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sábado, 3 de novembro de 2018

O REINO ENCANTADO: CRÔNICA SEBASTIANISTA


Por Francisco Pereira Lima

Um excelente livro "O Reino Encantado:Crônica Sebastianista"de Tristão de Alencar Araripe Júnior. A primeira edição é de 1878. Com estudo e organização da Professora Dra. Débora Cavalcantes de Moura.

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O SERTÃO E A MAGIA DA BOCA DA NOITE

*Rangel Alves da Costa

Neste momento estou em Poço Redondo, no sertão sergipano. Aqui, sem qualquer dúvida, o retrato mais expressivo do ser e do viver sertanejo. Mas não estou a passeio nem sou visitante ocasional, pois nasci aqui e até os onze anos por aqui permaneci como um calango na sua terra. Mas não abdiquei do berço de nascimento. Todos os finais de semana eu risco no seu chão como um alazão que chega afoito por mais viver.
É momento de entardecer sertanejo. Já é boca da noite, como se diz por aqui. E é na boca da noite que as cozinhas espalham os aromas de cuscuz, de tripa de porco, de toucinho, de carne seca, de ovos de capoeira, de café torrado ou empacotado. A mesma logo será posta, o menino mastigará o seu pão, a dona de casa se dará por satisfeita se a comida disponível deu ao menos para enganar a fome. Depois disso a noite cai de vez, a lua se faz maior e mais brilhosa, os noturnos se perfazem na singeleza sertaneja.
Sou conhecedor e admirador de tudo isso. Contudo, mesmo sentido perto de mim todo esse encantamento da chegada da boca da noite, algo me leva ainda mais longe ou mesmo pelos arredores de onde estou. Logo ali já é mato, já é a pequena propriedade, já é o casebre, já o sertão em seu estado mais natural. E fico imaginando daqui a magia que é a chegada do anoitecer naquelas localidades mais distantes e onde a noite praticamente termina logo após o noturno café.
Talvez por que a vida dos sertanejos das regiões mais afastadas seja mais cansativa pelos labores cotidianos debaixo do sol, a verdade é que depois da janta já é chegada a hora de fechar as portas. E nos tempos idos nenhuma porta era avistada aberta depois das sete da noite. Quando muito, apenas alguns amigos em proseado numa malhada ou noutra, uma mulher debulhando milho ou alguém dedilhando uma saudosa viola.


Atualmente, mesmo com as televisões já estando presente mesmo na maioria dos casebres e casinhas de cipó e barro, somente os mais jovens se demoram mais vendo novelas. O autêntico sertanejo não. Avista, quando muito, o noticiário e já se dá por satisfeito. Depois vai até o lado de fora acender seu cigarrinho de palha, avistar a lua grande, meditar sobre a vida e sobre o mundo ao redor, tentar avistar nuvem de chuva, mas nada disso por muito tempo. Não demora muito e já estará se recolhendo para o adormecimento dos justos. Ora, antes mesmo de o galo cantar já estará novamente em pé e pronto pra luta.
Nos tempos dos candeeiros – e sem geladeira, televisão, eletrodomésticos – a singeleza da vida sertaneja era ainda maior. Muitas vezes sem vizinhos por perto e com poucas palavras para serem partilhadas entre os da casa, a noite fechava mesmo após a última xícara de café. Quem passasse pelos arredores só avistava, quando muito, a luzinha fraca e amarelada dos candeeiros e lamparinas pelas frestas da janela. E um pouco mais tarde, como economia de gás, até mesmo as chamas eram apagadas. E o silêncio e a escuridão sertaneja se abraçavam em terna e afetiva comunhão.
Lá fora, apenas um ou outro barulho fazendo barulho, vaga-lumes passeando pelos arredores, açoites de vento trazendo folhagens. Uma coruja pia, um grilo faz seu contínuo canto. Os sonhos navegam. Os sonhos aportam e singram no mundo-sertão de secura e de sol afoito.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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QUEM SABE FAZ AO VIVO

As Verdades de Angico 

(*) Por: Leandro Cardoso Fernandes 

Pra começar bem a semana, mais um grande artigo do confrade Leandro Fernandes(Foto)

Respectivo texto de uma palestra proferida com garra e maestria por ele no 'Cariri Cangaço 2009' e agora gentilmente enviada como "Gás" para o Lampião Aceso e compartilhada com vocês. 


Siiiiiim! Na próxima semana vamos conhecer a vida, andanças, obras, opinião e as atuais pesquisas de Leandro Fernandes em uma super entrevista, Aguardem!



Escrever sobre o combate do Angico traz uma sensação ambígua: um certo receio por estar pisando em solo instável, recheado de controvérsias e versões discrepantes; e, por outro lado, um destemor confiante por estar devidamente fundamentado para questionar e apontar respostas para alguns dos pontos obscuros.

O que vai exposto a seguir é um exercício de reflexão sobre o dia mais intrigante da historiografia do cangaço, sem pretensões a resolver todos os mistérios do Angico. O epílogo de Lampião sempre foi um palco de vardades mentirosas e mentiras verdadeiras, parafraseando o expert Alcino Alves Costa, que colocou boa parte do seu trabalho em apontar os fatos inquietantes daquele amanhecer. Os parágrafos enfeixados a seguir são uma tentativa de contemplar o que há de mais claro e seguro para responder a dois questionamentos apenas, dentre os muitos que se nos apresentam em relação a este episódio.

Vamos lá, então.Precisamos, inicialmente, situar o ambiente onde se desenrolou o fatídico combate.

