EM 1926, NO
JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO, LAMPIÃO CONCEDE ENTREVISTA AO JORNAL “A NOITE”, DO
RIO DE JANEIRO, QUE TORNA PÚBLICA NA EDIÇÃO DE 19 DE ABRIL DE 1926. A SEGUIR.
UM BANDIDO QUE
SE JULGA UM HERÓI
AS PROEZAS DE
“LAMPIÃO” DESCRITAS POR ELE PRÓPRIO
FEITIO E
CONCEPÇÕES DO CANGACEIRO.
Ainda há pouco
dias, a NOITE publicava interessante correspondência da cidade cearense de
Juazeiro, noticiando que a população local estava aterrorizada com o fato de
ali se haver aboletado, com o seu bando, o famigerado cangaceiro “Lampião”,
bandoleiro cujo nome já se tornou conhecido de norte a sul do país, através a
narrativa das tropelias de toda a sorte com que em flagelando o Nordeste.
Temos, agora, ensejo de estampar uma entrevista obtida do célebre bandido pelo
nosso correspondente naquela cidade do Estado do Ceará, bem como várias
fotografias do mesmo, umas e outras igualmente interessantes.
Eis a
entrevista:
O QUE ELE
PENSA DOS JORNALISTAS...
Sabedores de
que Lampião se encontrava nas cercanias da cidade de Juazeiro, resolvemos ir
entrevista-lo para a NOITE.
Encontramo-lo
num velho sobrado, nos arredores da cidade. Estava com todo o seu grupo, que se
compunha de 49 homens. Anunciada a nossa qualidade de jornalista e o desejo que
tínhamos de ouvi-lo, Lampião solicitamente se prontificou em atendermos, não
obstante estar certo, disse, de que os jornalistas costumam por vezes mentir.
O
CANGACEIRO... POR FORA
Lampião é um
homem ainda moço, e forte, aparentando 27 anos. Caboclo, de estatura regular, é
franzino, dando impressão, porém, de grande agilidade de movimentos. Os olhos
perscrutadores, tem, contudo, a vista sempre baixa, sobre esta pendendo os seus
cabelos negros e estirados. Dir-se-ia tratar-se de um beduíno, pelo todo de sua
fisionomia. Na face direita tem um sinal e uma de suas vistas, perdida, está
coberta por uma crosta azulada, que lhe toma todo globo ocular.
Quando
conversa, Lampião a todo momento cruza as pernas, sobrepondo-as e movendo-se de
modo a chamar a atenção.
Usa óculos
pretos com aros de ouro, trajando calça e paletó de brim, um uniforme muito
talhado. Traz um grande lenço de seda ao pescoço, preso por grosso e largo anel
de ouro, relógio e corrente também de ouro com uma libra esterlina pendente, e,
ainda, dois anéis, um dos quais de brilhante.
OUVINDO
LAMPIÃO
Feita a nossa
apresentação, foi-nos posta uma cadeira à cabeceira de uma mesa de jantar, numa
sala quase escura. Lampião colocou-se, de pé, ao nosso lado, cercando-nos os
seus companheiros.
Entrando,
então, a dirigir perguntas ao célebre facínora, ele foi respondendo com o maior
desembaraço.
SEU VERDADEIRO
NOME E FAMÍLIA A QUE PERTENCE – PORQUE SE TORNOU CANGACEIRO
Assim se
expressou Lampião:
- Chamo-me
Virgílio Ferreira da Silva e pertenço à humilde família Ferreira, do riacho de
São Domingos, município de Vila Bela.
Meu pai, sendo
constantemente perseguido pela família Nogueira e por José Saturnino, nossos
vizinhos, resolveu retirar-se para o município de Águas Brancas.
Nem por isso
cessou a perseguição. Em Águas Brancas foi meu pai, José Ferreira, barbaramente
assassinado pelos Nogueira e Saturnino, no ano de 1917. Não confiando na ação
da justiça pública, por isto que os assassinos contavam com a escandalosa
proteção dos grandes, resolvi fazer justiça por minha conta própria, isto é,
vingar a morte do meu progenitor.
