Postado por João de Sousa Lima
Como se o destino conspiras-se para facilitar-me o conhecimento da cachoeira de Paulo Afonso, Landulfo Alves, então governador da Bahia, sempre me convidava para excursões ao interior.
De tal modo as visitas calaram no meu espírito que me induziram a pensar obsessivamente no aproveitamento da cachoeira, com uma grande usina hidrelétrica que fornecesse energia ao nordeste, pois seria o meio mais acertado de erradicar a miséria ali reinante. A cachoeira costumava ser invocada pelo espetáculo de grandiosidade e beleza por poetas, escritores, geógrafos, pintores e homens públicos.
Delmiro Gouveia realizou em 1913 um pequeno aproveitamento da cachoeira, com uma usina de 1.500 HP, para servir a sua fábrica de linhas de coser na vizinha localidade de Pedra, Alagoas. A obra foi realizada mediante concessão do Estado de Alagoas, pelo Decreto nº 520 de 12/08/1911.
O Imperador Dom Pedro II foi conhecer a cachoeira em 1859, pernoitando no local chamado Limpo do Imperador, quando fez anotações no seu diário, que está no Museu Imperial, Petrópolis, Rio de Janeiro.
O desequilíbrio entre o nordeste e o sul, o abismo que separava um do outro, tornava a construção da hidrelétrica imperiosa e premente. Maior vulto e significado a cachoeira assumiu a meus olhos quando me coube o ensejo de medi-la na qualidade de presidente da Subcomissão de Abastecimento da Bahia, em 1943.
Após a deposição de Getúlio Vargas em 29/10/1945 e a interinidade de José Linhares,
assumia o poder o Presidente Dutra.
Quando Daniel de Carvalho, seu Ministro da Agricultura, me convidou para chefe de seu gabinete, exultei com a possibilidade de incluir no programa o aproveitamento prioritário da cachoeira de Paulo Afonso. A energia que ali se gerasse seria o instrumento para redimir o nordeste e dissipar uma desigualdade profundamente injusta para a sua gente. Foi então que tomei conhecimento de que já existiam dois decretos que objetivavam a mesma finalidade, expedidos no governo Vargas, mas que, com sua deposição, haviam ficado em ponto morto. O aproveitamento de Paulo Afonso havia sido combatido tenazmente pelo Ministro Souza Costa, que afirmava que gastar dinheiro alí seria desperdício.
O processo foi então guardado pelo Dr. Sebastião de Santana Silva, auxiliar do Ministro Apolônio Sales. Também o economista Eugênio Gudin visitara Dutra para dizer-lhe que a construção seria uma loucura, pois, entre outras razões, sequer haveria mercado. Nesse ano (1948) Daniel de Carvalho, Ministro da Agricultura, convenceu Dutra contra a opinião de Gudin. A Chesf havia sido criada em 1945 por Getúlio Vargas, mas só em 1948 Dutra iniciou a obra. A decisão de Dutra de construir Pulo Afonso foi um grande momento da história do Brasil. A conspiração dos derrotistas e negativistas nos gabinetes alastrou-se para combater a obra sob os mais variados pretextos, mas a oposição de hoje será o aplauso de amanhã.
O Ministro Daniel de Carvalho levou ao Presidente Dutra uma lista de três nomes, dentre os quais deveria ser escolhido o organizador e futuro presidente da companhia. Foi escolhido o Engº. Antônio José Alves de Souza, que tinha uma longa tradição de inteligência, cultura e serviços, sendo respeitado tanto pelo seu caráter como pela competência profissional. Engenheiro civil e de minas, formado pela Escola de Minas de Ouro Preto, estava ligado a Paulo Afonso desde 1921, quando, com os engenheiros Jorge Menezes Werneck, Jaime Martins de Souza, Mário Barbosa de Moura e Mengálvio da Silva Rodrigues, fizera o levantamento topográfico da área, por designação do ministro Simões Lopes, no Governo de Epitássio Pessoa. Estava talhado para a missão. Pela Portaria nº 553 de 02/10/47 o Ministro Daniel encarregou Alves de Souza de organizar a grande empresa. Graças ao governador baiano Otávio Mangabeira, a Luiz Viana Filho, Clemente Mariani, Juracy Magalhães e Pereira Lira, a Bahia e a Paraíba foram incluídas no programa. O lançamento oficial da abertura da subscrição pública das ações preferenciais da Companhia foi feito pelo Presidente Dutra, no Palácio do Catete, em 01/12/47.
Alves de Souza não teve dificuldade em formar a sua diretoria. Convidou o General Carlos Berenhauser Júnior, engenheiro eletricista, para Diretor Comercial; Eng.º Adozindo Magalhães de Oliveira, ex-colega da Divisão de Águas, para Diretor Administrativo; e o Eng.º Otávio Marcondes Ferraz para Diretor Técnico. Como Consultor Jurídico, eu, Afrânio de Carvalho. Como o estatuto da Chesf, constituída em assembléia em 15/03/1948, fixara o Rio de Janeiro como seu domicílio, após as primeiras reuniões em salas emprestadas a empresa comprou o 15º andar do edifício 134 da Rua Visconde de Inhaúma, centro do Rio, onde esteve durante 27 anos, até a mudança para Recife em 1975. Com o falecimento do Diretor Administrativo, Eng.º Adozindo Magalhães, em 14/06/53, fui nomeado seu substituto.