Lampião, já beirando os quarenta anos, desde meados de 1937 que não brigava. Seu último combate digno de nota foi uma “botada” que Zé de Rufina, lhe fez na Lagoa do Domingos João, arredores de Canindé do São Francisco (SE). Então, o Lampião que encontramos no Angico é um Virgulino cansado, fugidio e sem interesses em confrontos com tropas volantes. Pouco tempo antes, Maria Bonita estivera em Propriá, incógnita, para investigar possíveis “escarros com sangue”. Ela própria, na véspera do combate, confidenciara à Cila que gostaria de abandonar aquela vida, chegando, inclusive, a conversarem sobre o que aconteceria caso fossem apanhadas por volantes. O grupo, cada vez mais, parecia menos aguerrido.

Candeeiro, em entrevista concedida ao documentário “Candeeiro” de Aderbal Nogueira, revela que Lampião, antes de atravessar o São Francisco, disse a seus comandados que estava com vontade de fazer uma ‘longa viagem’ para Minas Gerais e que, quem quisesse ir junto, seria bem vindo:  
“Tô com vontade de ir pra Minas. Por que se vai pra Sergipe leva bala; pra Bahia, leva bala; pra Pernambuco, bala. Aqui não dá mais pra viver.”
Tudo sinalizava para uma guinada na vida do Rei do Cangaço: ou abandonaria aquela vida para viver em outras plagas, com identidade falsa; ou apenas repetiria o que havia feito em 1928, quando, atravessando para a Bahia, renovou o palco do cangaço. Aqui chegamos ao primeiro questionamento:
Lampião realmente morreu no Angico?
Teria ele abandonado o palco de lutas no sertão, colocado um substituto no seu lugar e rumado para Minas?
Antes de analisarmos os fatos, devemos recordar que há uma certa dificuldade geral em se aceitar “pacificamente” a morte de um herói ou de um mito. Desde os tempos de Dom Sebastião, rei de Portugal, passando por Elvis Presley e agora, mais recentemente, Michael Jackson, que as pessoas tentam se convencer de um possível “milagre” para evitar o fim trágico, a morte de seus ídolos. Com Lampião não foi diferente. O grande chefe de cangaço sempre despertou sentimentos contraditórios, mesmo em seus perseguidores, que colocavam nele a pecha de bandido, mas o admiravam como inimigo valente, destemido e inteligente.

Então, surgem afirmações desse tipo: - o grande estrategista que era Lampião nunca se deixaria apanhar num cerco como o que foi feito em Angico! Entretanto, quem faz esse tipo de afirmação não coloca o risco real da vida; esquece que grandes bandidos, como Jesse James, Billy the Kid e outros foram mortos de maneira semelhante, às vezes sem qualquer esboço de reação. É a vida real, livre dos subterfúgios de nossa vontade romanceada.


Recentemente veio à lume o livro de José Geraldo Aguiar, “Lampião, o invencível – Duas Vidas e Duas Mortes”, afirmando que Lampião teria escapado do cerco de Angico e morrido em Minas Gerais na década de noventa, com identidade trocada (na verdade, várias trocas de nomes).

Ao analisarmos o que está posto no livro supracitado, verifica-se de imediato a falta de embasamento, seja documental, seja por depoimentos de pessoas que conheceram Lampião, para que se possa dar crédito a tal teoria. As entrevistas enfeixadas no livro são de pessoas que tiveram contato com o pretenso Lampião lá em Minas Gerais. Não há qualquer depoimento de quem o conheceu na época do cangaço. O Sr. João Teixeira Lima (o dito Lampião mineiro) poderia muito bem, de maneira muito cômoda, chamar para si a identidade de Lampião, quem sabe buscando intimidar as pessoas em sua volta, mantendo uma atmosfera permanente de mistério em torno de si próprio.

A comprovação de veracidade do conteúdo exposto por José Geraldo Aguiar baseia-se basicamente no próprio depoimento do candidato a Lampião, e em exame comparativo de fotos, que sequer levou em conta a ausência do leucoma característico do olho direito do Rei do Cangaço, no Sr. João Teixeira Lima. Chama a atenção também a gritante diferença entre a personalidade do “Lampião de Buritis” e a do verdadeiro Virgulino Ferreira. O primeiro, um sociopata, de difícil convívio, sem amizades, que quando se via em dificuldades, para conseguir o que desejava, vociferava que era Lampião ou então bradava “você sabe com quem está falando?”.

O verdadeiro Lampião tinha personalidade diametralmente oposta: era cordial, calculista, profícuo em fazer amizades (inclusive com deputados, interventores e autoridades), não demonstrando qualquer problema de relacionamento. Tanto isso é verdade que construiu enorme e sólida rede de coiteiros e amigos em vários estados nordestinos, além de atrair para as fileiras do cangaço centenas de homens e mulheres.

José Geraldo Aguiar, no seu livro, diz que o cangaceiro Zé do Sapo morreu como substituto do Rei do Cangaço, no Angico. Afirma também que os soldados teriam jurado e cumprido, sob pena de morte, não ‘abrir o bico’ sobre a “farsa” encenada na madrugada de 28 de julho de 1938. Ora, basta uma análise superficial dos fatos para perceber que estas ilações estão edificadas sobre pés de barro.
Quem foi o tal de Zé do Sapo?
Alguém o conheceu?
A que subgrupo pertenceu?
Qual o seu nome verdadeiro?
Impossível obter resposta para estas questões, uma vez que são frutos da invenção de um personagem imaginário – à semelhança do Paturi do pesquisador Frederico Bezerra Maciel – para preencher lacunas de uma tese insustentável. Quanto ao cumprimento do ‘juramento’ dos soldados, sob pena de morte, eu pergunto: como conseguir esse intento, apartir de soldados brutos de 3 volantes (Bezerra, Ferreira de Melo e Aniceto), que não conseguiam sequer obedecer à hierarquia? Lembrem-se que Antonio Jacó desobedeceu, à vista de todos, as ordens de João Bezerra quanto a devolver o produto do saque que fizera ao cadáver do cangaceiro Luís Pedro.

