Professor, escritor e historiador Dr. Jerônimo Vingt-un Rosado Maia, sendo este o vigésimo primeiro filho e último da família (Rosado) numerada de Mossoró, já falecido. Dona América Fernandes Rosado, esposa do Dr. Vingt-un Rosado, também já faleceu. Vizinho à dona América está o historiador Raimundo Soares de Brito, já faleceu. Ao seu lado está Dona Dinorá.
Atrás encontravam-se Jerônimo Dix-sept Rosado Sobrinho. Em seguida Maria Lúcia Rosado do Amaral (ambos são filhos do casal Vingt-un e dona América), seguida de Walter Fonseca (professor e ex-reitor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte), e ao seu lado está o poeta, escritor e pesquisador do cangaço e gonzaguiano Antonio Kydelmir Dantas de Oliveira, de Nova Floresta na Paraíba, mas radicado em Mossoró desde os anos 90.
Noite da Cultura na Loja Maçônica Jerônimo Rosado - Mossoró/RN.
Foto do acervo do professor, escritor e pesquisador do cangaço José Romero de Araújo Cardoso.
Em 1893, poucos anos após a proclamação da república, o peregrino cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, ou Antônio Conselheiro, acompanhado de centenas de fiéis seguidores, chegou a uma pequena povoação, situada às margens férteis do rio Vazabarris, no semiárido baiano, e ali estabeleceu o arraial de Canudos, também conhecido como Belo Monte.
Em apenas quatro anos, a comunidade de Canudos construiu uma das economias mais
sólidas do interior da Bahia, sendo capaz de suprir as necessidades de milhares
de sertanejos.
As terras eram úmidas e férteis, graças às águas do grande rio, o que
proporcionava uma boa e farta agricultura. A vegetação, à base de arbustos e
favelas, favorecia a criação de bode. A pele deste animal chegou a ser
exportada até mesmo para o exterior.
Relatos da época dão conta do nível de prosperidade a que chegou a comunidade
belomontense. Nina Rodrigues (o mesmo que examinou o crânio de Antônio
Conselheiro), afirmou ter o beato, em curto espaço de tempo, transformado
Canudos “de estância deserta e abandonada em uma vila florescente e rica.”
Manuel Ciríaco, homem influente no arraial, contou a Odorico Tavares em 1947:
“no tempo de Antônio havia de tudo por esses arredores. Dava de tudo e até cana
de açúcar de se descascar com a unha, nascia bonitona por estes lados. Legumes
em abundância e chuvas a vontade”.
Invadido por forças militares, teve sua destruição consumada no dia 5 de
outubro de 1897, depois de um ano de luta brutal, em que brasileiros guerrearam
contra brasileiros.
Os últimos lances dessa epopeia foram narrados por Euclides da Cunha, com
singular maestria: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história,
resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão
integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos
defensores. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na
frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”
José Gonçalves do Nascimento
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
Depois de onze anos de pesquisas e mais de trinta viagens por sete Estados do Nordeste, entrego afinal aos meus amigos e estudiosos do fenômeno do cangaço o resultado desta árdua porém prazerosa tarefa: Lampião – a Raposa das Caatingas.
Lamento que meu dileto amigo Alcino Costa não se encontre mais entre nós para ver e avaliar este livro, ele que foi meu maior incentivador, meu companheiro de inesquecíveis e aventurosas andanças pelas caatingas de Poço Redondo e Canindé.
O autor José Bezerra Lima Irmão
Este livro – 740 páginas – tem como fio condutor a vida do cangaceiro Lampião, o maior guerrilheiro das Américas.
Analisa as causas históricas, políticas, sociais e econômicas do cangaceirismo no Nordeste brasileiro, numa época em que cangaceiro era a profissão da moda.
Os fatos são narrados na sequência natural do tempo, muitas vezes dia a dia, semana a semana, mês a mês.
Destaca os principais precursores de Lampião. Conta a infância e juventude de um típico garoto do sertão chamado Virgulino, filho de almocreve, que as circunstâncias do tempo e do meio empurraram para o cangaço.
Lampião iniciou sua vida de cangaceiro por motivos de vingança, mas com o tempo se tornou um cangaceiro profissional – raposa matreira que durante quase vinte anos, por méritos próprios ou por incompetência dos governos, percorreu as veredas poeirentas das caatingas do Nordeste, ludibriando caçadores de sete Estados. O autor aceita e agradece suas críticas, correções, comentários e sugestões:
Marcas do
cangaço – Cabeças cortadas e uma estética própria nos equipamentos – Na foto
vemos as cabeças dos cangaceiros Mariano, Pai Véio e Zeppelin, mortos em 25 de
outubro de 1936, na fazenda Cangalexo, Porto da Folha, Sergipe.
Luxo místico e
riqueza marcam a estética do cangaço
“Olê, mulher
rendeira/
Olê, mulher
rendá/
Tu me ensina a
fazer renda/
Que eu te
ensino a namorar”
Assim diz a
canção-símbolo do cangaço. Sobre moda, Lampião e seus homens tinham pouco a
aprender e muito a ensinar. Vestiam-se de forma colorida, cobertos por adornos
de ouro e, como bons sertanejos, sabiam confeccionar toda a sorte de objetos e
vestimentas sem que por isso se questionasse sua virilidade: o “rei do cangaço”
costurava suas roupas e a de seus afilhados e bordava à máquina com perfeição,
orgulhando-se da sua habilidade. “O bando de Lampião, sobretudo nos anos 1930,
possuía preocupações estéticas mais frequentes e profundas que as do homem
urbano moderno”, afirma o historiador Frederico Pernambucano de Mello,
pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e autor do livro Estrela de couro:
a estética do cangaço, com 300 fotos históricas e 160 reproduções de objetos de
uso pessoal dos cangaceiros, muitos pertencentes ao próprio autor.
Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião – Figura maior do cangaço
Tamanho apuro
visual, pleno de detalhes nas coisas mais cotidianas (cães com coleiras
trabalhadas em prata!), servia como proteção ao mau-olhado, instrumento de
hierarquia interna, tinha funcionalidade militar e era um poderoso instrumento
de propaganda junto às populações pobres, que se admiravam diante de todo
aquele luxo, cor e brilho. Era também uma forma de arte que o cangaceiro
carregava no seu corpo.
“Havia orgulho
em tudo aquilo, um esforço para que se pudesse chegar ao anseio de beleza de
cada um dos cabras. Era notável ainda um desprezo sistemático pela ocultação da
figura, atitude oposta à de quem se considera criminoso”, explica. “Morando num
meio cinzento e pobre, o cangaceiro vestiu-se de cor e riqueza, satisfazendo
seu anseio de arte e conforto místico.
Era como se os
mais esquivos habitantes do cinzento se levantassem contra o despotismo da
ausência de cor na caatinga e proclamassem a folia de tons e de contrastes.”
Em vez de procurar camuflagem, os cangaceiros desenvolveram uma estética
brilhante e ostensiva com roupas adornadas de espelhos, moedas, metais, botões
e recortes multicores que, paradoxalmente, os tornavam alvo fácil até no
escuro. “Todos armados de mosquetões, usando trajes bizarramente adornados,
entram cantando suas canções de guerra, como se estivessem em plena e diabólica
folia carnavalesca”, escreveu o Diário de Notícias, de Salvador, em 1929.
“Ainda que o
fascínio pelo cangaço tenha existido sempre, fomentado pela literatura de
cordel, Lampião soube jogar com todos os registros do visual para ‘magnificar’
a sua vida e transmitir a imagem de um bandido rico e poderoso. Foi o primeiro
cangaceiro a cuidar de sua estética, usando modos de comunicação modernos que
não faziam parte da sua cultura original, como a imprensa e a fotografia”,
explica a historiadora francesa Élise Grunspan-Jasmin, autora de Lampião:
senhor do sertão.
Após terem seu
visual cantado pelo cordel, a fotografia, ao chegar ao sertão na primeira
década do século passado, fez a delícia do cangaço. “Essa existência criminal
parece ter sido criada para caber numa fotografia, tamanho o cuidado do
cangaceiro com o visual, com a imponência e a riqueza do traje guerreiro”,
avalia Pernambucano. “As vestimentas dos bandidos foram sendo incrementadas até
se tornarem quase fantasias. Esse era um dos aspectos da extrema vaidade
daqueles bandoleiros”, observa o historiador Luiz Bernardo Pericás, autor
de Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. O homem do cangaço
era um orgulhoso que se esmerava no traje, até o final, como se pode ver na
célebre foto das cabeças de Lampião e seus homens ao lado de seus chapéus: “Dentre
os treze, não há dois iguais, tão ricos em tema e valor material quanto o do
chefe, prova da imponência da estética, cuja afetação exagerada adjetivou o
cangaço em sua etapa final, quando se chegou a incrustar alianças de ouro na
boca das armas”, nota Pernambucano.
A indumentária
dos cangaceiros do grupo de Lampião o período anterior a 1930 não era
esteticamente tão rica. Como podemos ver nesta foto de junho de 1927, em
Limoeiro do Norte, Ceará, após o ataque deste bando a cidade de Mossoró.
“Havia uma
estética rica que conferia uma ‘blindagem mística’ ao cangaceiro, satisfeito
com a sua beleza e ainda seguro em meio a uma suposta inviolabilidade.” A ponto
de contaminar as roupas dos policiais, que copiaram suas vestimentas, e mudar o
foco da guerra. “O contágio inelutável dá a força dessa estética e evidencia a
existência de outra luta, travada em paralelo, no plano da representação
simbólica. A vingança estética do cangaço contra a eliminação militar se dá
quando o ícone principal de sua simbologia se transforma na marca do Nordeste:
a meia-lua com estrela do chapéu de Lampião.”
Bandidos
Estimulando
essa “gana de ostentação” estava a própria essência política do cangaço. “Os
cangaceiros não admitiam ser comparados ou confundidos com bandidos comuns, uma
ofensa imperdoável. Viam-se como atores sociais distintos, na mesma estatura
dos ‘coronéis’”, explica Pericás. O que lhes permitia usar e abusar dos
figurinos: orgulhosos de si mesmos, tinham ainda um gosto pelas patentes
militares, promovendo “cabras” a postos de hierarquia militar e considerando
membros de seus efetivos como “soldados”. “Observe que todo grupo militar preza
os símbolos, as insígnias, as representações de poder.
Lembra-se do
Brejnev com medalhas que não cabiam no peito no tempo da Rússia soviética?
