Por Renato Casimiro
Renato
Casimiro, Manoel Severo e Luitgarde Cavalcante Barros
Lampião esteve
na Rua São José? Tivesse sido afirmativa esta resposta aos garotos da Rua São
José, naqueles idos dos anos 50-60, bem imagino o ar de surpresa que o fato
teria causado. Nossas brincadeiras, do tipo mocinho x bandido não iam além dos
modelos trazidos pelos concorridos filmes de faroeste, vistos no Cine Avenida,
em animadas sessões dominicais, à tarde. E, por exemplo, nunca vi ninguém se
fantasiar de cangaceiro. É bem verdade que o próprio cinema demorou bastante a
utilizar o manancial de histórias do cangaço para produzir películas. Eu soube
em casa de algumas histórias de Lampião.
Meu pai me
contou algumas delas, uma das quais, por depoimento próprio, de quando Lampião
e seu bando estiveram em Juazeiro, em março de 1926. Nas narrativas, tanto de
meu pai, quanto de outros, os cangaceiros vieram para Juazeiro a chamado de
Floro Bartholomeu da Costa. Mas nisso há uma grande controvérsia, pois muitos
dizem ainda que foi a chamado de Padre Cícero. Essa, afinal, persiste ainda
hoje como uma grande chaga na biografia do patriarca, com as menções frequentes
de que protegia, aqui recebeu – dizem, várias vezes, dava guarida a sua família
que morava na cidade, e há até fotografia de todo o clã reunido na visita do
filho mais “ilustre”.
A primeira hipótese
é a mais admissível, não que queiramos livrar a responsabilidade do Patriarca,
mas porque eles foram hospedados na fazenda do Floro, onde hoje está instalado
o Orfanato Jesus, Maria, José, no bairro Santa Tereza. Por questões de
segurança, aí, sim, entra em cena o Padre Cícero que os teria remetido para a
hospedaria do Palácio das Águias, o sobradinho do poeta João Mendes de
Oliveira, na Rua Boa Vista. Esse imóvel eu o visitei há muitos anos atrás, pois
pertencia a pessoas a nós aparentada, dos Soares, de Alagoas.
Clássica foto
da família Ferreira em Juazeiro, março de 1926
Hoje
completamente descaracterizado, o sobradinho perdeu o charme que havia, dos
tempos do poeta João Mendes. Para aquele Juazeiro dos anos 20, isto era o
“arisco”, uma designação que eu usei, repetindo muito, para referir aos cantos
distantes daquele núcleo mais central, em torno da Praça Padre Cícero.
Recentemente, relendo alguma coisa sobre Lampião, e as questões relativas a sua
permanência em Juazeiro e ao malfadado capítulo de sua patente de capitão,
contidos em Frederico Bezerra Maciel – Lampião, seu tempo e seu reinado, vol.
III - A guerra de guerrilhas (fase de domínio), fui encontrar detalhes do
trânsito do bandido pela cidade. Prefiro transcrever os textos.
Sobre o dia
05.03.1926, depois de relatar como foi a visita de Padre Cícero ao sobrado de
João Mendes de Oliveira, o autor fala: “À noite, cedo, retribuiu Lampião a
visita do Padre Cícero, na sua “casa velha”, sita à Rua São José n. 126.
Ocasião em que recebeu a patente de Capitão comissionado na luta contra os
revoltosos”. E acrescenta com uma nota: “Do sobrado da rua Boa Vista, dobrou
Lampião pela rua São Paulo e por ela foi seguindo até o cruzamento com a rua
Nova (hoje Av. Dr. Floro), onde quebrou a esquerda e continuou seguindo,
atravessou a rua Grande (hoje Padre Cícero), e entrou no beco da Catarina,
saindo na rua São José, onde dobrou à direita até à “casa velha”, hoje de n.
126, onde morava o Padre.