Vale ressaltar que nos depoimentos de Zé Sereno, Cila e Candeeiro, Lampião acordara cedo e rezara com o bando (aqueles que quiseram) o Ofício de Nossa Senhora. Depois tomou café feito pelo cangaceiro Vila Nova (o único que estava devidamente equipado), segundo depoimento de Zé Sereno. Após o desjejum com Vila Nova, Lampião ordenou que Amoroso fosse buscar água para o café dos outros, que ainda curtiam o friozinho daquela manhã (sob as cobertas), conforme depoimento de Cila e Candeeiro. O tiroteio irrompeu sobre Amoroso, que, por milagre, pelo medo e embriaguês dos soldados, escapou ileso. Neste momento, Lampião conversava com Zé Sereno e Luís Pedro. Sereno teria dito: “não falei que a gente brigava hoje?”.

Com relação ao reconhecimento do cadáver do Rei do Cangaço, cito aqui, rapidamente, Joaquim Góis, que reconheceu a lesão cicatricial de seu tornozelo direito; Pedro de Cândido, que além de reconhecer a cabeça do Rei e da Rainha do Cangaço, identificou os corpos decapitados para curiosos e jornalistas; e Durval Rodrigues Rosa, que afirmou textualmente “ainda hoje é ‘serviço’ fazer o povo acreditar que foi mesmo
Lampião que morreu naquele dia. (...) Eu tinha visto ele nos dias anteriores e poderia reconhecer aquele rosto em qualquer foto, quanto mais assim de perto, como eu vi.”
Após esta análise concluímos que: Lampião morreu realmente na madrugada de 28 de julho de 1938, na margem sergipana do rio de São Francisco, em Angico.

Passemos ao segundo questionamento.
Qual foi a causa da morte? Veneno? Bala? Outra causa?
Antes de analisarmos os fatos, vale a pena explicar que esta controvésia sobre um possível envenenamento dos cangaceiros ganhou terreno a partir de declarações de Manoel Neto a um jornal pernambucano, sugerindo que os cangaceiros teriam sido envenenados por um coiteiro (cujo nome não cita). Esta e outras declarações veiculadas na imprensa pernambucana foram rebatidas por João Bezerra e por Francisco Ferreira de Melo, creditando-as ao despeito e à tentativa de ofuscar o brilho do feito.

Mais munição para esta controvérsia foi a débil reação do bando no combate em Angico, que também suscitou especulações. Outro reforço à tese está na propalada mortandade de urubus, que, ainda hoje, não foi confirmada. Essa última apareceu em uma declaração de Wandenkolk Wanderley, à imprensa, afirmando que vira vários urubus mortos, contradizendo o depoimento que dera mais de 30 anos antes e que, curiosamente, não apresentava a mortandande dessas aves. Já o escritor Joaquim Góis disse que, ao chegar em Angico, logo após o combate, avistou “muito urubu alegre naquele dia”.

  Wandenkolk participou de comitiva, que esteve em Angico, após o massacre, Em plena efervescência, para o sepultamento das cabeças dos cangaceiros, do Nina Rodrigues, em 1959, ele apareceu no Diário de Pernambuco de 26 de abril, daquele ano, defendendo sua tese, o que suscitou na defesa de João Bezerra, no mesmo periódico.
Acervo Geziel Moura

Uma coisa é certa: se realmente houve a tão propalada mortandade de urubus, a quantidade de veneno ingerida pelos cangaceiros teria sido incrivelmente grande. Outro detalhe importante desta história é que, por causa da fedentina dos corpos, despejaram sobre os mesmos cal e creolina, o que poderia ter causado a morte de algum urubu, por lesão aguda da mucosas digestivas destas aves.
Vamos em frente.

Os Cães

Outro reforço para a tese da farsa e do veneno é que os cachorros não deram o alarme, não denunciando os soldados, que seriam “estranhos”. Mas, mesmo após uma simples análise, encontramos vários motivos para que os cachorros não tivessem se manifestado.

Vejamos.

Em primeiro lugar, nos reportaremos ao perfil dos cães. Candeeiro, em entrevista no vídeo de Aderbal Nogueira, ao responder os questionamentos de Paulo Gastão, o entrevistador, é taxativo em dizer que Guarani, o cachorro de Lampião, era quieto e não latia, apenas “saía atrás da gente” – SIC. Isso nos força a refletir sobre a maneira de ser, a “personalidade” do cão, provavelmente sinalizando que os cães eram de companhia e não feras nervosas que latiam à aproximação de quem quer que fosse. Se esse fosse o caso, os cangaceiros ficariam expostos, pois cachorro latindo no meio da caatinga é o pior que poderia acontecer ao grupo, uma vez que denunciaria sua localização.

Além do mais, como a madrugada fora de chuvisco e frio, muito provavelmente os cães estavam abrigados, ou sob os arbustos ou junto dos donos, sob as tordas. A própria disposição dos grupos naquele leito seco de pedras, dificultaria enormemente o discernimentos dos cães quanto a invasores, pois é sabido que naqueles dias juntaram-se ao bando de Lampião os subgrupos de Zé Sereno, Luís Pedro, o sobrinho de Lampião, José, e os coiteiros Manoel Félix, Pedro de Cândido e Durval. Ou seja: TODOS ESTRANHOS aos cachorros! E ainda faço outro questionamento: como os cães conseguiriam distinguir um soldado de um cangaceiro, uma vez que se vestiam de maneira semelhante, utilizando, inclusive perfumes variados, que confundem o faro canino?

Vamos mais adiante. Ainda desfiando o possível envenenamento de Lampião, eu me questiono: a que horas o Rei do Cangaço teria ingerido o veneno?