Sujeito inteligentíssimo, Lampião fez da costura e do bordado um critério a
mais de promoção e status no seio do bando e ele mesmo costurava as
vestimentas de seu bando. Saber prepará-los e conferi-los a seus homens era uma
grande vantagem”, salienta Pernambucano. “Não se chama o boi batendo na
perneira”, dizia o “rei”, consciente da necessidade de uma política de afagos
interna para amenizar a disciplina de que não abria mão. “A estética era uma
ferramenta para infundir o orgulho do irredentismo cangaceiro nos recrutas de
modo quase instantâneo. Antes desse recurso estético, imagino que essa inoculação
devesse ser lenta.”
Patrões
“Os bandos de
cangaceiros eram estruturas hierarquizadas com claras distinções entre as
lideranças e a ‘arraia-miúda’, sem voz de comando em posição claramente
subordinada aos chefes. Muitos consideravam os líderes do cangaço como
‘patrões’. E esses comandantes se viam assim, quase como os coronéis, com os
quais mantinham boas relações, colocando-se em posição igualitária aos
potentados rurais”, afirma Pericás. Na contramão do senso comum, os comandantes
cangaceiros eram de famílias tradicionais e relativas posses. Lampião, por
exemplo, pertencia à classe dos proprietários de terra e ele próprio foi um
criador de gado. Por isso o cangaço não foi, diz o pesquisador, uma luta para
reconstruir ou modificar a ordem social sertaneja tradicional, como preconizado
por boa parte da literatura sobre o fenômeno.
“Eles não
lutavam para manter ou mudar nenhuma ordem política, mas para defender seus
próprios interesses mediante o uso da violência, indistinta e indiscriminada.
Os bandidos procuravam, sim, manter vínculos com os protetores poderosos, o que
podia resultar, inclusive, em agressões contra o seu próprio povo”, diz
Pericás. Nesse sentido, a famosa justificativa da adesão ao cangaço por motivos
de disputas sociais ou vinganças familiares deve ser vista com desconfiança.
“Os cangaceiros diziam-se vítimas, obrigados a entrar na luta por honra, mas
isso era, na maior parte dos casos, um ‘escudo ético’, um argumento para
convencer as populações pobres de que eram movidos por questões elevadas, se
diferenciando dos bandidos comuns, o que não era real.” Lampião nunca viu como
prioridade ajudar os necessitados. “Em geral, guardavam o dinheiro grande e
davam alguns tostões aos pobres e às igrejas. E sempre faziam questão de que
isso fosse divulgado para criar uma imagem positiva junto ao povo.”
Corisco
Na prática, o
comportamento dos cangaceiros era parecido com o dos coronéis, que agiam de
forma paternalista com aqueles que eram considerados “seus” pobres. “Eles não
eram bandidos sociais e se pode mesmo dizer que sua presença foi um obstáculo a
um protesto social mais significativo. Apesar disso, como um executor
independente da raiva silenciosa da pobreza rural, o cangaceiro tinha o apelo
popular de um agente superior. A sua violência era um gesto admirado de
afirmação psíquica na ausência de justiça e mudança positiva”, acredita a
historiadora Linda Lewin, da Universidade da Califórnia, autora de The
oligarchical limitations of social banditry in Brazil.
Um membro das
forças de repressão contra o cangaço em 1927. Apesar da roupa ser muito próxima
aos cangaceiros, a indumentária dos componentes da repressão era normalmente
mais simples em termos de adornos.
Câmara Cascudo
já notara que “o sertanejo não admira o criminoso, mas o homem valente”. “O
cangaço pode ser visto como uma continuidade do ambiente violento do sertão,
onde era comum que paisanos carregassem e usassem armas no cotidiano, pautando
sua vida em questões morais, de honra e prestígio”, diz Pericás. Os cangaceiros
construíram a imagem de indivíduos injustiçados que haviam ingressado na
criminalidade por bons motivos. Mas, se eram violentos, o mesmo pode ser dito
dos soldados que os perseguiam. “A população que sofria violências das volantes
se voltava para os bandoleiros como uma resposta ou por vê-los em contraposição
aos ‘agentes da lei’”, analisa Pericás.
“Com seus
trajes inconfundíveis e nada tendentes à ocultação, se sentiam investidos de um
mandato mais antigo, havido por mais legítimo que a própria lei, esta, a seus
olhos, uma intrusão litorânea sobre os domínios rurais”, completa Pernambucano.
Os cangaceiros supriram a falta de poder institucionalizado no sertão. “Eles
seriam os fiéis da balança em muitos casos, sendo um poder paralelo, mais
fluido e inconsistente, mas que tinha apelo para as massas rurais”, diz
Pericás.
Com o tempo,
porém, o cangaço se revelou um negócio, o “Cangaço S/A”, como o descreve
Pernambucano. “Era uma ‘profissão’, um ‘meio de vida’. Os bandidos estavam
equidistantes do ‘povo’ e dos mandões, ainda que com maior proximidade das
elites rurais”, concorda Pericás. Como eram “independentes”, tinham sua imagem
dissociada diretamente dos coronéis. “Não sendo empregados de ninguém, eram de
certo modo autônomos, tirando das camadas mais ricas e dos governos o monopólio
da violência. Mas é sempre bom lembrar que a maioria da população sertaneja, apesar
da miséria, da exploração, da falta de emprego e das secas, não ingressou no
cangaço.”
