Por Raul Meneleu Mascarenhas
As versões dos
acontecimentos variam de uma forma contundente na história de Lampião e seus
inimigos. Para um leitor desatento, que não registre em sua memória o que leu
em diversos livros sobre os episódios vividos por aqueles da época e narrados
pelos escritores, por certo ao conversar sobre os assuntos, em algum momento,
poderá ouvir outra versão do acontecido. Temos disparidades e citarei aqui
apenas três ou quatro livros, de autores que merecem todo o nosso respeito, e
que colheram informações de fontes diferentes.
Em O
Canto do Acauã, na página 157 da sua segunda edição, revista e ampliada, temos
a narrativa do histórico episódio sobre Ioiô Maroto e a morte do coronel
Gonzaga, narrada por sua autora, Marilourdes Ferraz, que nos conta: "...
Apenas quatro meses depois do grande assalto à Água Branca o olho de lince de
Virgulino mirou a riqueza de Luís Gonzaga Lopes Gomes Ferraz, residente em São
José do Belmonte. Esse senhor gozava do apreço e admiração das pessoas da terra
por sua capacidade de trabalho e probidade. Igual à imensa maioria dos
sertanejos, teve um difícil começo na vida; foi almocreve e iniciou suas
atividades comerciais junto a seu pai, Cândido, e ao seu irmão, João, ainda na
vila de São Francisco.
Quando ali não
foi mais possível permanecer, os comerciantes partiram e entre eles estavam
Gonzaga e Francisco Pita, mais conhecido por Chico Pita. Este,
transformar-se-ia em industrial no agreste pernambucano, mas Gonzaga não foi
tão longe, ficando ali mesmo no sertão, em São José do Belmonte, onde seria
atingido pela violência na segunda quinzena de outubro de 1922.
Ampliando suas
atividades comerciais, Gonzaga conseguiu reunir bens consideráveis depois de
longos anos de extenuante trabalho, movido pelo desejo de assegurar o futuro de
sua família. Além de comerciante, era também fazendeiro, industrial,
proprietário de uma usina de beneficiamento de algodão e de armazéns. Efetuava
transações com couro de caprinos e com algodão, prestava assistência aos agricultores
da região através de pequenos financiamentos e não se recusava a auxiliar
parentes e amigos. Foi ele que ofereceu uma boa quantia como ajuda financeira
para a construção da igrejinha de Nazaré.
Gonzaga há
muito tempo vinha atendendo às exigências dos cangaceiros, fornecendo-lhes
dinheiro, tecidos e objetos, para ser deixado em paz, até que sobreveio o
incidente que o levou a cair no desagrado dos bandoleiros. Estava ausente de
casa quando chegou um mensageiro com uma relação de pedidos a serem atendidos;
sua esposa, indignada, negou-se a atender às exageradas solicitações, com um
comentário final que o irritou: "Que fossem trabalhar como meu marido
sempre o fizera".
Antes mesmo
desse episódio, ainda em maio daquele fatídico ano de 1922, parte do grupo de
Sebastião Pereira, incluído Lampião, interceptou na estrada um comboio
de tecidos para Gonzaga, proveniente de Arcoverde; a mercadoria foi
arrebatada e fartamente distribuída entre os componentes do bando e moradores
das proximidades a fim de silencia-los enquanto outra parte foi queimada. O
comerciante sofreu com isso enormes prejuízos; depois disso, temendo outros
assaltos e como medida de precaução, reuniu um grupo de homens armados
para a sua segurança. Foi então que ocorreu outro fato desagradável.
O tenente
Montenegro, comandante de uma força volante do Ceará que estava no encalço de
Sebastião Pereira em terras pernambucanas, recebeu uma carta falsamente
escrita em nome de Gonzaga, (vejam a segunda versão*) na qual se denunciava
Crispim Pereira, mais conhecido por "Yoyô Maroto", como colaborador
dos cangaceiros. Esse oficial, sem pistas ou sem informações sobre o grupo, foi
levado a acreditar na carta-denúncia e antes de regressar ao Ceará passou pela
casa de "Yoyô", procedendo a uma rigorosa arguição que levou
"Maroto" a passar por sério vexame.
Inconformado
com o acontecido, Gonzaga logo entrou em contato com "Maroto" para
explicar-lhe a sua inculpabilidade no caso. Este simulou acreditar na inocência
de Gonzaga, tanto que dias depois lhe tomou emprestada uma máquina de
descaroçar algodão. Foi nesse tempo que o comerciante resolveu dispensar o
pessoal armado que se encontrava à sua disposição encarando com incredulidade
um boato que então corria sobre um suposto ataque contra ele, promovido por seu
compadre "Yoyô Maroto" juntamente com Lampião.