Balão, em famosa entrevista, afirma que foram dormir por volta das 22h. Supondo que Lampião tenha jantado antes de dormir - no caso de envenenamento –, deveria ter ingerido algo tóxico nessa ocasião e, portanto, morrido durante a madrugada. No entanto, deparamo-nos com o Capitão Virgulino rezando o Ofício de Nossa Senhora logo cedo (depoimentos de Cila, Candeeiro, Zé Sereno e Balão). Cila, com preguiça, não havia se levantado para fazer a oração. Já Balão, após a reza, voltou a deitar-se, pois ainda era muito cedo e fazia frio. Lampião tomou o café feito pelo cangaceiro Vila Nova e, conversando com Luís Pedro e Sereno, ordena que Amoroso vá buscar água para o café dos outros, ocasião em que o tiroteio é deflagrado.

Aí, então, eu volto a perguntar: a que horas Lampião foi envenenado? Após o “jantar” da noite anterior, a “próxima” provável refeição do Rei do Cangaço, onde poderia ter ingerido algum veneno, seria o café feito e tomado com Vila Nova. No entanto, este cangaceiro não morreu, nem de veneno, nem de tiro, pois o reencontramos por ocasião das entregas, bem de saúde, alguns meses depois.

Ao analisarmos os principais venenos que poderiam ter sido utilizados contra os cangaceiros, e o quadro clínico decorrente de sua ação no organismo, é que realmente temos a certeza de que os cangaceiros no Angico não foram envenenados.

Estricnina: é um alcalóide extremamente tóxico, e uma das substâncias mais amargas que existem; seu gosto é percebido em concentrações da ordem de uma parte por milhão (1ppm). O quadro clínico da intoxicação pela estricnina é bastante exuberante, incluindo pródromos de câimbras e dor; rigidez dorsal e cervical; rigidez de extremidades; agitação e ansiedade; hipertonia; convulsões (com o paciente acordado e lúcido); opistótono (espécie de contratura involuntária da musculatura paravetebral, deixando o corpo em forma de arco); “riso sardônico”; paralisia respiratória e parada cardiorrespiratória. Ao analisarmos as fotos das cabeças cortadas e dos corpos insepultos, não há qualquer evidência de posições de hipertonia ou espasmos da musculatura facial, sugerindo o “riso sardônico”, muito menos relatos do sobreviventes ou da polícia testemunhando crises convulsivas ou contrações involuntárias generalizadas, afastando a possibilidade do seu uso no episódio do Angico.


Arsênico: também conhecido como “veneno de sucessão”, em razão do seu largo uso na crônica histórica, principalmente no assassinato de reis por seus sucessores. A sua grande “vantagem” de uso seria o fato de não ter odor e parecer açúcar, facilitando a administração. Entretanto, no seu quadro de intoxicação, encontramos: arritmias cardíacas graves, neurite, nistagmo, choque circulatório, convulsões, tremores, sudorese, vômitos incoercíveis, tosse, diminuição do nível de consciência, lacrimejamento, etc.... Nada disso foi visto nos cangaceiros, nem pelos que escaparam, nem pelos volantes.

Cianureto: têm um típico sabor amargo, lembrando amêndoas. A sintomatologia da overdose inclui taquicardia, alternando com bradicardia; hipotensão arterial/choque circulatório; prurido, agitação psicomotora; dor de cabeça; cianose; acidose; nistagmo; coma, hipotermia; náuseas e vômitos incoercíveis; edema agudo pulmonar. Da mesma forma, nenhum dos sinais e sintomas expostos aqui foi visto ou relatado por cangaceiros ou policiais, desmoronando, definitivamente, a tese do envenenamento.

Como se não fosse o bastante, vale ainda lembrar que, entre os que morreram, Enedina foi alvejada na cabeça enquanto estava correndo (depoimento de Cila e Candeeiro); Mergulhão, antes de morrer, conversou com Candeeiro (depoimento de Candeeiro); Luís Pedro foi visto por cangaceiros e policiais conversando com Maria Bonita ferida; Lampião conversava com Zé Sereno e Luís Pedro quando o combate iniciou. Ou seja: dos onze que morreram, cinco possuem evidências sólidas testemunhais de que não estavam envenenados ou com sinais (ou sintomas) de envenenamento.

Vejamos as palavras de Candeeiro, em resposta ao questionamento de Paulo Gastão, no vídeo de Aderbal Nogueira:
- “...E que Lampião morreu envenenado, o que é que você acha dessa história?” – Paulo Gastão.
- “De jeito nenhum. Lá não tinha veneno, não, rapaz. Lhe juro como essa luz que nóis tamo vendo” – Candeeiro.
O Álcool

O cangaço e sua repressão eram movidos a álcool. E os efeitos sistêmicos do etanol, na concentração de até 3g/litro de sangue, podem explicar muitos dos supostos desencontros do Angico, principalmente entre os depoimentos. Alterações como perda da eficiência (os tiros perdidos sobre Amoroso), déficit de atenção e prejuízo de julgamento e controle (a quebra de hierarquia, as agressões de Ferreira de Melo a Durval), déficit de atenção, memória e amnésia alcoólica (as discrepâncias com relação à chuva, horários e companheiros presentes).

As limitações impostas pelo excesso de álcool somadas à dificuldade natural de registro das situações que acontecem perifericamente, numa situação de intenso estresse físico e emocional, podem, sem sombra de dúvida, resultar em pequenas imprecisões e distorções, principalmente no que diz respeito à sucessão dos acontecimentos.

Com relação às divergências no calor do combate, o depoimento dos cangaceiros tende a ser mais fiel, uma vez que os soldados provavelmente beberam durante a madrugada, e os cangaceiros ficaram acordados no máximo até às 23h do dia anterior. E, além do mais, a surpresa do combate, invariavelmente impõe uma sobriedade forçada aos cangaceiros, que estavam em desvantagem e tinham que sobreviver ao ataque surpresa.
  
