Por Jornal da Tarde
Magro, alto,
elegante, todo vestido de azul celeste, lá está o coronel Mané Neto. Se não
fosse aquele Taurus 38, cano médio, na cintura, ele poderia ser definido como
um velhinho simpático e indefeso. Indefeso, jamais: quando me aproximei dele,
um tanto bruscamente, brecando o carro a poucos metros, a mão (fina, delicada)
do coronel ameaçou puxar o Taurus da cartucheira. Mas um grito – “É jornal,
coronel! É do jornal!” – guardou os reflexos do coronel para outra ocasião. Mas
ele ainda desconfiou:
- Abra a porta
do carro, meu filho. Vamos, desça, venha cá. Devagar.
A voz é
pausada, suavíssima, é quase uma sonata. Vamos manter o simpático na definição
do coronel. Ou melhor: vamos chama-lo de encantador. Mesmo quando ele,
escudando-se em desculpas gentilíssimas, diz que não vai falar de homens
sangrados, cabeças cortadas, atrocidades de um modo geral. Não, ele não vai
falar de jeito nenhum sobre a fama dele: o mais feroz e destemido caçador de
cangaceiros de que já se ouviu falar. A opinião – de ex-cangaceiros e policiais
da época – é unânime. O próprio Lampião dizia dele: “Se os macacos vier sem
Mané Neto é como se não fosse nada”. Ou: “Se Mané Neto chegou, precurem sarvar
metade da vida que a outra já foi”. Os cangaceiros sobreviventes chegam a fazer
caretas quando se toca no nome dessa gentil criatura. Segundo eles, Mané Neto
jamais poupou a população civil que, supostamente, não lhe queria dar a direção
de Lampião. Os colegas de Mané Neto elogiam a sua bravura, sem cair em
detalhes.
Então, a gente
fica sem jeito de acreditar que uma pessoa tão delicada, um velhinho de
conversa agradável (ele deve estar com uns 60 e tantos anos) como este coronel
de azul celeste tenha um passado tão sanguinário. Uma coisa é verdade: aquele
conjunto azul celeste elegante cobre as marcas de mais de 30 balas. Daí o
Taurus e o reflexo extraordinário para a sua idade. Mas por que tantas balas?
Não se pode dizer que as brigadas na caatinga, entre polícia e cangaceiro, pelo
menos na primeira fase, até 1928, tenham primado por geniais esquemas táticos.
Era um grupo na frente do outro, atirando. É claro que, de vez em quando, um
grupo ou outro armava um esquema de pegar o inimigo pela retaguarda.
Mas será que
essa obviedade pode ser chamada de tática? Muitas das 30 balas do coronel
(tenente, na época) Mané Neto foram recebidas pelo fato de ele não suportar
ficar agachado, atirando. Era do tipo que se levantava, de peito aberto, para
xingar os inimigos com os mais tradicionais palavrões. E tome bala.A guerra
entre polícia e cangaceiro tinha disso. Geralmente era o cangaceiro que se
expunha, de pé, para perguntar:
- Com quem
luto?
- Com Mané
Neto (um exemplo)
- Então vai
ser um arrocho!
E tome bala.
Esses estranhos diálogos entre os inimigos chegou a certos requintes quando, em
1926, o então tenente Higino atacou um grupo usando pela primeira vez uma
metralhadora. Os cangaceiros, depois do susto, gritavam:
- Nêgo
safado(Higino é um tipo escuro, acaboclado), passe essa
“costureira”
pra cá!
- Venha
buscar, seu filho...
O coronel Mané
Neto não quer falar do passado. Nem aceita convites para fazer conferências em
escolas militares. Parece que o passado lhe dói muito. Ele tem uma fazendinha
em Ibimirim, no sertão pernambucano, um jipe velho, e quer o resto da vida em
paz. Mesmo assim, o suave coronel reforça uma observação do jornalista
pernambucano Fernando Menezes, quando se mostra muito irritado com os caminhões
de carga. O jornalista observara que os caminhões que passam pelo sertão são os
novos cangaceiros. Insinuantes, piscando mil luzes, enfeitados de todas as
cores, dirigidos por um príncipe que conhece a fala de outras terras e gentes,
os caminhões excitam e atraem as mulheres sertanejas. Aquela atração que o
cangaceiro de cabelos longos, cheio de metais cintilantes e histórias heroicas,
usava para conquistar as marias bonitas da época.
- Esses
caminhões – diz o coronel com um toque sutil de irritação na voz - são umas
desgraças. Já levaram umas dez garçonetes daqui
Jornal da
Tarde - O Estado de São Paulo
Edição de 31
de julho 1973
Cortesia da
divulgação - Facebook - Antonio Correa Sobrinho
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