uma luta surda,
empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra. Dai se explica, talvez,
porque Lampião — "uma fera humana" segundo a imprensa da época — era
quase venerado pelas populações mais pobres. Ele realizava em segundos
aquilo que cada um gostaria de fazer, mas tinha medo."
Cristina Mata
Machado aponta o surgimento do cangaço como um episódio marginal ao
desenvolvimento sócio-econômico do Nordeste: "A palavra cangaceiro
coincide com o aparecimento da palavra coronel: em fins do século XIX, quando a
estrutura do coronelismo começa a enfraquecer, o coronel tenta mante-la. Sua
primeira opressão é contra o vaqueiro que, apesar de trabalhar para o coronel,
era quase livre (num sistema chamado de quatriação, o vaqueiro ficava com uma
entre quatro crias, formando o seu próprio rebanho, dentro de alguns anos. A
primeira providência do coronel foi extinguir a quatriação e passar o vaqueiro
à condição de assalariado).
Maria Cristina
explica porque não havia reivindicação política no cangaço: "Eles não
lutavam por uma causa, mas para vingar uma afronta"
SEGUNDO Cristina,
três motivos básicos transformavam um sertanejo em cangaceiro: — Roubo de
terras, desonra ou assassínio de algum parente. Atingido por um desses dramas,
o sertanejo toma uma atitude, quase sempre a de matar o agressor. Feito isso,
passa a ser perseguido pela polícia ou pelos jagunços do coronel atingido. Na
fuga, não lhe sobram alternativas: tem de ir para o cangaço. A grande prova
desse esquema é a inexistência, em qualquer época, de uma consciência de massa,
de uma visualização do problema geral: cada um via o seu problema individual,
lutava por causa dele. Não havia no cangaço uma causa pela qual lutar: havia
uma afronta pessoal a vingar.
Anistiados por
Getúlio — depois da tragédia dos Angicos — os cangaceiros remanescentes do
bando de Lampião e Corisco saíram da caatinga buscando a volta à legalidade e à
paz. Temerosos, desconfiados, procuraram, em maioria, sair do Nordeste,
buscando os lugares onde pudessem substituir os seus nomes de guerra pelos de
batismo. Hoje, reunidos em São Paulo, êles voltam a se chamar pelos apelidos
pelos quais eram conhecidos no cangaço. As lembranças dos velhos tempos estão
vivas, mas todos agradecem que sejam apenas lembranças, pois querem a todo
custo manter a paz que conseguiram.
Labareda —
Antônio Roque, o mais velho déles — deve ter a mesma idade que Lampião teria,
se fosse vivo — 71 anos. Mas insiste em dizer que só tem 58. Hoje, é vigia do
Hospital do Câncer e porteiro do foro, em Salvador. Tem uma vida bem diferente
daquela da caatinga: — Vivia pelo mato, bebendo água de umbuzeiro, dando
carreira, levando carreira, às vezes comendo só farinha molhada com água e de
outras comendo até peru com arroz. Acampado, só conversava baixinho, dormia em
barracas, passava dias sem brigar e às vezes tinha cinco brigas num dia
só.
Porque Labareda
entrou para o cangaço? — Foi em Quixabá, numa fazenda onde eu morava. Um
soldado por nome Horácio violentou minha irmã Sabina. Depois, ele
desapareceu.... Eu o matei. A policia começou a me perseguir, eu me escondi na
caatinga muito tempo, até que um dia me juntei com o bando do Lampião na
fazenda Arrastapé. Fiquei 17 anos com o capitão. Quando ele morreu, fiquei dois
anos pelo mato, sem saber da anistia. Quando soube, me entreguei.
Balão é o
mais falante de todos. Orgulha-se de ter 17 filhos. Sete ainda moram com ele em
São Paulo, onde exerce a profissão de perfurador de poços artesianos, com 61
anos de idade. Nele perdura a velha desconfiança que não lhe deixa declarar o
nome de batismo, nem o endereço. Qual a sua razão para unir-se a Lampião? —
Naquele tempo, não tinha escolha: ou entrava para a volante ou virava
cangaceiro.