Bala

O tiroteio ou combate do Angico pode ser rememorado em cores vivas pelos depoimentos de qualquer dos cangaceiros ou volantes sobreviventes. E a maior prova que ele foi intenso e real é o número de mortos e feridos: 12 mortos (incluindo o soldado Adrião) e os feridos: Balão, Candeeiro e João Bezerra.

O revide de Lampião aconteceu, apesar de bem abaixo do esperado para o grande estrategista do Cangaço. No vídeo já citado de Aderbal Nogueira, o entrevistador (Paulo Gastão) faz o seguinte questionamento:
“Como é que um homem com a experiência de Lampião, com esses tiros todos, não deu um tiro nesse tiroteio? - Paulo Gastão.
Deu não! Lampião tava do lado de cima. Amoroso deixou o fuzil, não pode pegar. Aí cerrou o tiroteio pro lado de Lampião” - Candeeiro.
Candeeiro, nesta excelente entrevista, afirma que ainda viu Lampião dando ordens aos cabras, quando do início do tiroteio, mas que não pôde reagir por ter tido seu fuzil danificado.
Candeeiro resume assim o início do combate: estava deitado quando ouviu um tiro seco. Sentou, achando que fosse alguém “treinando”. Ouviu outro tiro, e então já se levantou, e aí o “mundo desabou”. O tiroteio cerrou para os lados de Lampião, que, provavelmente, não teve oportunidade nem tempo para organizar o revide. Estava dado, portanto, o tiro de misericórdia no cangaço, que ainda estrebucharia até maio de 1940, o fim de Corisco.

Conclusão do segundo questionamento:
Lampião morreu vitimado por lesões provocadas por projéteis de arma de fogo, juntamente com mais dez companheiros, no calor do combate do Angico.
Estas são as verdades de Angico, analisadas à luz dos fatos, a partir de depoimentos de sobreviventes e sob a ótica da ciência. A verdade absoluta e imutável nunca será encontrada, pois um mesmo fato, quando observado por diferentes pessoas, resulta em diferentes interpretações. Aí está a principal fonte dos “mistérios” do Angico. O desafio é conseguir o melhor “pente fino” para filtrar toda essa enxurrada de informações, e ter como resultante a evidência mais próxima da verdade, como menor margem de erro, e sairmos desse lodaçal de especulações sensacionalistas que, quando não submetidas à inteligência, além de não levar a nenhum lugar, só nos impõe tropeços e escorregões, como, por exemplo, a inconsistente teoria do Lampião de Buritis.

Não poderia deixar de homenagear os comandantes João Bezerra da Silva e Francisco Ferreira de Melo, os verdadeiros heróis do Angico. Os dois agiram em tão perfeita sintonia que, mesmo diante dos vários empecilhos encontrados (a recusa inicial de Pedro, o início do tiroteio sem que o cerco estivesse fechado...) tiveram sucesso e deram cabo de Lampião, Maria e mais nove cangaceiros. As luzes de Bezerra e Ferreira de Melo ofuscaram largamente a genialidade militar de Lampião, às custas da surpresa (arma que sempre estivera a favor do cangaceiro) e da inteligência militar bem aplicada.

Antes de encerrar, gostaria de enfatizar que esta discussão sobre Angico somente é possível devido à coragem e determinação de dois grandes desbravadores: Antônio Amaury Corrêa de Araújo, que foi quem primeiro vislumbrou como pesquisador os acontecimentos daquela madrugada, e os colocou em ordem, presenteando-nos com uma obra fundamental sobre o assunto; e Alcino Alves Costa, que, inquieto e questionador, vem nos exortando a reflexões como estas, sobre o que parece ser a verdade.

Eles não comungam da célebre máxima exposta no filme “O Homem que Matou o Facínora”, de John Ford, onde o jornalista, ao saber que a verdade dos fatos é bem menos ‘heróica’ do que a lenda, diz:  
Quando a lenda se tornar fato, imprima-se a lenda”.
Alcino e Amaury sempre preferiram os fatos. Parabéns a eles.Para encerrar, deixo um pensamento de Epictetus, que, na sua essência, nos exorta a não apenar ver o episódio do Angico, mas enxergá-lo com bom senso e honestidade.  
“As aparências para a mente são de quatro tipos: as coisas ou são o que parecem ser; ou não são, nem parecem ser; ou são e não parecem ser; ou não são, mas parecem ser. Posicionar-se corretamente frente a todos esses casos é a tarefa do homem sábio”.

Referências:
1) Aguiar, J. G. “Lampião, o invencível – Duas Mortes e Duas Vidas”. Thesaurus editora. 2009.
2) Nogueira, Aderbal. Vídeo “Candeeiro”. 2006.
3) Leikin, B et all. “Poisoning & Toxicology Compendium”. 1998.
4) Dantas, S. A. S. “Lampião – Entre a Espada e a Lei”. Editora Cartgraf. 2008.
5) Araújo, A. A. C. “Entrevistas com Balão, Zé Sereno e Cila”. 1971-73.
6) Fernandes, L. C. “Entrevista com Cila”. São Paulo, 2003.

FOTOS E FATOS:



 1) A Cabeça do Rei do cangaço, com leucoma e provavelmente pedações da massa encefálica nos cabelos. É Lampião, incontestavelmente.

  2) O verdadeiro Lampião, à esquerda. O pretenso Lampião de Buritis, à direita. Notar o formato diferente do queixo. Foto do livro Lampião – Entre a Espada e a Lei” do Pesquisador e escritor potiguar Sérgio Augusto de Souza Dantas.