Não perdi
tempo e resolutamente arrumei-me e enfrentei a luta. Não escolhi gente das
famílias inimigas para matar: consegui dizimá-las convenientemente.
UM “GRUPO” A
QUE JÁ PERTENCEU
Já pertenci ao
“grupo” de Sinhô Pereira, a quem acompanhei durante dois anos.
Muito me
afeiçoei a este meu ex-chefe, porque é um leal e valente batalhador; tanto que
se ele ainda voltasse ao cangaço, iria ser de muito boa vontade seu comandado.
POR ONDE TEM
ANDADO – CONCEITOS SOBRE AS POLÍCIAS DOS ESTADOS
Tenho
percorrido os sertões de Pernambuco, Paraíba e Alagoas e uma pequena parte do
Ceará.
Com as
polícias desses Estados tenho entrado em vários combates. A de Pernambuco é uma
polícia valente, que muitos cuidados me têm dado. A da Paraíba, porém, não me
merece igual conceito...
PROTETORES
- Não tenho
tido, propriamente, protetores. A família Pereira, entretanto, é quem me tem
protegido mais ou menos. Todavia, conto por toda parte com bons amigos, que me
facilitar tudo e me escondem eficazmente quando me acho muito perseguido pelos
governos. Se não tivesse necessidade de procurar meios para a manutenção dos
meus companheiros poderia ficar oculto indefinidamente, sem nunca ser
descoberto pelas forças que me perseguem.
Dos meus
protetores só um me traiu: foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de
Princesa, a quem, entretanto, prestei, durante anos, os mais vantajosos
serviços da minha profissão.
COMO OBTÉM
RECURSOS PARA MANTER O SEU PESSOAL
Neste ponto
Lampião faz uma pausa. Mas, a uma pergunta nossa, logo prossegue:
- Consigo o
necessário para as grandes despesas do meu batalhão pedindo aos ricos e tomando
daqueles que, podendo, recusam-se a fornecer-me.
NÃO CONSEGUIU
FAZER FORTUNA...
Tudo quanto
tenho adquirido na minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as despesas
com a manutenção do meu pessoal – aquisição de armas e munições, convindo notar
que muito tenho despendido também com a distribuição de esmolas aos
necessitados.
COMBATES E
VÍTIMAS
E continuando:
- Não posso
dizer, ao certo, o número de combates em que já estive envolvido. Calculo,
porém, que já tomei parte em mais de duzentos. Também não posso informar o
número de vítimas que tombaram sob a pontaria adestrada e certeira do meu
rifle. Entretanto, lembro-me perfeitamente de que, além dos civis, já matei
três oficiais de polícia, sendo um de Pernambuco e dois da Paraíba. Sargento,
cabos e soldados, ser-me-ia impossível guardar na memória o número dos que
foram mandados para o outro mundo.
COMO TEM LOGRADO
ESCAPAR À PERSEGUIÇÃO DOS GOVERNOS
Tenho
conseguido escapar à tremenda perseguição que me movem os governos, brigando e
correndo, quando vejo que não posso resistir ao ataque. Além disto, sou muito
vigilante e confio sempre desconfiando, de modo que, dificilmente me pegarão de
corpo aberto. Ainda é de notar que tenho fieis amigos e estou sempre avisado do
movimento das forças. Tenho também um excelente serviço de espionagem,
dispendioso, mas utilíssimo.
DEPREDAÇÕES
Já tenho
cometido violências, é verdade. Isto, porém, em represália a inimigos e alguns
incêndios que tenho feito têm sido em propriedades de inimigos que me
perseguem.
CRIMES CONTRA
A HONRA DAS FAMÍLIAS
Costumo
respeitar e acatar as famílias, por mais humildes que sejam. E, se algumas
vezes, companheiros meus praticam abusos com famílias, reprovo o ato e até já
tenho castigado os que mais se excedem...
NÃO QUER
DEIXAR O CANGAÇO...
Outra pausa.