E o ataque
aconteceu realmente. No dia 20 de outubro, às cinco horas da manhã, a
residência de Gonzaga estava cercada por numeroso grupo de cangaceiros
liderados por Lampião e "Yoyô Maroto". Gonzaga pelejou com todo
empenho ouvindo os golpes de machados contra as portas, que foram arrebentadas.
Quando os facínoras conseguiram entrar, Gonzaga refugiou-se no sótão, mas uma
tábua do assoalho cedeu e ele caiu no meio da horda, que o liquidou friamente.
Seguiu-se o saque, estendido a um armazém vizinho pertencente a Gonzaga; as
mulheres da casa foram violentamente despojadas de suas joias.
Foi então que
o cangaceiro Zé Terto, apelidado de "Cajueiro", vendo aquela situação
constrangedora para as mulheres, reuniu-as num compartimento e postou-se à
entrada em guarda, não permitindo que os companheiros tentassem outras
violências. Aliás, era esse o comportamento habitual de "Cajueiro"
durante os assaltos, proteger as mulheres contra-ataques sexuais; dizia
relacionar essa atitude com seus próprios sentimentos de respeito à sua
mãe.
Os cangaceiros
aquartelados na casa invadida respondiam agora ao tiroteio do bravo sargento
José Alencar de Carvalho, que mesmo enfermo estava à frente de seu pequeno destacamento
composto por oito soldados, tentando impedir que o assalto se estendesse a
outras casas e estabelecimentos comerciais. Também extraordinária foi a atuação
do parente e vizinho de Gonzaga, Manuel Gomes de Sá; juntamente com os filhos,
João e Antônio, também sustentou a resistência, disparando contra os
cangaceiros desde o início. O bando não conseguiu suportar por muito tempo o
tiroteio cerrado do famoso sargento Alencar e bateu em retirada; deixava três
mortos (Antônio "da Cocheira", "Baliza¹" e "Berdo")
e seis feridos (entre os quais "Yoyô Maroto" e Cícero Costa).
A facção
contrária perdeu, além de Gonzaga, o soldado Heleno; houve um ferido, João
Gomes de Sá. O trauma provocado pelo trágico desaparecimento de Gonzaga levou
sua esposa, Martina, a retirar-se do sertão com sua família, fixando residência
no Sudeste do país. Com ela seguiu a família de seu cunhado, João Lopes Gomes
Ferraz. Gonzaga, que foi também prefeito de São José do Belmonte, deixou os
seguintes filhos: José, médico na Marinha Mercante (falecido); Napoleão,
químico (falecido); Laércio, funcionário do Banco do Brasil; Ramiro e Otacílio,
dentistas; e as filhas Nair, Diva, Maria de Lourdes e Edy (as duas últimas
falecidas)."
¹ - Segundo
Baliza (Dic. Biográfico Cangaceiros e Jagunços pg 66 - Renato Luís Bandeira
* A segunda
versão:
Já no livro de José Bezerra Lima Irmão, Lampião a Raposa das Caatingas, a
tratativa entre Gonzaga e o tenente Montenegro deu-se não por causa de carta
anônima, e sim por um conchavo, pois a política afasta até mesmo irmãos, quanto
mais compadres.
Nos tópicos "Lampião faz justiça à sua maneira" na pg 122 sobre o
"Desagravo a loiô Maroto e a morte do coronel Gonzaga, o autor cita
sua fonte no escritor Billy Jaynes Chandler em seu livro Lampião o rei dos
cangaceiros.**
Desagravo a Ioiô Maroto — a morte do coronel Gonzaga
"Dando
seguimento ao seu projeto de vingança, o próximo passo de Lampião foi o
cumprimento da promessa feita a Sinhô Pereira, com relação aos maus-tratos
infligidos à família de Crispim Pereira de Araújo, conhecido como Ioiô Maroto.
O episódio era ainda resquício das desavenças históricas entre as famílias
Pereira e Carvalho. Ioiô Maroto, fazendeiro em Belmonte, Pernambuco, parente de
Sinhô Pereira, havia tido um problema com o coronel Luís Gonzaga Gomes Ferraz
(coronel Gonzaga), prefeito (intendente) daquela cidade, ligado à família
Carvalho, porque, apesar de serem compadres e amigos, Ioiô votara contra sua
chapa na eleição para prefeito.
Aborrecido com o fato, Luís Gonzaga aproveitou o ensejo da passagem de uma
força policial do Estado do Ceará que tinha andado por Pernambuco à procura de
jagunços de Zé Inácio do Barro e fez um conchavo com o comandante, o
tenente Peregrino Montenegro, para que a volante fosse à fazenda São
Cristóvão, de Ioiô Maroto, e desse uma surra nele. Os soldados fizeram mais que
isso: saquearam a casa, maltrataram o fazendeiro e fizeram propostas obscenas
às mulheres da família. Ioiô, profundamente desgostoso, sentindo-se
desmoralizado, deixou de ir à cidade, não tirava a barba nem cortava o
cabelo.