*Leandro Cardoso Fernandes: É médico (Universidade de Pernambuco – 1997), especialista em Cardiologia e Ecocardiografia pela Escola Paulista de Medicina (2005), autor do livro “Lampião: A Medicina e o Cangaço” (em parceria com Antônio Amaury Corrêa de Araújo); autor do cordel: “Sinhô Pereira: O Homem que Chefiou Lampião”Contato: leandrocfernandes@globo.com 

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GUERRA DE PAU DE COLHER

Ocorrida entre os municípios de Casa Nova (BA) e São Raimundo Nonato (PI) 1937-1938


Mar de sangue no sertão 

Documentos do Arquivo Histórico de Pernambuco revelam que a ditadura Vargas mobilizou o Exército e policiais de quatro Estados para massacrar mil sertanejos comandados por Quinzeiro, líder messiânico do arraial de Pau de Colher (BA). A ofensiva rendeu a mais sangrenta chacina do Estado Novo e uma das maiores violações de direitos humanos por forças legais do Brasil no século 20. As crianças sobreviventes foram entregues a famílias abastadas de Salvador.


Testemunhas da ofensiva lançada em dezembro de 1937 contam que as mulheres do arraial corriam em direção aos canos dos fuzis dos soldados na tentativa de impedir com lençóis e anáguas a visão dos atiradores, que disparavam com as armas um pouco inclinadas. Era para não acertar as crianças, mas, em meio ao fogo cruzado, ninguém foi poupado.

Horas depois do tiroteio, sob a fumaceira dos tiros que cobria a caatinga, o pistoleiro Norberto Pereira, guia da polícia, retirou dos braços de uma mulher ensanguentada a menina Ana Rita Pereira Neta da Silva, de 3 anos. A mãe da criança morreu. O pai, José Rodrigues de Souza, o Zé Caboclo, foi preso e torturado.



A menina não entrou em uma das “carroças salvadoras” que levaram os órfãos da guerra para o porto de Casa Nova, na divisa com o Piauí. Dali, embarcariam de vapor para Juazeiro e depois um trem até Salvador – onde seriam entregues a famílias abastadas como empregados domésticos e, em muitos casos, escravos. A sobrevivente de Pau de Colher foi escondida por Norberto para não ser levada.

Hoje com 76 anos, Ana Rita vive num sítio em Riacho do Meio, no sopé da Serra Vermelha, no semiárido piauiense. Para se chegar até lá, a pouco mais de 100 quilômetros do município de São Raimundo Nonato, é preciso enfrentar uma estrada de terra quase intransitável. É o caminho que liga a civilização ao remoto lugar, isolado pela serra tomada de angicos e canafístulas. Ali percebe-se uma diferença de fuso histórico. O sertão de hoje está distante da realidade nos grandes centros e parece acordar e dormir num tempo não muito distante do da época do massacre de Pau de Colher. Faltam energia elétrica, escolas, saneamento básico, água encanada, serviço de carteiros.

O Estado contou com a ajuda do pesquisador Marcos Damasceno, 28 anos, que escreve livros sobre o sertão piauiense. Na companhia dele, a reportagem esteve em programas de rádio de São Raimundo Nonato. Radialistas informaram aos ouvintes sobre a presença da equipe e pediram informações para localizar testemunhas da revolta que vivem na vasta região que abrange partes do Piauí, da Bahia e de Pernambuco. Foi assim que se chegou a Ana Rita.

Rodeada de filhos, netos e bisnetos, a sertaneja de olhos castanhos e cabelos compridos lembra de Norberto, o pistoleiro que a salvou, um “matador” que andava com bornal de bala pendurado no peito. Da mãe, Maria Inácia Pereira, ouviu dizer que era “bonita”, “fortona”, “branca e de olhos azuis”.

“Pelejei nestes anos todos para me lembrar da minha mãe. Não consegui. Dizem que quebraram as pernas dela. O Norberto entrou no arraial para ver quem estava vivo. Ele me encontrou no fogo”, conta. “Mamãe ainda estava viva; pediu um pouco d”água e que me tirassem dali”, completa. “A polícia terminou de matar quem ficou vivo lá.”

Os pais de Ana Rita trabalhavam numa fazenda de gado quando souberam da formação de um arraial por Joaquim Bezerra, o Quinzeiro, um líder religioso que vinha de Casa Nova. “A mãe mais meu pai foram para lá, se fanatizaram. Eles me levaram”, diz. “Quem foi, morreu; mas meu pai escapou e passou seis meses preso em Salvador. Morreu em 1979. Depois da guerra, fui para São José, morar com a madrinha Nenzinha.



  
Numa das trincheiras de Pau de Colher estavam fazendeiros piauienses e baianos, a Igreja Católica, o governo de Getúlio Vargas, os interventores da Bahia, do Piauí e de Pernambuco. Na outra, meia dúzia de religiosos primitivos e pequenos agricultores armados com cacetes de marmeleiro – árvore típica da caatinga, como o arbusto pau-de-colher, que deu nome ao povoado. Os caceteiros, como os pequenos agricultores foram descritos nos relatórios oficiais, estavam agrupados em um vilarejo, uma espécie de Canudos do Estado Novo, acusados de assaltar propriedades e impedir o transporte de gado e cabras pelas estradas da região.

Um dos relatórios analisados foi escrito por Optato Gueiros, capitão da Polícia Militar de Pernambuco que chefiou, entre 19 e 21 de janeiro de 1938, um total de 97 homens da brigada pernambucana, integrante da terceira e última campanha contra os caceteiros. Ele entrou no povoado antes da hora combinada com o comando central da operação, chefiado pelo tenente-coronel Augusto Maynard Gomes, homem de confiança de Vargas que tinha sido interventor de Sergipe, de 1930 a 1935. A operação contava ainda com efetivos de batalhões do Exército em Salvador e Aracaju e das polícias da Bahia e do Piauí.