Eu morava
em Riacho do Meio. Um dia Lampião passou por lá sem maltratar ninguém. Atrás
dele vinha uma volante, que perguntou para onde o capitão tinha ido. Ninguém
sabia. Por isso a volante espancou todo mundo. Homem que tem natureza não
apanha de rêlho na cara. Um dia Corisco passou por lá com mais sete cabras.
Quando saiu, tinha mais um. Era eu.
Criança perdeu
o apelido há muito tempo. Agora ele é apenas Vitor Rodrigues de Lima, vendedor
ambulante de verduras em São Paulo. Era um menino de 15 anos quando entrou para
o bando. Saiu quando tinha 22 e, durante todo esse tempo, com pouco mais de
metro e meio de altura, era considerado o cangaceiro de melhor pontaria. — Lá
em Feira do Pau, a perseguição era muita. A gente apanhava dos macacos para
contar onde estavam os cangaceiros. Mas quando Lampião passava, ele agradava os
moradores. Um dia eu segui com ele.
Foi Criança
quem ajudou Sila a furar o cerco de Angicos: — Vínhamos eu, Sila e Nedina,
quando uma bala de fuzil acertou Nedina na cabeça. O vestido de Sila ficou
vermelho com o sangue dela, que caiu aos meus pés, Pitombeira, que os colegas
da Prefeitura de São Paulo só conhecem como José Soares, foi para São Paulo em
1940.
Foi um
dos primeiros a entrar para o bando, mas sua razão foi das mais fortes. — Um
dia os macacos chegaram em Esperança, onde eu morava, perguntando se Lampião
tinha estado por lá. De fato, tinha, mas ninguém sabia para onde tinha ido. A
volante não se conformou e começou a espancar. Um macaco montou meu irmão,
queria que ele pulasse como cavalo. Meu irmão acabou todo rasgado de espora.
Oito dias depois, meu irmão Luís morreu, como morreu meu tio Emídio, de tanta
pancada da volante. O grupo de Diferente passou e eu fui com eles.
Sile Zé Sereno estão com um círculo sobre a cabeça
Sila e Zé
Sereno conheceram-se e casaram-se no cangaço. Ambos escaparam do cerco de
Angicos, ao fim de nove anos de lutas na caatinga. Desde 1942 estão em São
Paulo. Ele é porteiro de um colégio e ela faz o que gosta: costura e cuida dos
três filhos. Sila costurava toda a roupa do bando. José Ribeiro da Silva tem o
máximo cuidado em falar do passado, para não delatar ninguém. Quando lhe
pergunto quem vendia as armas para os cangaceiros, Me responde: — Não, moço,
isso eu não falo. Quem vendia pode ter morrido, Mas as famílias ainda estão lá.
Pode haver vingança e eu não quero complicar a vida de ninguém.
Sila se
lembra de como encontrou o marido: — Eu tinha 13 anos. Estudava num colégio de
freiras e estava passando férias numa fazenda, quando os cangaceiros
apareceram. José resolveu que eu ia com ele e eu fui. Um pouco por medo, um
pouco por aventura.
Dadá — a
Sra. Sérgia da Silva Rodrigues, casada, mãe de vários filhos — perdeu uma perna
no dia em que mataram o seu primeiro marido, Corisco. Ela também não gosta que
se fale da origem das armas: — Não se cospe no prato em que se come.
Marinheiro entrou
para o cangaço com menos de 13 anos de idade: — Eu sou irmão de Sila. Ela havia
seguido com o Zé Sereno. Por causa disso, a volante resolveu me matar. Não
tinha saída. O jeito era seguir o rumo de onde estava Lampião e me juntar a
ele. Menos de dois anos depois da adesão de Marinheiro, o cangaço morreu. Andou
escondido durante algum tempo, e depois se entregou. Em 1942, mudou-se para São
Paulo onde se iniciou na profissão de metalúrgico. Foi vivendo sua vida de
operário até que um dia se apaixonou. por uma moça do Nordeste e ela por ele.
Poucos dias antes do casamento ele soube que ela era filha de um macaco e ela
soube que ele era um ex-cangaceiro. Nesse ponto a paz era inevitável.
Manchete 15 de
Novembro de 1969 Reportagem de FERNANDO DEL CORSO Fotos atuais de HEITOR HUI
http://meneleu.blogspot.com.br/2016/03/a-verdade-sobre-os-cabras-de-lampiao.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com