Lampião procurou Ioiô Maroto e disse ao que vinha. Maroto ponderou que não
queria vingança, entregava tudo a Deus. Lampião insistiu: — Eu prumiti a Sinhô
Perera que risurvia esse negoço, e vou risorvê. Vá tirá essa barba e corta esse
cabelo, seu Maroto! Quero qui o sinhô vá cumigo, pra vê a coisa! Vão se
arrependê do dia qui pensaro qui o sinhô nun era home!
O coronel Luís Gonzaga, também conhecido como Major Gonzaga, além de fazendeiro
era também comerciante, dono do maior armazém da cidade, vizinho da sua
residência, na praça da igreja. Lampião entrou em Belmonte com uns 70
cangaceiros na madrugada de 20 de outubro de 1922. Levava em sua companhia o
jovem Tiburtino Inácio de Sousa, vulgo Gavião, filho de Zé Inácio do Barro,
amigo de todas as horas de Sinhô Pereira. Chovia muito. Gonzaga e os vizinhos
acordaram com uns estrondos, que a princípio pensaram ser trovões — eram os
cangaceiros derrubando o portão do muro e em seguida a porta da cozinha a
golpes de machado.
Um vizinho foi correndo avisar ao sargento José Alencar de Carvalho Pires,
conhecido como Sinhozinho Alencar, tido como sujeito valente, dotado de uma
pontaria invejável. Embora na cidade só houvesse 7 soldados, alguns moradores
se juntaram à polícia e logo começaram a atirar dos telhados e janelas das
casas próximas. Os primeiros a entrar na casa foram Livino e Cajueiro. Na sala
de jantar, toparam com dona Martina, mulher de Luís Gonzaga. — Cadê o Majó
Gonzaga? — perguntou Livino. — Tá aí... — respondeu a mulher, assustada. Os
cangaceiros espalharam-se pela casa, vasculhando cada cômodo — casarão enorme,
com um corredor central, quartos de um lado e do outro.
Livino entrou no quarto do casal, olhou atrás da porta, debaixo da cama,
escancarou os armários. Nada do homem. Ao ouvir um ruído no sótão, Livino subiu
a escada, forçou a porta e meteu a cabeça para espiar lá dentro. Mas o sótão
era muito escuro. Gonzaga, de pijama, com uma pistola Browning na mão, recuou
para o fundo do compartimento. Por azar, uma tábua do assoalho arrebentou e ele
estatelou-se no chão, na sala da frente. Com uma perna quebrada, ele entrou num
quarto e tentou saltar a janela, mas foi agarrado e arrastado de volta à
sala.
Ioiô Maroto aproximou-se manejando o rifle cruzeta. Gonzaga arregalou os olhos,
levantou os braços, as mãos espalmadas e trementes, suplicando clemência. Ioiô
deu-lhe três tiros — dois no coração e um no meio da testa. Lampião abaixou-se,
tirou a aliança do coronel e enfiou nela o próprio dedo médio. Contemplou a
valiosa joia e calculou: — Esta vale pelo meno um conto de réis... Jogou em
cima do corpo roupas e lençóis, e tocou fogo. Dona Martina despejou um balde de
água sobre o corpo, debelando as chamas, de modo que o morto ficou apenas
chamuscado.
Um cangaceiro chamado Vereda ia arrastando Abgail (Biga), filha de Gonzaga,
para um quarto, mas foi impedido por Cajueiro: — Você nun vai fazê isso,
Vereda, só se me matá premero. Quais foi as orde qui nóis recebeu? Depois
disso, dona Martina e a filha foram postas na despensa, e o cangaceiro Fiapo
foi encarregado de protegê-las até o momento da retirada."
** A terceira
versão:
Trago agora para os amigos, a obra apontada pelo autor do livro Lampião: Raposa
das Caatingas, como referência, essa é terceira versão que comento. Billy
Jaynes Chandler em seu livro Lampião o rei dos cangaceiros, na referência que
faz ao assassinato de Luis Gonzaga, diz que não se sabe ao certo se Maroto
pediu a Lampião para - se vingar, ou se Lampião, ao ouvir o que tinha
acontecido a seu amigo acorreu e induziu-o a agir, pois contam as duas histórias.
Uma versão conta que Sebastião Pereira, antes de deixar o cangaço, pediu a
Lampião, na despedida, para matar Gonzaga.
"Lampião...