De início a Diretoria Técnica de Marcondes Ferraz ficou na sede, onde contava com a assessoria de Domingos Marchetti, além dos engenheiros Gentil Norberto, José Vilela e Júlio Miguel de Freitas. Em 1949 a diretoria técnica mudou-se para Paulo Afonso com todos os engenheiros. Com o tempo, outros engenheiros foram incorporando o quadro: Ernani Gusmão, Othon Soares, Dermeval Rezende, Hilton Fiúza de Castro, Hermínio Keer, Hélio Gadelha de Abreu, Nédio Lopes Marques.
O Presidente Alves de Souza dividia o seu tempo entre o Rio e Paulo Afonso, onde sua presença motivava os trabalhadores, levantava os ânimos e alegrava todos os colaboradores, dos engenheiros aos operários, com os quais sempre manteve estreito contato pessoal, até sua morte em 18/12/61,em Paulo Afonso, ficando o seu coração sepultado ao pé do seu busto no Jardim Belvedere, a seu pedido. A escrivã Maria de Lourdes Martins, do Cartório de Registro Civil de Paulo Afonso, lavrou a certidão de óbito n.º 309, folha 155, livro 6, sendo Alves de Souza sepultado no Cemitério São João Batista, Botafogo, Rio de Janeiro.
Por sua vez, Marcondes Ferraz, indo residir em Paulo Afonso com sua senhora Dona Marieta Ferraz, dera um magnífico exemplo, estimulando engenheiros, médicos, advogados, técnicos e professores a fazerem o mesmo, imprimindo unidade e segurança, contribuindo para que ali se formasse uma comunidade impregnada de espírito familiar. Para exercer funções de “prefeito” do acampamento, Dr. Adozindo designou seu próprio assistente Dr. José Gomes Barbosa, depois substituído pelo Dr. Sílvio Quintela.
A seleção rigorosa dos dirigentes, a boa vontade dos dirigidos, o relacionamento espontâneo entre todos, compuseram um ambiente propício à colaboração e ao rápido progresso das obras. O trabalho era feito de coração tranqüilo e sorriso nos lábios. Enquanto o Eng.º Marchetti supervisionava as escavações dos túneis, os engenheiros Gentil Norberto, Roberto Montenegro e Reginaldo Sarcinelli eram responsáveis pelas ensecadeiras. Se o laboratório de modelo reduzido desempenhou papel tão decisivo na solução de problemas fluviais, isso se deve ao gênio do Engº André Balança. Na construção das subestações, a competência rara doEngº Paavo Nurmi de Vicenzi. Com o aval da aeronáutica fizemos um campo de aviação, onde pousavam aviões de uma empresa comercial e estacionavam aeronaves da Chesf, a princípio apenas um Beechcraft bimotor e um helicóptero Bell, cujo serviço de aviação foi entregue ao coronel-aviador Humberto Aguiar e ao piloto paulista Carlos Alberto Alves, depois vereador de Paulo Afonso.
A Diretoria Comercial se projetou devido a inteligência e retidão de Berenhauser Júnior, que se cercou de auxiliares capazes como Álvaro de Carvalho, Pimentel Tourinho e Euclides Ribeiro. Os grandes equipamentos eram descarregados nos portos de Recife e Salvador, seguindo em carretas para Paulo Afonso. Os milhares de sacos de cimento iam de trem até Arcoverde e de caminhão até a obra. Milhares de pessoas chegavam a Paulo Afonso em busca de pão e trabalho, construindo ao lado do acampamento um grupo numeroso de casebres cobertos com sacos vazios do cimento Poty usado nas obras, cujo núcleo veio a chamar-se Vila Poty. As redes de dormir eram toda a mobília. Na Poty a companhia construiu banheiros públicos, chafarizes, posto médico, e admitiu os homens necessários, que aprendiam facilmente o serviço e revesavam-se de dia e de noite. Ali estava o sertanejo forte mencionado por Euclides da Cunha. Na obra, o sotaque cantado do nordestino dava um toque original e romântico ao trabalho que faziam. Suportando o calor abrasador, labutavam sorrindo e cantando. Ordeiros e disciplinados, formavam um grupo peculiar no agregado brasileiro. Foi, sem dúvida, o magnífico contingente humano dos nordestinos, perfurando o granito e operando máquinas, que permitiu a vitória final.