*Optato Gueiros
  
*Augusto Maynard

Resistência.

O documento comprova que a brutalidade da ditadura Vargas não se limitou à repressão de focos da classe média, organizados por partidos políticos nas grandes cidades. Por meio de sua rede de polícias estaduais, Vargas recorreu à violência para controlar focos de resistência também na área rural.

No relatório, Gueiros aponta 157 mortos no centro de Pau de Colher e 40 rebeldes atacados por uma patrulha do Piauí. Há ainda a lista de 20 mortos na fazenda do Janjão, em São Raimundo Nonato, num suposto ataque à propriedade. Um livro esgotado escrito pelo ex-prefeito de Casa Nova Raimundo Estrela, Pau de Colher, uma pequena Canudos, ajuda a compor a história. Médico dos militares durante o conflito, Estrela escreveu que 12 pessoas da fazenda de Janjão, incluindo 2 crianças, foram mortas pelos caceteiros. A origem desse ataque, ocorrido a 5 de janeiro de 1938, é uma incógnita da história do conflito.

Uma testemunha do ataque à fazenda de Janjão vive no sopé da Serra Vermelha. Floriana Gomes Ferreira, a Santa, de 84 anos, prima do fazendeiro Janjão, diz se lembrar da chegada dos caceteiros à propriedade. “Gente da fazenda chegou gritando:  

“Lá vem o pessoal dos caceteiros…” Nesse dia, Janjão tinha matado uma vaca. Os caceteiros mataram dez capangas. Tocaram fogo em tudo. Quem podia, correu. Rodei oito dias no mato, chupando água de caroá, comendo umbu”, conta. “Depois, veio a polícia atrás deles. Quando foi à noite, no alto da serra, vi o fogão. Morreu muita gente.”

Isolamento. 

Santa mora numa casa de tijolo e telha sem energia elétrica com o irmão Rubem, de 87 anos (outra testemunha do conflito), o sobrinho Leonardo, 37 anos, a mulher dele, Ana Maria, 38, e duas crianças. A família vive do plantio de milho e feijão e da aplicação de agrotóxico nas lavouras dos vizinhos. Ana Maria reclama que a escola municipal em que os dois filhos menores, Gilmara e Amilton, estudavam, a 6 quilômetros, fechou. A prefeitura de Dom Damasceno não deu explicação. Estão isolados e esquecidos pelo Estado brasileiro, como na época dos caceteiros.



Ao longo do tempo, representantes dos dois lados da guerra disseram em depoimentos que o conflito resultou na morte de mais de 400 pessoas. Até o momento, não há documentos oficiais que confirmem esse número, bastante citado em depoimentos orais colhidos pelo Estado. O palco da guerra se estendeu por um raio de 400 quilômetros quadrados, envolvendo os povoados vizinhos de São José, Proeza, Minadouro, Cachoeirinha e Olho D”Água – que pertenciam a São Raimundo Nonato, no Piauí -, e Lagoa do Alegre, São Bento e Ouricuri, distritos de Casa Nova, na Bahia.

Memória preservada. 

Depois de dois dias percorrendo estradas de chão, a equipe do Estado chega ao campo onde se localizava o arraial de Pau de Colher. O agricultor Gregório Manoel Rodrigues, 65 anos, aparece. É o guardião do território dos caceteiros. Ele e a família capinaram toda a área e colocaram plaquinhas para identificar as trincheiras, uma cova coletiva, as casas dos líderes dos caceteiros e os pontos onde chefes rebeldes mataram e foram mortos.

Quando é informado que os visitantes são de um jornal de São Paulo, Gregório se emociona. Corre para debaixo de um umbuzeiro e chora. É surpreendente encontrar no meio do nada alguém preocupado com a memória do País. “Eu sabia que alguém viria para cá contar a história do Pau de Colher. Isso foi tudo escondido, gente! Ninguém sabe disso”, diz, gritando. “Tenho fé em Deus que essa história vai ficar conhecida.”

Gregório guarda fragmentos de ossos, que diz terem sido encontrados durante a capinação, balas de fuzis, cachimbos, pedaços de cerâmica, garfos e antigas garrafas. Ele leva a equipe por uma trilha até um pé de faveira, arbusto muito comum em Canudos. Embaixo da árvore há uma cruz de aroeira. “Aqui morreu Ângelo Cabaço, um dos líderes dos caceteiros”, informa o agricultor.

Próximo à cruz, ficava a casa de José Senhorinho, outro líder e fundador do arraial. Restam apenas pedaços de telhas. Depois, Gregório leva ao local onde Senhorinho e Ângelo Cabaço foram enterrados.  

“Depois da guerra de 38, o pessoal veio aqui arrancar os ossos, que foram queimados para os dois não virarem bicho”, diz. “A coisa que eu mais queria era fazer uma estátua do Senhorinho. Ninguém sabe o que ele pensava, porque reuniu tanta gente e enfrentou a polícia. É um filho daqui. Eu queria olhar para a estátua e entender o que ele pensava”, diz. “Ninguém sabe o que Senhorinho queria.”

O juazeiro onde os caceteiros subiam para ficar mais perto do céu não existe mais. Um outro, frondoso, onde havia a feira do arraial, mais abaixo do acampamento, serve de proteção para carneiros e bodes contra o sol abrasador do meio-dia. A caatinga está verde neste mês de fevereiro. Asas brancas e juritis dão voos rasantes por cima dos xique-xiques, favelas, muçambês e umbuzeiros.

Gregório reclama que as autoridades do município de Casa Nova tentam esconder a história de Pau de Colher. O agricultor demarcou a área do antigo acampamento para evitar que algum vizinho ocupe o lugar. Ele fez questão de colocar limites no próprio sítio, onde cultiva milho e mandioca. No povoado vivem ao todo 28 famílias de sitiantes.

