Por Rangel Alves
da Costa*
A cena ainda
está presente em minha mente. Todas as vezes que eu chegava ao Bar de Naní, lá
na terra onde nasci, em Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, encontrava
um casal sentado: Dona Iolanda e Seu Zé de Iaiá, pais da comerciante. Moravam
nas proximidades, mas gostavam de ficar ali sentadinhos porque defronte para a
praça principal da cidade.
Com a idade já
avançada, os dois então repousando das lutas travadas durante toda a vida,
ficavam ali observando a movimentação, quem passava, quem chegava, ciente de
tudo que acontecia ao redor. Mas lúcidos, proseadores, gostando demais de
reencontrar amigos para um dedo de prosa e de recordação.
Ela, Dona
Iolanda, de família imensa e importante na fundação e povoação do lugar, tendo
seu nome já escrito nos anais da história poço-redondense. E ele, Seu Zé de
Iaiá, de leito igualmente importante e com uma irmandade que pontua em muitas
famílias e no sobrenome de muita gente. A própria história de Poço Redondo,
desde o Poço de Cima ao Poço de Baixo.
O amigo Toinho
de Lídia gostava sempre de estar ali no barzinho fazendo companhia ao casal
sertanejo. Naní num afazer e noutro, quase sem tempo pro proseado, deixava com
Toinho o prazer de dialogar com os dois sobre as realidades da vida. E quanto é
aprendido quando a porteira do passado é reaberta para que realidades sejam
conhecidas. E também sobre o presente, com o aval de quem é sábio por
experiência.
E era essa
cena que eu encontrava quando chegava por lá. Eu olhava nos olhos de Zé de
Iaiá, no seu semblante, nas suas marcas do tempo, e encontrava um imenso livro.
E quantas páginas da história de meu lugar, do meu povo, e também a minha
história. Eis que também sou Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo.
Seu Zé de Iaiá
estava ali, tantas vezes silencioso e pensativo, mas guardando em si muito além
que qualquer um pudesse imaginar. Ora, naquele olhar o espelho do tempo, de um
passado distante de muita dureza e dificuldade de sobrevivência, avistando
tanto sol e pouca chuva. E nos seus pés, mãos e veias, todo o percurso de um
lutador sem trégua para preservar a dignidade do nome e de sua família.
Cruzou sertões
em busca do pão de cada dia, foi comboeiro, montou em burro brabo, subiu em pau
de arara, foi vendedor de farinha, um manejador, do quilo, da penca, do pacote,
do saco. Também foi vaqueiro do próprio e pequeno rebanho, encheu suas mãos de
espinhos de palma no afã de matar a fome do bicho. E tudo para matar a fome dos
seus. E uma filharada imensa, e todas cordiais figuras humanas, grandes e
verdadeiros amigos. Do mesmo modo os netos que também já são tantos e alguns já
cuidando de aumentar a família.
Eu soube da
partida de Seu Zé no domingo, dia 1º, logo cedinho. Não pude viajar à minha
terra para a despedida do grande sertanejo e abraçar Dona Iolanda, seus filhos
e familiares. Entristecido, fiquei imaginando aquela presença no bar da filha,
ao lado da esposa. As recordações foram muitas, de outros tempos e percursos,
mas o casal ali sentado não saía do meu pensamento. E para sempre guardarei
esse retrato.
Não pude
acompanhar a despedida, mas sabia que teria oportunidade de expressar meus
sentimentos acerca daquele bom sertanejo. E eis que no meio da semana sua filha
Naní me telefona. Mesmo que ela silenciasse no momento, eu já sabia o que era,
o que desejava. E então meu coração se encheu de contentamento, pois me foi
confiado escrever algumas palavras para a missa de sétimo dia.
E escrevi. Não
estas palavras, mas outras, que certamente foram lidas ontem à noite durante a
missa em Poço Redondo. Estas surgiram apenas porque recordei aquele retrato:
Dona Iolanda e Seu Zé sentados no bar da filha Naní. Que essa moldura permaneça
viva na história de Poço Redondo. E que Dona Iolanda continue por muitos anos
ao lado dos seus.
Poeta e
cronista
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