Segundo o
pesquisador, um dos motivos para a longevidade da “boa” recordação dos
cangaceiros seria sua contraposição à ordem instituída. “Os policiais
representavam o governo, mas usavam a farda para transgredir. Assim, parte
dessa sociedade se voltou para os cangaceiros e viu neles o oposto, ou seja,
aqueles que lutavam contra a ordem.” Suas atividades criminosas, então, eram
justificadas no quadro maior da luta entre os dois “partidos”: cangaço e
polícia.
Politicamente
“reabilitados” e bem vistos, permitiam-se o luxo da ostentação, que se iniciava
pelos chapéus, cujas abas levantadas podiam chegar aos 20 cm de raio anular,
uma hipérbole em relação ao modelo original dos vaqueiros, de abas viradas, mas
curtas. “Experimentei o chapéu de Lampião no Instituto Histórico e Geográfico
de Alagoas: o pescoço bambeou. Tanto peso ornamental não teria nada a ver com
funcionalidade militar, mas com valores bem mais sutis”, conta Pernambucano. O
objeto tem cerca de 70 peças de ouro, entre moedas, medalhas e outros adereços,
o que levou um repórter da época a defini-lo como “verdadeira exposição
numismática”. O chapéu era o ponto de concentração dos adendos simbólicos que
caracterizam o traje do cangaceiro.
Amuletos
Coisas comuns
eram transformadas em amuletos que, além de reforçar a hierarquia, viravam
símbolos de uma crença mística. “A blindagem mística se traduziu nos muitos
signos (estrela de Davi, flor de lis, signo de Salomão e outros) e na profusão
do seu uso em todos os ângulos das vestimentas, o que dividia a atenção com o
puro anseio estético, a se mesclar a este, conferindo utilitarismo à fusão,
pela força de dar vida à crença tradicional numa suposta inviolabilidade em
meio a riscos extremos.” Mas não se iluda o espectador ao pensar que os bandos
eram “escolas móveis de superstição”. “O grosso da cabroeira, muito jovem,
entre os 16 e os 23 anos, pautava-se pela lei da imitação, sem consciência
daquilo de que se servia. O chefe usava? Basta.” As mulheres seguiam as modas
de perto, mas de forma distinta.
“Com alguns
traços de Valquíria e quase nenhum da amazona, a matuta que se engajou no
cangaço jamais adotou o chapéu de couro, coisa de homem. A elas ficou reservado
uma cobertura de feltro, de aba média, e a colocação, sobre a cabeça, de toalha
ou lenço”, conta Pernambucano. O mesmo se dava com os punhais que podiam chegar
a 80 cm para os homens (o tamanho limite era o do punhal de Lampião, que não
poderia ser superado), mas não passavam dos 37 cm no caso das mulheres.
As armas
brancas, aliás, são paradigmas na vestimenta do cangaceiro. Com função militar
quase morta após o advento da espingarda de repetição, os punhais serviam no
ritual letal do sangramento nordestino ou como símbolo de status. “Era
usado orgulhosamente sobre o abdome, à vista de todos, aço da melhor qualidade
europeia com cabo decorado de prata. Desfrutável ao primeiro olhar. Ou à
primeira fotografia.” O punhal de Zé Baiano, presente de Lampião, foi avaliado
em mais de 1 conto de réis, preço de uma casa. Outros símbolos de prestígio
eram a bandoleira, correia para segurar a espingarda no ombro, e a cartucheira
trespassada, essa uma necessidade nascida de se prover um adicional de munição:
150 cartuchos de fuzil Mauser presos com enfeites de ouro. Era comum, porém,
que as volantes, cientes do prestígio de seu uso, mirassem em quem portasse uma
dessas. A seu lado, iam os cantis, decorados com esmero, um espaço
surpreendente de arte de projeção. Como as luvas a que, nota Frederico
Pernambucano, o cangaceiro, no fausto dos anos 1930, juntou um bordado
colorido.
O lugar
privilegiado das cores, porém, eram os bornais, cuja policromia levou um
jornalista a descrever os cangaceiros como “ornamentados e ataviados de cores
berrantes que mais pareciam fantasiados para um carnaval”. Visíveis por todos
os ângulos, os bornais eram responsáveis por mais de dois terços desse “porre
de cores”, o resto ficando por conta do lenço de pescoço, a jabiraca, com que
também se coava o líquido extraído de plantas da caatinga. “Nela, nada de nós,
mas puxadas as duas pontas para frente, em paralelo, o cangaceiro ia
colecionando alianças de ouro, tomando-se como rico quando formava o cartucho.
Houve quem tivesse mais de 30 alianças no pescoço”, conta. Viajando por Sergipe,
em 1929, Lampião teve os “apetrechos” pesados numa balança de armazém: 29
quilos sem as armas. No total, o peso carregado no calor tórrido da caatinga
podia chegar a quase 40 quilos.
Místico
Com menos
aprumo, a vestimenta contagiou os policiais. “A sedução da indumentária dos
cangaceiros arrebatava pelo funcional, pelo estético e pelo místico. A volante
se mimetizou a tal ponto que dela não restou imagem própria”, diz Pernambucano.
Para desespero das autoridades, que se sentiam derrotadas também no simbólico.
“Cumpre que se adote a proibição de fardamentos exóticos, de berloques,
estrelas, punhais alongados e outros exageros notoriamente conhecidos, porque a
impressão se faz no cérebro rude e, à primeira oportunidade, o chapéu de couro
cobre a testa e o rifle pende a tiracolo”, alertava um relatório oficial.