O filho de Gregório, Dirceu Nunes Rodrigues, 31 anos, ajuda na preservação da memória das ruínas do antigo arraial. Dirceu era vocal da banda de forró Souzinha dos Teclados, de Casa Nova. Há pouco tempo, montou o Mercadinho Pau de Colher, que atende famílias da região.

Como o pai, ele trata os líderes de Pau de Colher como heróis. “Boto fé que o Quinzeiro não era um homem à toa. Era um homem inteligente”, diz, referindo-se ao principal líder religioso de Pau de Colher. Quando o pai se afasta, Dirceu aproveita para contar que ouviu pessoas mais velhas dizerem que Quinzeiro era sedutor. “Se aparecesse uma mulher, não tinha para ninguém.”

O sertão dos caceteiros apresenta algumas mudanças sociais. O fuso histórico daqui, agora, dá mostras de que se aproxima do das cidades. As famílias deixaram de ser numerosas. Atualmente, na região, um casal tem no máximo três filhos. Desde o começo dos anos 1990, a motocicleta substituiu o jumento. O benefício do programa Bolsa-Família complementa a renda de parte das famílias, o ensino continua uma tragédia e a palavra “São Paulo” – nome da grande metrópole – não fascina tanto quanto antes. Não há mais o sonho enlouquecido de partir para o Sul. Em quase toda velha casa, agora com cisterna, há alguém que já trabalhou ou morou em São Paulo, um mundo distante, porém, já conhecido.

Por falta de hotéis e pousadas na região, a equipe do Estado pernoitou na casa de Maria Aparecida, 42 anos, filha de Ana Rita – a sobrevivente de Pau de Colher salva pelo pistoleiro Norberto de ser colocada num trem para Salvador.

A casa tem três quartos, uma sala onde os visitantes amarram as redes, uma cozinha e um banheiro. A família conseguiu entrar num programa de uma ONG e instalou uma placa de energia solar. Maria Aparecida, o marido Waldemar, 48, e três filhos menores podem assistir à televisão até as 20 horas. Depois, a energia é desligada. Waldemar é neto de João Damasceno, um dos fazendeiros que ajudaram a combater os caceteiros.

Hospitaleiros, os Rodrigues oferecem bode, cuscuz e tapioca de jantar. Na mesa, Waldemar conta que trabalhou em uma metalúrgica e em um supermercado em São Paulo nos anos 1980. Foi lá que, em 1982, votou pela primeira vez em Lula, para governador. “Depois achei que o PT não era uma boa opção. Votei no Collor de Mello e duas vezes no Fernando Henrique para presidente. Um dia resolvi dar outra chance para o Lula”, diz.

No ano passado, Waldemar pegou um financiamento de R$ 5 mil do Pronaf para comprar 20 ovelhas e fazer uma cerca. Começará a pagar em 2012, cerca de R$ 900 por ano até 2016. A família vive de criação de animais e plantio de feijão e milho. Maria Aparecida recebe R$ 145 do Bolsa-Família, que ajuda a complementar a renda.

Maria Aparecida reclama da falta de médicos. Todos os dez mil moradores de Dom Inocêncio contam com apenas um profissional, que trabalha três dias na semana. Também reclama que a escola mais próxima está na sede do município, a 26 quilômetros.

É numa moto que Waldemar leva os três filhos para a escola. As crianças passam a semana numa pequena casa da família para frequentar a escola. Emanoel Charles, 17 anos, o filho mais velho do casal, gosta de roupas coloridas, bonés e músicas estrangeiras. Tem uma conta no site de relacionamento Orkut. “Sou um descendente de caceteiros”, diz, com ironia. “Isto não é legal.”

No rastro das “carroças salvadoras”.

O Estado viajou para Salvador em busca de uma das crianças órfãs de Pau de Colher. A equipe de reportagem encontrou no bairro de Matatu, a poucos quilômetros do Pelourinho, uma das menores levadas pelos militares para a capital da Bahia. Maria da Conceição Andreza Pinto, agora uma simpática e alegre senhora de aproximadamente 78 anos – no conflito, ela perdeu os documentos -, conta os horrores da guerra no semiárido baiano com uma surpreendente riqueza de detalhes. No início do ano, ela procurou jornais e rádios da Bahia para contar sua história e tentar localizar uma irmã desaparecida desde o começo da guerra.

A chegada da equipe ao apartamento de Cristina, uma das filhas de Maria, em abril, virou momento de festa. Aqui estão três orgulhos filhos da matriarca. Silvio, Cristina e Fernando pesquisam há 20 anos a história da mãe. As netas Clara e Talyta também estão na sala. Estudante de comunicação da Universidade Federal da Bahia, Talyta pretende fazer um documentário. “Eu queria voltar no tempo para não ter deixado minha mãe passar por isso”, diz Fernando.



Filha de Pedro de Andreza, um dos líderes do movimento, e de Justina, Maria tinha sete irmãos quando a tropa de Optato Gueiros chegou ao arraial. Pelo menos cinco deles morreram no tiroteio. A avó Andreza e mãe Justina também caíram mortas. O pai foi preso. Na capital baiana, Maria serviu de escrava até o final da adolescência em casas de famílias da elite.


 Sepultura coletiva para os mortos no conflito.
ripada em www.dominocencio.com


Por Leonencio Nossa e Celso Júnior
JORNAL O ESTADO DE S. PAULO
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
19 de Dezembro de 2010.

Pesquei aqui visse Estadão On line

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*As fotos do Major Optato Gueiros e do interventor Augusto Maynard não fazem parte da matéria original foram um cortesia do nosso confrade Ivanildo Silveira para enriquecer a matéria.

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