*Rangel Alves da Costa
Maria de Fátima, ou apenas Fátima, mulher beiradeira, mulher ribeirinha, mulher que nasceu, cresceu e vive nas barrancas do Rio São Francisco, o Velho Chico, na povoação sertaneja de Curralinho, distante 14 km da sede municipal de Poço Redondo, sertão sergipano. Mais conhecida como Fatinha, é uma mulher de estatura baixa, de tez de um amorenado escuro, de corpo esbelto e quase magro.
Fatinha é mãe de família, é esposa, é do lar e do rio. Talvez não possua nenhum emprego fixo, como, aliás, a maioria dos habitantes de Curralinho. Mora numa casinha pobre bem defronte ao rio, nas calçadas altas ali construídas nos tempos para proteção dos lares durante as cheias grandes. Aí, no local mais valorizado da povoação, está quase que escondida a casa de Fatinha. Lá dentro nenhum luxo, nada além de rudes objetos para o dia a dia e para a sobrevivência.
Fatinha é conhecida de todos e amiga de todos. Seus laços familiares estão espalhados por toda povoação e até na cidade, vez que muitos de seus parentes se mudaram em busca de dias melhores. Mas ela ficou. Fatinha é daquela leva de beiradeiros que sofrem as dores do rio, que se afligem com a magreza do rio, que se atormentam com as dificuldades cada vez maiores de sobrevivência, mas não arreda pé de seu rio.
Fatinha sempre foi “precisada”, como se diz na região sertaneja. Fatinha nunca teve muito além nem muito menos do que tem agora, pois ela sempre viveu num patamar de apenas ter o que necessita no seu dia a dia, principalmente para manutenção dos filhos. Quando o rio dava peixe grande, então a mesa era mais farta, mas agora que nem piaba é fácil conseguir, o que Fatinha faz é se virar como pode. E vai colocando à mesa o que de repente lhe surge como dádiva sagrada.
Numa situação assim, de carência chegada a pobreza, até se imaginaria que Fatinha fosse uma mulher melancólica, entristecida, de poucas palavras e nenhum sorriso. Mas não é assim não. Muito pelo contrário. Fatinha é conhecida e relembrada pelo seu jeito sempre amigueiro de ser, pelo dom da amizade do qual nunca desaparta, pelo jeito alegre e cativante de tratar conhecidos e até desconhecidos. É como se agora eu estivesse avistando aquele sorriso tomando toda a face de tez morena.
Fatinha é dona do rio. Fatinha ribeirinha, curralinheira, lavadeira, beiradeira do Velho Chico, é a dona de tudo. Na sua bondosa humildade, Fatinha não sabe a riqueza que ainda lhe resta perante o olhar. Águas remansosas, espelhos azulados, um leito que corre e escorre passado, presente e vida. Tudo é de Fatinha. O rio é o seu mundo, é o seu viver, é o seu lindo reinado.
Fatinha que vive o seu rio como se vivesse a própria vida. Conhece os mistérios das águas, conhece as proezas das enchentes, conhece os desencantos da sequidão de seu leito, conhece e relembra os nomes de barcos, canoas, chatas, vapores e outras embarcações. Fatinha que sente saudade da carranca grande despontando na curva do rio e pedindo proteção para aquele e todo navegar. Fatinha que sente saudade e lacrimeja ao entardecer da solidão de agora sobre o porto vazio.
Fatinha é cria, é herdeira e dona do rio. Fatinha descalça que desce as calçadas altas e vai levando à cabeça uma trouxa de panos para lavar. Fatinha que mesmo sendo o rio e do rio, sempre ora e pede licença às águas para ali colocar seus pés, lavar, bater, enxaguar, estender e ver secar os panos estendidos nos beirais molhados. Fatinha que sempre gosta quando está lavando roupas na companhia de amigas, e para com elas cantarolar as velhas canções lavadeiras:
“Vem meu São Francisco a mim
derrama sua água sobre mim
por ti guardo e sinto a devoção
um amor nascido dentro do coração
Meu Velho Chico tão amado
num leito de tão distante chegado
suas águas vão abrindo um caminho
até molhar este nosso Curralinho
Curralinheira sou e beiradeira também
uma filha do rio dizendo amém
devotada e ajoelhada aos teus pés
um céu sobre águas abençoando fiéis”.
Mas Fatinha é muito mais. Como disse um amigo, ela é dona do rio por herança maior. Herdou a pujança das águas por ser filha de suas beiradas e teve seu cordão umbilical nas águas lavado e o seu rosto ali primeiro purificado. Seu primeiro banho foi ali. Sua primeira sede saciou ali. E o seu sangue em água do rio se converteu para o sempre. Por isso que hoje Fatinha é a dona do rio. Pobre, carente de quantias e somas, sem qualquer riqueza material, mas de outra riqueza sem igual: o mundo do Velho Chico é seu.
Escritor
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