Curiosamente,
nota o pesquisador, pintores como Portinari ou Vicente do Rego Monteiro não
souberam captar o luxo e o colorido dessa estética em suas reproduções do
cangaço, optando, ideologicamente, por uma visão monocromática opaca, para
ressaltar o aspecto social do fenômeno, à custa da fidelidade ao real. “Não é
exagero dizer que ainda está por surgir, na pintura ou no cinema, quem consiga
combinar o ethos e o ethnos dessas comunidades para
retratá-las”, avalia Pernambucano. “O cangaço foi o último movimento a viver
‘sem lei nem rei’ em nossos dias, após varar cinco séculos de história. E o
último a fazê-lo com tanto orgulho, com tanta cor, com tanta festa e com uma herança
visual tão significativa.” Como, aliás, já diziam os versos de Mulher
rendeira:
A história da famosa promoção a capitão do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, ocorrida em Juazeiro, no ano de 1926, é de conhecimento de todos e um tema já bastante divulgado. Sobre o homem que realizou este procedimento, Pedro de Albuquerque Uchoa, muito já foi igualmente comentado. Quem primeiro trouxe a história da patente e a figura de Uchoa ao conhecimento geral foi o cearense Leonardo Mota (1891-1947), no seu livro “No tempo de Lampião”. Lançado em 1930, a entrevista transcrita de Uchoa, colocou este funcionário público no centro das atenções.
Lampião e família, em foto por ocasião de sua visita a Juazeiro em 1926
Três anos após o lançamento do livro de Mota e sete anos depois deste acontecimento “burocrático-cangaceirístico”, Uchoa teceu mais alguns interessantes comentários relativos a este pitoresco episódio da trajetória do Rei do Cangaço.
Através da reprodução das páginas de um vespertino carioca, apresentadas na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, de sexta-feira, 29 de setembro de 1933, vamos encontrar o funcionário público Uchoa, aparentemente vivendo na antiga Capital Federal. Pela descrição no jornal, tudo indica que ele não era mais um membro dos quadros do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Era apresentado pelo jornal como funcionário da “Secretaria do Tribunal”, sem especificar se era um tribunal ligado a justiça Estadual ou Federal.
O jornalista que realizou a entrevista informa que se espantou ao descobrir que estava diante do homem que forçadamente provocou uma interessante querela burocrática e o mesmo, em nenhum momento da entrevista, negou o seu ”feito”.
“- Fui eu mesmo, quando estava no Juazeiro, Ceará”. Afirmou Uchoa.
Mas como tudo ocorreu. Para reavivar a memória de todos, recorro ao excelente livro “Padre Cícero-Poder, Fé e Guerra no Sertão”, de autoria do jornalista e escritor cearense Lira Neto, que no capítulo 11, páginas 463 a 482, traça detalhadamente os episódios que culminaram na criação da patente de capitão para Lampião.
No ano de 1925, o então presidente da República Arthur Bernardes idealizou um plano para derrotar os componentes de uma coluna de oficiais rebelados do Exército Brasileiro, que percorriam os sertões na esperança de insuflar a massa com o seu exemplo de luta, derrubar o presidente e alterar a ordem vigente na nação. Comandados por Luís Carlos Prestes, Isidoro dias Lopes, Siqueira Campos, eram conhecidos na época como revoltosos.
Eles estavam no início de 1926 adentrando o Ceará, vindos do Piauí. O presidente da República convoca Floro Bartolomeu da Costa para organizar a resistência aos rebelados no Ceará. Floro era um médico baiano, que vivia em Juazeiro, era deputado federal, muito ligado ao Padre Cícero Romão Batista e que em 1914, havia organizado um movimento sedicioso que culminou com a derrubada do então governador cearense, Franco Rabelo. Parecia o homem certo para a função. Floro procura o Padre Cícero, carismático prefeito e religioso de Juazeiro, e, com uma dinheirama vinda do Rio de janeiro, organizam os chamados Batalhões Patrióticos. Eram mais de mil homens com uniformes de brim azul-celeste e munidos de modernos fuzis privativos das forças armadas. Foram passados em revista pelo Padre Cícero em 9 de janeiro de 1926 e saíram ao encalço dos revoltosos.
Mas a caçada não deu certo. Afeitos as táticas de guerrilhas e ao constante movimento da tropa pelo sertão, os revoltosos conseguiram driblar os membros dos Batalhões Patrióticos e seguiram atravessando o Ceará.
Desesperado, o Floro pede mais dinheiro ao governo e amplia a já amalucada ideia de Arthur Bernardes. Ele envia um portador para convocar para a “Guerra Santa”, com uma carta do padre destinada a ninguém menos que Virgulino Ferreira da Silva, o famigerado Lampião. No início desconfiado, Lampião acabou aceitando o convite do seu “Padim Ciço”, o homem a quem ele devotava confiança cega e que aparentemente, há algum tempo protegia os seus familiares de vinganças. Virgulino partiu para o Juazeiro. Lira Neto foi muito feliz ao colocar uma frase que exemplifica esta parte desta história; “Deus e o Diabo iriam se encontrar na Terra do Sol”. Mudanças no Meio do caminho. Enquanto Lampião seguia para a “Meca do sertão”, os revoltosos driblavam os Batalhões Patrióticos e seguiam seu caminho de lutas sem nem chegar perto de Fortaleza, ou de Juazeiro, grande temor do Padre Cícero. Neste meio tempo Floro Bartolomeu adoeceu fortemente de sintomas ligados a sífilis e deixou a “frente de combate”.