A primeira
casa em que o Padre morou, cedida por José Francisco Gonçalves, ficava onde
hoje é o n. 130 da rua Padre Cícero. A “velha casa” é hoje abrigo de velhos e
velhas dirigido pelas irmãs de Santa Teresa e guarda piedosas relíquias do
Padre, onde viveu durante 28 anos. Depois mudou-se ele dessa casa apertada para
a espaçosa “casa nova”, construída mais adiante um pouco, pela beata Mocinha e
por Floro, na mesma rua n. 242, onde morou e hoje é o Museu do Padre Cícero. ” O
autor até ilustra sua obra incluindo o trajeto de Lampião e bando, usando um
mapa mais recente da cidade de Juazeiro do Norte. Mas, comete imprecisões, pois
coloca a “nova casa” do Padre Cícero (Museu), na rua Grande, em frente a
Matriz. E a “velha casa” na rua São José, esquina com Cruzeiro.
Em seu livro,
A Derradeira Gesta – Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão, a profa.
Luitgarde Oliveira Cavalcante Barros, transcreve uma entrevista que teve com
meu tio José Gonçalves Casimiro, irmão de meu pai, confirmando o fato, de certa
forma, nos seguintes termos: “Quando era dez horas da noite Lampião ia
conferenciar com Padre Cícero, que ficava aconselhando ele a sair daquela
vida.” E a única maneira de estar com o Padre Cícero era mesmo ir até sua
“velha casa”, já que havia tido o primeiro contato no sobradinho de João
Mendes. Em seu relato, minucioso, tio José dá detalhes da permanência de
Lampião e as ações de Dr. Floro para trazer o pesado armamento que seria
entregue aos cangaceiros e ao batalhão patriótico que enfrentaria a Coluna
Prestes, nas cercanias de Campos Sales.
Meu avô,
Antonio Alves Casimiro, Tonhero, dispondo de um ônibus e um caminhão,
transportou armas e pessoal, porque foi contratado por Floro para tal. Floro,
antes de ter viajado para o Rio de Janeiro, para o tratamento de saúde –
terminaria falecendo, teria dito ao meu avô, por conhecimento da família: “Seu
Tonhero, eu só confio aqui no senhor para passar pelo seu punho todo o
material". Meu avô prestou esse serviço a Floro e o pagamento só foi feito
após a sua morte, conforme está na execução do testamento do deputado.
Ainda, segundo
Maciel, Lampião e seu bando estiveram na rua São José, de passagem, no dia
07.03.1926, logo depois da missa das nove, celebrada pelo Padre Esmeraldo, e
assistida por eles, seguindo para uma visita ao Horto. (Estranho essa afirmação
de Maciel, pois Padre Esmeraldo – Pe. Pedro Esmeraldo da Silva Gonçalves, o
primeiro vigário de Juazeiro, já havia deixado a cidade em 1921, indo para
Pelotas no Rio Grande do Sul, ficando ali a serviço da Diocese, onde o titular
era D. Melo, de família cratense).
Floro
Bartolomeu à direita na foto
Tomaram o
itinerário da rua Padre Cícero, entraram na rua do Cruzeiro (esquina de Dina e
Doroteu Sobreira), passaram no cruzamento com a rua São José e foram na direção
do Salgadinho, até a serra do Catolé. Num daqueles dias, em março de 1926, meu
pai tinha pouco mais de 11 anos e foi com outros garotos da rua da Matriz, onde
morava sua família, para conhecer, seis quadras adiante, pela rua São Paulo, o
bando de Lampião. Ele me contava que a meninada ficava embaixo, enquanto o
grupo estava no pavimento superior, gritando para que eles aparecessem. De vez
em quando, um deles jogava moedas para adultos e crianças que estavam ansiosos
pela aparição, na porta do Palácio das Águias.
Numa destas,
meu pai teve sorte e conseguiu apanhar um patacão. Anos mais tarde, a revelação
destes fatos lhe trazia um brilho nos olhos e uma emoção que se traduzia com o
entusiasmo que seu relato continha. O patacão ficou em seus guardados até que a
família retornou à Paraíba, para a fazenda Carnaúba, no município de Sousa.
Depois, o patacão se perdeu nos espaços das mudanças e no tempo da criança que
ficou para trás. E eu ouvi meu pai me dizer muitas vezes da tristeza de ter
perdido esse patacão. Mas, as histórias, como estas e tantas outras de
cangaceiros, se perpetuaram com sua memória viva, em narrativas que nos enchiam
de encanto, noite a dentro.
Renato
Casimiro
Pesquisador ,
Juazeiro do Norte, CE
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