Uns dois meses depois, matou, de novo, por vingança, desta vez em Pernambuco.
Foi um dos crimes mais famosos do princípio de carreira, pois a vítima foi um
chefe político muito conhecido, Coronel Luís Gonzaga de Souza Ferraz.*¹º
Gonzaga, que morava na cidade Belmonte, em Pernambuco, perto da fronteira com
Ceará, não era inimigo pessoal de Lampião, mas este ajudou a matá-lo, por causa
do amigo, Ioiô Maroto.
Maroto era parente de Sebastião Pereira, que um dos companheiros de Lampião no
cangaço, enquanto que Gonzaga pertencia à família dos Carvalho,
inimigos tradicionais de Pereira. Durante anos, Gonzaga viveu armando
intrigas contra os Pereira, também morou em São Francisco, a cidade natal
de Sebastião Pereira. Mas o que realmente provocou o assassinato, foram os maus
tratos que Maroto sofreu nas mãos de uma força da polícia do Ceará, que tinha
vindo para Pernambuco, para caça aos bandidos. Em Belmonte, o comandante fez amizade
com Gonzaga. No caminho de volta ao Ceará, os soldados passaram por São
Cristóvão, a fazenda de Maroto e o maltrataram, bem como à sua família. Além de
saquear a casa e dependências, eles insultaram Maroto e fizeram propostas
obscenas às mulheres da família. Maroto pôs a responsabilidade da afronta a
Gonzaga."
E continua Billy Jaynes:
"Não se sabe ao certo se Maroto pediu a Lampião para - se vingar, ou se
Lampião, ao ouvir o que tinha acontecido a seu amigo acorreu e induziu-o a
agir, pois contam as duas histórias. Uma versão conta que Sebastião Pereira,
antes de deixar o cangaço, pediu a Lampião, na despedida, para matar Gonzaga.
De qualquer modo, Lampião e Maroto, à frente de setenta homens, chegaram a
Belmonte, uma pitoresca cidadezinha situada num planalto, numa região de
serras, na madrugada do dia 20 de outubro. Ao entrarem na cidade ainda
adormecida, pensaram que não precisavam se preocupar, pois haviam só sete
soldados no destacamento da polícia. O bando então se encaminhou para a casa de
Gonzaga, situada na praça principal. A futura vítima era um fazendeiro
abastado, e homem de negócios, e seu armazém, o maior da cidade, ficava pegado
à casa.
É evidente que
o assalto foi por vingança, mas uma vingança que trazia lucro. Ao tentarem
entrar na casa, os cangaceiros foram recebidos à bala. Isto serviu para alertar
a polícia e outras pessoas na cidade. Seguiu-se, então, um tiroteio que durou
umas quatro a cinco horas. Quando terminou, Gonzaga estava morto e seu armazém
tinha sido saqueado. Maroto estava vingado. Terminado o trabalho, o bando teve
que abrir seu caminho à bala, porém, com vítimas: quatro ou cinco cangaceiros
morreram.
Maroto nunca
pagou pelo crime. Na confusão que se seguiu, a polícia não estava em condições
de processá-lo, e portanto, ele continuou a viver em paz, e bem protegido, na
sua fazenda, a uns dez quilômetros da cidade. Quando as condições melhoraram e
finalmente foi aberto um processo contra ele, deixou a região e se refugiou na
casa dos Feitosa, em Inhamuns, Ceará. Os Feitosa tinham adquirido a fama de dar
proteção aos fugitivos da lei, de mais prestígio.
Alguns anos
antes, mais ou menos em 1905, os Feitosa tinham também dado proteção a vários
membros da família de Antônio Silvino, quando estavam sendo perseguidos pela
polícia de Pernambuco. Seus descendentes, assim como os de Maroto, ainda vivem
em Inhamuns. Os descendentes de Maroto se misturaram com os Feitosa."
* 10 - A
narração da morte de Gonzaga se baseia principalmente numa entrevista com João
Primo de Carvalho, Belmonte, 30 de julho de 1975. O Diário de Pernambuco deu
uma pequena nota, no dia 21 de outubro de 1922. Ver também Wilson: Vila Bella P
338-340.
Vemos assim
três versões mais ou menos iguais, se complementando em informações, mas com
alguns conflitos. Nessa avaliação não me arvoro em opinar o que está certo
ou errado, pois sei que até mesmo grandes historiadores e pesquisadores, colhem
suas investigações na procura da verdade, buscando-as nas indagações a
pessoas que viveram à época ou que ouviram a história de quem esteve presente,
também averiguando jornais, revistas, e livros, explorando e
indagando. E que a mente humana é falha em guardar os acontecimentos ao longo
dos anos que se passaram.
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