Logo a coluna de revoltosos, que entraria para a história do Brasil como Coluna Prestes, passou pelo Rio Grande do Norte (Cidades de São Miguel e Luís Gomes) e seguiu para a Paraíba. Floro Bartolomeu por sua vez rumou para Fortaleza e depois foi de navio para o Rio de janeiro, onde morreria em pouco tempo. Tudo parecia indicar que a tempestade havia passado, mas uma nuvem negra, em formato de um chapéu de couro com a testeira quebrada, se aproximava de Juazeiro. O perigo dos revoltosos poderia ter até passado, mas Lampião vinha cobrar a sua conta para poder “cumprir seu dever cívico”. A princípio o chefe da guarnição policial de Juazeiro pensou em oferecer resistência, mas Padre Cícero não podia aceitar esta situação. Afinal o homem era um convidado e deveria ser bem recebido. Durantes três dias de um final de semana memorável para a cidade de Juazeiro, Lampião e seus homens aproveitaram ao máximo da principal urbe do interior do Ceará.
Na noite de 4 de março de 1926, ocorreu o famoso encontro de duas das mais míticas figuras já produzidas no Nordeste do Brasil. É nessa hora que entra em cena Pedro de Albuquerque Uchoa. Encontro Memorável.
Voltando a reportagem reproduzida sete anos após os fatos, Uchoa comenta que ainda na época em que vivia em Juazeiro, era “muito amigo” do líder político e religioso da cidade. Afirmou que mantinha uma boa relação com o religioso, a ponto de todo dia o Padre Cícero ir tirar um cochilo na sua casa ao meio dia. Nestas horas a casa de Uchoa ficava cheia de romeiros que vinham pedir a benção ao velho padre.
Sobre os acontecimentos de 4 de março de 1926, Uchoa não narra o que aconteceu antes da chegada de Lampião, mas informa que nesta noite foi acordado por dois “jagunços”, em um sobradinho onde morava com seu contraparente, o cantador João Mendes de Oliveira. Os homens intimaram o funcionário público, afirmando autoritariamente que “-Meu padrinho está chamando o Senhor com urgência”. Uchoa não perdeu tempo e foi logo a casa do Padre Cícero.
Segundo sua narrativa, estes dois homens portavam fuzis a tiracolo, estavam encourados e cheios de “medalhas”. As medalhas no caso, certamente seriam imagens de santos penduradas no peito. Ao escritor Leonardo Mota, Uchoa afirmou que estes homens eram Sabino Gomes e o irmão de Lampião, Antônio Ferreira. Ao chegar a residência do líder de Juazeiro, o Padre Cícero lhe apresentou Lampião e disse, conforme está reproduzido no velho jornal sergipano de 1933.
“- Aqui está o capitão Virgulino Ferreira. Ele não é mais bandido. Veio com cinquenta e dois homens para combater os revoltosos e vai ser promovido a capitão. Olhe, o senhor vai fazer a patente de capitão do Sr. Virgulino Ferreira e a de tenente do seu irmão”.
Evidentemente que Uchoa ficou pasmo, “perplexo” em suas palavras. Fiquei imaginando a cara do pobre coitado do funcionário do Ministério da Agricultura, acordado no meio da noite com esta bomba na mão. Ele ainda tentou argumentar que não podia, mas um dos irmãos de Lampião ponderou na hora.
“- Não, se meu padrinho está mandando o senhor pode”.
O Padre Cícero lhe colocou na condição de “mais alta autoridade federal de Juazeiro” e aí não teve jeito. Com o carismático prefeito ditando os documentos, foram “lavradas” as designações de patente. Segundo Uchoa comentou ao repórter, parte dos termos do documento referente a patente de Lampião foram; “Pelo Governo Federal era concedido a Virgulino Ferreira a patente de capitão do Exército, por serviços prestados a República”. Depois o Padre Cícero foi categórico e ordenou a Uchoa um curto “assine”. Ele colocou a sua firma no controverso documento. Interessante é que em nenhum momento na reportagem, Uchoa pronuncia que concedeu uma patente a um dos mais cruéis e sanguinolentos bandidos de lampião, o famigerado Sabino.
Após os “trâmites burocráticos”, Uchoa afirma que presenciou o temível Lampião, todo equipado, se ajoelhar reverentemente e beijar emocionado a batina do Padre Cícero. Lampião informou ao Padre que se comprometia a “proceder bem”….. Uchoa informou ainda que após o encontro destas duas figuras, Lampião e seus homens receberam suas armas, munições e partiram no meio da noite. Se assim foi, este foi o último ato da visita de Lampião e seu bando a Juazeiro. Um Simples “ajudante de inspetor agrícola”?
A Leonardo Mota, o funcionário público Uchoa afirmou que ao retornar para a sua casa, por volta das onze da noite, tentou argumentar com Sabino e Antônio Ferreira que aquele documento não valia nada e que ele “não passava de um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”. Ao que o irmão do cangaceiro-mor do Brasil respondeu secamente que “se o padre dissera que era ele que devia assinar a patente, era porque era ele mesmo”. Uchoa se calou.
