Por Rangel Alves
da Costa*
Gabriel Garcia
Márquez, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Murilo Rubião e José Cândido de Carvalho,
dentre outros mestres do realismo fantástico, uma espécie de narrativa
literária onde as realidades são verdadeiramente absurdas, ficariam estupefatos
diante do mundo revirado em que se transformou uma cidadezinha chamada Berço
Esplêndido. Assim denominada depois que alguém por lá cantarolou: deitado
eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo...
O primeiro
susto seria com o nome da cidade, não daquele conhecido, mas no outro que de
repente se alastrou como mais verdadeiro e coerente com a realidade local:
Berço Revirado. Mas muitos já a chamavam de qualquer coisa, assim como Berço
Esculhambado, Berço Esbagaçado, Berço Aviltado. Se alguém perguntasse o porquê
da mudança do nome de Berço Esplêndido para Berço Revirado, certamente
encontraria uma resposta simples: É que desandaram tudo. Ou ainda: É que tudo
está de cabeça pra baixo, revirado mesmo.
E tudo estava
desandado mesmo. O vento norte chegava do sul, a porta da frente da casa era na
parte de trás, indo para o quintal. As casas eram praticamente vazias, pois as
pessoas comiam e dormiam do lado de fora. Os bichos de criação viviam com
roupas e chinelos e as pessoas completamente nuas. Os inimigos viviam se
abraçando cordialmente enquanto os amigos de vez em quando se apunhalavam. Ao
invés do beijo, o que o outro apaixonado recebia era um tapa na cara. Chovia
lágrimas e de vez em quando pessoas eram avistadas estendidas pelos varais.
Mas muito
mais: O vigário vivia choroso aos pés do confessionário porque não havia
ninguém a quem relatar seus pecados. Pedras eram cumprimentadas e respeitadas,
lama era tida como algo devocional. Toda vez que um lamaçal surgia, logo
flores, velas e perfumes eram colocados ao redor. O louco que noutros tempos
era evitado a todo custo, agora era conselheiro, verdadeiro sábio da
comunidade. Pelos jardins, que ficavam no telhado das casas, no lugar das
flores nasciam espinhos e ao invés de perfume exalavam odores putrefatos pelo
ar. E flores eram avistadas nas lonjuras do espaço e voando com asas de gavião.
Mas até então
as pessoas comiam e bebiam com fartura, se divertiam com coisas as mais
impensadas e parecia tudo dentro da normalidade do absurdo, do anormal. Mas
tudo piorou quando os alimentos começaram a faltar, as cobranças se tornaram
cada vez mais abusivas e um quilo de folha seca passou a valer dois
dinossauros. Como os dinossauros não existiam mais, então o medo, a tristeza e
o sofrimento se abateu de vez entre todos. Quem vivia chorando passou a sorrir
sem parar, quem vivia gargalhando começou a continuamente gemer. Além do estado
estarrecedor de antes, daí em diante se viu um quadro verdadeiramente dantesco.
O doido de
pedra já transformado em sábio, então resolveu que o melhor a fazer seria ir
reclamar com o governante local, que era uma estátua de língua pra fora e com o
dedo maior da mão direita levantado em direção a quem se aproximasse. A
população nua - e então muito mais magra e entristecida - chegou perante a
estátua e, sem força na voz, apenas apontou para a barriga vazia, para a boca
sedenta e para os braços feridos, como a dizer que faltava comida, bebida e
remédio. A estátua então gargalhou, aumentou o tamanho da língua e levantou o
dedo ainda mais. E soprou ventania tão forte que quase leva todo mundo.
Quando o
doido, agora se mostrando sorridente (que era o seu jeito de mostrar fúria),
acenou para a população chamando para avançar sobre a estátua e derrubá-la,
então repentinamente surgiu um bicho medonho de duas caras e foi logo dizendo
que o povo podia morrer, mas a estátua ficava. Em seguida abraçou a tirana
escultura, escondendo-se atrás dela em seguida. Mas o povo já estava afastado,
dançando (que era sua forma de mostrar desilusão), cantando (que era sua
demonstração de tristeza) e fazendo gestos desconexos (que era como dizia que o
fim havia chegado). E depois todos seguiram pelas ruas como almas penadas em
busca de suas covas. Uma cena tão estarrecedora que parecia coisa do outro
mundo. Mas ali era o outro mundo.
Mas como
aconteceu tal mudança, alguém poderia indagar. Contudo, para conhecer como tudo
aconteceu será preciso voltar no tempo e procurar compreender o que poderia ter
acontecido para o lugar revirado assim de cabeça pra baixo. E coisa simples
demais de relatar. O povo dali era bondoso, humilde, trabalhador, sempre
acreditando naqueles que chegavam com promessas de melhorias. Mas confiou
demais nas promessas e foi enganado. E enganado, desenganou-se. Daí em diante,
não acreditou mais em nada, nem que o dia era dia nem que a noite era noite.
A descrença do
povo era tamanha que tudo passou a ser visto ao contrário, revirado, de cabeça
pra baixo. Mas estava mesmo. Nada mais se mantinha em pé, nem a crença no
governante nem a esperança de dias melhores. Enquanto isso a estátua continuava
apontando o dedo para o povo penando nas ruas, sempre gargalhando quando na
presença do bicho de duas caras. Assim a vida em Berço Esplêndido. Até tudo
revirar de vez.
Poeta e
cronista
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