Durante a construção, o episódio mais importante foi o fechamento do braço principal do rio, com ensecadeiras, treliças e pedras enrrocadas. O desfecho provocou o mais vivo interesse dos operários, funcionários e de outros nordestinos que afluíram às margens do rio. Até gente de outras cidades, na expectativa de ver o rio fechado. Fechadas as comportas, o Velho Chico estava domado pela astúcia do engenheiro brasileiro. Gritos de alegria e foguetes festivos tornaram aquele momento deveras emocionante e inesquecível, quando um entusiasmado espectador atravessou a pé o leito seco do rio, empunhando a bandeira nacional, em 19/07/54. Sessenta dias após, iniciou-se o enchimento do reservatório para provas de funcionamento da usina, que logo entrou em operação comercial, sendo inaugurada em 15/01/55 pelo Presidente João Café Filho, sucessor de Getúlio Vargas, que se suicidara quatro meses antes.
No acampamento, as modernas casas de alvenaria substituíam a caatinga. Casas para famílias, alojamentos para solteiros, casa de hóspedes, casa da diretoria, hospital, igreja, armazém, restaurante, escolas e clubes sociais. Um oásis sem similar no seio do sertão áspero. Vila Operária, Vila Alves de Souza, Bairro General Dutra. Ao lado do acampamento, a Vila Poty. Pioneiros que formavam a enorme família chesfiana, pessoas vindas dos mais diferentes rincões do país e do mundo, as profissões mais diversas, de todas as idades e religiões, com forte espírito de solidariedade inspirado na grandeza da obra que executavam. Num ambiente de camaradagem, todos amavam apaixonadamente aquele trabalho. Entre tantos outros profissionais, os professores responsáveis pela instrução dos milhares de filhos dos construtores de Paulo Afonso: Dilon Alves, Cláudio Melo, Antonieta Morais, Neide Cerqueira Lima, Ana Freitas, Glícia de Morais, Elvira Rocha, Iracy Santiago, Neide Jatobá, Zilá de Castro, Amanda Morais, Jandira Ramos, Maria Amélia. Ezilda Goiana, Zélia Bandeira, Conceição Siqueira, Eunice Macêdo, etc. No meio de todos, a figura ímpar de Alves de Souza, verdadeiro agremiador e condutor de homens, espírito impregnado de fé e entusiasmo. O Hospital Nair Alves de Souza (homenagem à esposa do presidente), que tinha a responsabilidade de atender aos chesfianos, de repente viu-se sob a premência de acudir numerosas pessoas estranhas, vindas até de outras cidades, atraídas pela fama que logo se espalhou. Não podendo enxotar aqueles carentes, os socorria gratuitamente. O criador e diretor do hospital, Dr. Lourival Burgos Muccini, hábil cirurgião, administrador metódico, tinha em sua equipe os médicos Fernando Freitas, Augusto de Sá Brito, José Elói Medeiros, Militão Cézar Oliveira, Edson Teixeira Barbosa (depois prefeito) e a farmacêutica Nilza Alves.
A construção da usina despertou a atenção do povo por toda parte, que via, pela primeira vez, realizar-se em solo nordestino empreendimento de tão extraordinário vulto. Poucas obras ganharam tanto interesse no Brasil inteiro, como as de Paulo Afonso. Os visitantes chegavam sem cessar, vindos de todas as partes, de ônibus, automóveis e aviões. Na sala dos visitantes ouviam explicações do projeto da hidrelétrica e seguiam com um guia para o imenso canteiro de obras. A comemoração do decênio da Companhia em 15/03/58 foi uma gigante festa íntima, que comemorou os resultados obtidos nos dez anos de intenso e fecundo trabalho, resultados que justificavam a euforia da comemoração. Paulo Afonso deixara de ser uma porção desértica da caatinga, tornando-se uma comunidade civilizada. Um magnífico monumento foi erigido ao lado da barragem oeste, o Parque Belvedere, em homenagem à diretoria realizadora da grande obra. Na programação da festa, missa campal no obelisco, churrasco para milhares de pessoas no Clube Operário, jantar no CPA, bailes em ambos os clubes, em cujas comemorações discursaram Dr. José Gomes Barbosa, Dr. Ebenézer Gueiros, Dr. Paulo Parísio, Dr. Waldemar de Carvalho, Dr. Carlos Berenhauser, Dr. Alves de Souza, Dr. Sílvio Quintela, Dr. Marcondes Ferraz, Dr. Hélio Gadelha, Sr. Pimentel Tourinho, Dr. Roberto Montenegro, Sr. José Francisco Oliveira Diniz, Sr. Olímpio Rodrigues dos Santos e Dr. Afrânio de Carvalho.
Paulo Afonso deixava de ser um sonho utópico, abstrato, para ser a redenção do nordeste brasileiro, realidade concreta e incontestável.
No monumento do Parque Belvedere estão gravadas para sempre as palavras do Dr. Sílvio Quintela:
“A FÉ, A TENACIDADE, O SACRIFÍCIO E A UNIÃO TORNARAM REALIDADE O ANSEIO DE VÁRIAS GERAÇÕES”.
Extraído do blog do escritor e pesquisador do cangaço: João de Sousa Lima