Ao ler em Mota, que Uchoa se considerava “um simples funcionário subalterno do Ministério da Agricultura”, percebi que na reportagem de 1933, Uchoa informou que era um “simples ajudante de inspetor agrícola”. Ele então se encontrava em um posto mais baixo na hierarquia dos quadros funcionais do Ministério da Agricultura daquela época? Seria obrigatório que um “ajudante de inspetor agrícola”, fosse uma pessoa com formação superior?
A resposta é não necessariamente. Mesmo com o termo “ajudante”, aparentemente esta extinta função do Ministério da Agricultura, conforme se lê em vários exemplares do Diário Oficial da União (D.O.U.) desta época, poderia, ou não, ser exercida por uma pessoa com o título de agrônomo. Encontrei várias transferências publicadas no D.O.U., do início da década de 1930, onde vemos inúmeros “ajudantes de inspetor agrícola” sendo remanejados. Alguns aparecem com o título de “agrônomo” adiante do cargo, em outros não.
Mesmo não tendo encontrado nada designando Uchoa como agrônomo, eu acredito que ele tinha sim esta formação. O interessante é que na entrevista concedida no Rio, sete anos depois do episódio em Juazeiro e reproduzida na primeira página do jornal sergipano “Diário da Tarde”, em nenhum momento Uchoa comenta sua formação superior. Isso em uma época onde o Brasil era tão carente de educação, que quem era “Dotô” fazia questão de dizer a todos sobre a sua superioridade acadêmica e ainda mostrar o seu anel de formatura.
Das duas uma; ou Uchoa era um homem muito humilde, ou o repórter do tal vespertino carioca era muito fraco… Certamente o Padre Cícero, em muito pouco tempo, deve ter se arrependido de dar continuidade à ideia de Floro de trazer Lampião a Juazeiro. Logo Lampião percebeu que de seus “colegas de farda”, estes não viriam até ele com salamaleques típicos de militares e nem com continências. Deles, Lampião só iria receber bala. Sobre a sua luta contra os revoltosos da famosa Coluna Prestes, existem indicações que Lampião e seu bando travaram um pequeno combate, sem maiores consequências, em Pernambuco. Depois o cangaceiro decidiu continuar seu caminho de depredações, saques e violências, do qual era um especialista, deixando de lado a promessa feita ao Padre Cícero.
Mas quem não deixou passar em branco a situação foram os jornais da época, que se mostraram extremamente impiedosos nas críticas ao líder de Juazeiro.
As manchetes do jornal recifense “A Noite”, de 10 de agosto de 1926, aqui apresentadas, dão uma ideia do que o Padre Cícero sofreu. O texto então é pior ainda. Nele encontramos; “E ainda agora, para coroar toda esta obra de misérias que o Padre Cícero vem desenvolvendo ao longo de anos, Lampião passeia a sua impunidade nas ruas de Juazeiro, garantido e hospedado pelo padre satânico”.
Em minha opinião o Padre Cícero não percebeu a extensão do estrago que ocorreria quando decidiu dar prosseguimento ao plano desorientado de Floro Bartolomeu. Alguém se esqueceu de lembra ao padre que seria muito difícil fazer com que certos componentes de volantes que combatiam os cangaceiros, teriam agora de parar a sua luta figadal contra o facínora e seus homens, e ainda mais, teriam de prestar continência ao capitão Virgulino. Isso tudo apenas por uma ordem emanada de Padre Cícero e sacramentada pela “mais alta autoridade federal de Juazeiro”, um “ajudante de inspetor agrícola”.
Para a imprensa do país e certos setores da elite que governava a nação, a ação do Padre Cícero foi considerada, no mínimo, “desastrada” e só serviu para manchar a sua biografia. Sobrou até para o pobre do Uchoa. Segundo a reportagem de 1933, ele teve de prestar contas do ocorrido a ninguém menos que o próprio ministro da agricultura.
Uchoa não informa se foi ao titular da pasta durante a gestão Arthur Bernardes, o baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida, que ele teve de narrar os fatos. Ou se prestou contas ao sucessor deste, o paraense Geminiano Lira Castro. Já o paulista Paulo de Morais Barros, que assumiu o ministério depois da Revolução de 1930, na mesma época que ocorreu o lançamento do livro de Leonardo Mota, que tornou o “simples funcionário subalterno do ministério da Agricultura”, em alguém que mereceu um encontro com o titular do ministério.
Com qual ministro se encontrou, não importa. O que importa foi que neste encontro ele falou a autoridade, o mesmo que havia dito a Leonardo Mota; “Naquele momento eu lavraria até a demissão do presidente da República”… Não sei se esta verdadeira “epopeia burocrática” trouxe a Uchoa algo mais do que constar nos livros de história do cangaço.
Sem dúvida alguma, apenas uma pessoa saiu ganhando deste episódio e ele foi Lampião. Além de receber novos fuzis e munições, vaidoso como era, deve ter adorado a sua “patente”. Pois assim passou a assinar seus bilhetes e seus cartões que continham sua fotografia. A partir do dia que Uchoa assinou aquele papel, todos os nordestinos que ficaram diante de Lampião, desde um rico coronel na sua casa-grande, ao simples lavrador na sua tapera, passaram a tratá-lo como capitão.
Uma situação chama atenção. Lampião sabia que nao lutaria mais com a Coluna Prestes? A Coluna Prestes cruzou o Rio Grande do Norte em 4 de fevereiro de 1926, depois foi para a Paraíba e Pernambuco. Lampião só chegou a Juazeiro em 4 de março. É possível que ele soubesse por onde andava a Coluna? Certamente. Os jornais Pernambucanos da época, que estão no Arquivo Público de Pernambuco, dão notícia praticamente dia a dia dos Revoltosos . Se os jornais em Recife sabiam, imaginem Lampião.