Em resposta, porém, a nossa interpelação, o famoso bandoleiro assim fala:
- Até agora
não desejei abandonar a vida das armas, com a qual já me acostumei e me sinto
bem. Mesmo que assim não sucedesse, não poderia deixá-la, porque os inimigos
não se esquecem de mim. E, por isso, eu não posso e nem devo deixá-los
tranquilos. Poderia retirar-me para um lugar longínquo, mas julgo que seria uma
covardia e não quero nunca passar por covarde.
AMIGO DOS
TELEGRAFISTAS, INIMIGO DOS SOLDADOS...
É ainda
Lampião quem fala:
- Gosto
geralmente de todas as classes. Aprecio, porém, de preferência, as classes
conservadoras – agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc., por serem os
homens do trabalho. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou
católico. Sou amigo dos telegrafistas, porque alguns já me têm tirado de
grandes perigos. Acato aos juízes porque são os homens da lei e não atiram em
ninguém. Só uma classe eu detesto: é a dos soldados, que são os meus constantes
perseguidores.
Reconheço,
todavia, que muitas vezes eles me perseguem porque são mandados, e é justamente
por isso que ainda poupo alguns, quando os encontro fora da luta.
VALENTIA DE
COMPANHEIRO
As demais
palavras de Lampião foram estas:
- A meu ver, o
cangaceiro mais valente do Nordeste foi Sinhô Pereira. Depois dele Luiz Padre.
Penso que
Antonio Silvino foi um covarde, porque se entregou às forças do governo, em
consequência de um pequeno ferimento. Eu já recebi ferimentos gravíssimos, e
nem por isso me entregarei.
Conheci muito
José Ignácio do “Barro”. Era um grande protetor de cangaceiro.
LAMPIÃO...
LEGALISTA!
Tive um
combate com os revoltosos, entre São Miguel e Alto de Areias. Informado de que
eles por ali passavam, e sendo legalista, fui ataca-los, havendo forte
tiroteio.
Depois de
grande luta e estando apenas com 18 companheiros, vi-me forçado a recuar,
deixando diversos dos inimigos feridos.
POR QUE NÃO
COMPROMETE O SEU PESSOAL
Desejaria
andar sempre acompanhado de numeroso grupo. Se não o organizo, conforme o meu
desejo, é porque me faltam recursos materiais para a compra de armamentos e
para a manutenção do pessoal. Este que me acompanha atualmente é de 49 homens,
bem armados e municiados.
O meu grupo
nunca foi, todavia, muito reduzido – tem variado sempre de 15 a 50 homens.
FERIMENTOS E
FERIDAS
Já recebi
quatro ferimentos graves. Dentre estes um na cabeça e do qual só por milagre
escapei. Os meus companheiros também várias vezes têm sido feridos. Possuímos,
porém, no nosso grupo pessoal habilitado para tratar dos feridos, de modo que
sempre, somos convenientemente tratados.
Por isto, como
o senhor vê, estou forte e perfeitamente sadio, sofrendo apenas raras vezes
ataques reumáticos.
RESPEITA O
CEARÁ
Sempre
respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque aqui não tenho
inimigos, nunca me fizeram mal, e ainda porque é o Estado do Padre Cícero. Como
deve saber, tenho a maior veneração por este sacerdote, porque é o protetor dos
humildes e dos infelizes e, sobretudo, porque há muitos anos protege as minhas
irmãs que moram nesta cidade. Tem sido para com elas um verdadeiro pai.
Convém dizer
que eu ainda não conhecia pessoalmente o Padre Cícero, pois é esta a primeira
vez que venho ao Juazeiro.
CADA VEZ MAIS
LEGALISTA
Vim agora do
Cariri a ver se me incorporo a algum batalhão legalista, para cooperar no
combate aos revoltosos...
A NOITE,
segunda-feira, 19.04.1926
Imagens:
Virgulino
Ferreira da Silva (Lampião), Padre Cícero Romão Batista e fac-símile do jornal
"A Noite", com a entrevista.
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