Esperto e bem informado, certamente Lampião deveria saber de tudo isto. Mas como diz Lira Neto, foi a Juazeiro cobrar o que lhe foi prometido. Lampião era tão sem vergonha, pilantra, que não ficou satisfeito só com as armas e munições (que já era um grande presente), quis a patente, quis sair de Juazeiro como “oficial” e “oficializado” e aí ocorre o caso do Uchoa. Me chama a atenção que, com o poder que o Padre Cícero tinha em Juazeiro, ele poderia ter mobilizado até as “corujas da torre da igreja” para lutar contra Lampião e este jamais teria pisado em Juazeiro e sei lá o que teria acontecido. Mas ele não fez. Por que?
Creio que o Padre tinha receio de um retorno dos Revoltosos a sua região. Pode ter pensado que podia precisar dos serviços do “capitão”. Não podemos esquecer que nesta época os membros da Coluna já tinham entrado em Piancó e degolado o líder político local, o também Padre Aristides, depois de um forte combate pouco conhecido.
Defesas em Favor do Padre Cícero. Chama atenção neste episódio a forma como ao longo dos anos os defensores de Padre Cícero buscaram, de todas as maneiras, alterar as características deste encontro com Lampião. Dos cantadores de feira, passando pelo sanfoneiro Luís Gonzaga e até na internet dos nossos dias, muita gente buscou dar uma nova versão aos fatos. Durante anos existiram folhetos de cordel, livros, revistas que defendiam a existência histórica do encontro e surgiam os defensores da tese que nada foi daquela forma.
Em 1972 o admirador inconteste de Padre Cícero e de Lampião, o sanfoneiro Luiz Gonzaga, de Exu, em Pernambuco, ao realizar um antológico show no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro, defendeu abertamente o Padre Cícero em relação ao seu encontro com Lampião. Nesta época Luiz Gonzaga andava meio esquecido do grande público, devido a Bossa Nova, Jovem Guarda e outros movimentos musicais. Este show foi seu grande retorno, sendo um dos poucos registros de como era Gonzagão no palco. Quando cantou a música “Olha a Pisada”, de sua autoria em parceria com o médico Zé Dantas, fez um “break” e narrou uma história sobre o episódio. Começava com Lampião e a “cangaceirada” entrando de fuzil na igreja “com a boca do cano para baixo” em sinal de respeito. Gonzaga afirmou que o Padre Cícero Não queria que Lampião chegasse muito perto dele e, quando este pediu uma benção, o padre de Juazeiro não lhe benzeu e ainda aplicou com seu cajado uma grande surra em Lampião.
Evidentemente que nada disto aconteceu. Era uma criação fantasiosa do insuperável sanfoneiro, na defesa do Padre Cícero. Atualmente, chama atenção a defesa do Padre Cícero que ocorre no site Wikepedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Floro_Bartolomeu).
Nesta grande enciclopédia da internet, no tópico destinado a narrar a vida do médico baiano Floro Bartolomeu da Costa, encontramos um texto repleto de meias verdades, que em nada ajuda a estudantes que por ventura utilizarem este serviço para uma pesquisa sobre este assunto. O texto comenta que no ano de 1925, Floro havia recebido uma ordem do então presidente da República Artur Bernardes para defender o Ceará da Coluna Prestes. Foram então organizados os chamados Batalhões Patrióticos (verdade). Consta que Floro, teria então usado o nome do Padre Cícero sem que o sacerdote soubesse dos fatos (situação essa muito difícil de ocorrer devido ao prestígio do Padre Cícero).
Este então convidou Lampião a fazer parte do Batalhão Patriótico. Lampião, grande devoto do padre, aceitou o convite e partiu para Juazeiro, mas não encontrou Floro, que havia viajado para o Rio de Janeiro por motivos de saúde (verdade). Comenta-se que Padre Cícero ficou perplexo quando soube que Lampião estava em Juazeiro para servi-lo (O Padre Cícero sabia que eles vinham).
Ao encontrar Lampião e seu bando, Padre Cícero os aconselhou a abandonar o cangaço e lhes deu rosários de presente, com a condição de que só usassem depois de abandonar a vida bandida (o Padre Cícero pode até ter dado conselhos, rosários e escapulários, mas as armas e munições foram entregues). Os cangaceiros deixaram então Juazeiro, mas antes Lampião recebeu a patente de capitão do Batalhão Patriótico das mãos de Pedro de Albuquerque Uchoa, funcionário público e integrante do batalhão (Uchoa não afirmou isso nem em Leonardo Mota e muito menos na reportagem de 1933).
O Padre Cícero Romão Batista era um homem do seu tempo, com virtudes e defeitos. Possui uma biografia feita de altos e baixos momentos, coisa normal que qualquer ser humano passa em sua vida. Para mim, o encontro com Lampião foi um momento de baixa na história do padre.Mas em minha opinião, ele fez sim um grande milagre (e não tem nada haver com a história da Beata Mocinha). O maior milagre do padre Cícero, mesmo tendo sido realizado em meio a religiosidade popular e mística, lances de violência e muita politicagem, foi a transformação de um simples povoado em uma das mais pulsantes e progressistas cidades do interior do Nordeste.