Tânia Neumann Kaufman – Fonte – Revista Corrente nº 34, págs. 28 a 33.
Nos séculos
XVI – XVII, na história das trocas comerciais intercontinentais, o açúcar
brasileiro teve um papel fundamental na construção de um padrão cultural que
definiu não só as fronteiras geopolíticas, mas, também – ao regular os espaços
da produção, do consumo e da distribuição do produto, subordinados a leis e
restrições religiosas – criou uma cultura singular com raízes na
interculturalidade. Negros, índios, europeus de origem judaica e,
principalmente os portugueses deixaram suas marcas num mundo dominado pela
sacralidade da “salvação da alma” mesmo que mandando outras para o inferno do
fogo da punição por heresia.
Expulsão de
judeus – Fonte – https://lahistoriajudiadeandalucia.files.wordpress.com/2012/08/aenfardelar.jpg
Foi neste
quadro que os judeus ibéricos entraram no mundo do açúcar. Mesmo na
clandestinidade espalharam-se, multiplicaram-se, transformaram as terras
desprezadas pela nobreza portuguesa em campos produtivos de cana. Construíram
engenhos, fabricaram açúcar e colocaram-no na vasta rede de relações comerciais
familiares baseadas na Europa não católica. Embarcaram o “ouro branco” para os
portos mais importantes do mundo nas urcas holandesas e embarcações fabricadas
em estaleiros de judeus. Eles tinham o dinheiro para financiar desde o plantio
até a chegada à mesa do europeu e eram especialistas na tecnologia do fabrico
do açúcar.
A força da
cultura sefaradi deixou o seu legado na interação entre o mundo
judaico e o mundo da cultura local. A cultura canavieira foi um meio de
consolidação do poder colonial português nas terras brasileiras.
Paradoxalmente, foi, também, a forma de fixação dos cristãos novos e judeus que
fizeram destas terras tropicais seus novos lares. Aqui chegaram e aqui ficaram
até hoje.
Engenho de
açúcar no nordeste do Brasil Colonial.
Todavia,
diante da extensiva presença deste grupo nos engenhos espalhados na região é
justo acrescentar que foi determinante o papel daqueles personagens em toda a
cadeia produtiva da economia açucareira. Já em meados do século XVI, a costa
nordestina centralizava toda a atividade no Brasil. Pernambuco foi uma das mais
bem sucedidas de todas as capitanias, graças à política do donatário Duarte
Coelho nos processos de transferência recursos financeiros e agentes com
habilidades especializadas vindos de Portugal, de Galiza e das Canárias.
Se nos anos
iniciais a comercialização do açúcar ficou em poder dos portugueses e de alguns
investidores alemães, no princípio do século XVII a maior parte do açúcar era
transportada nas urcas holandesas, com destino aos portos do norte europeu.
Quadro do
holandês. Frans Janszoon Post (Leyden, 1612 — Haarlem, 1680) mostrando o Brasil
Holandês – Fonte – http://cultura.culturamix.com/arte/pinturas-de-frans-post
Desde 1630, os
judeus portugueses de Amsterdã espalharam-se pelo Nordeste dedicando-se,
sobretudo, aos negócios do açúcar, que, por muito tempo, foi umas das
principais riquezas daquela região. Com o fim do domínio holandês e a retomada
de Pernambuco pelos portugueses em 1654, uma nova “passagem” conduz um dos
grupos de refugiados saídos do Recife até Nova Amsterdam – mais tarde, Nova
Iorque. A razão foi a mesma: a intolerância pela qual seus ancestrais haviam
sido expulsos da Península Ibérica. Só que, desta vez, além das singularidades
do judaísmo na bagagem, o grupo levava o conceito de “cidadania”, apreendido e
aprendido no curto espaço do tempo de Maurício de Nassau como governador do
Brasil Holandês. Daqui partiram e lá ficaram, dando início. Congregação Shearit
Israel, até hoje ativa.
Novos
Personagens Emergem da Clandestinidade
É
significativo o número de engenhos que tiveram o controle de cristãos-novos e
judeus e o funcionamento disfarçado de sinagogas espalhadas pelas ruas da vila
do Recife e seus arredores. Ribemboim, em um levantamento feito em 1995 lembra
que, de preferência, as sinagogas eram erguidas nos engenhos¹. Recentemente,
achados arqueológicos, numa área da mata sul, mostraram indícios da existência
de um local de purificação espiritual (micvê) nas ruínas de uma antiga casa de
engenho.
Barco holandês
Embora os
vínculos religiosos e sócio-comunitários da população ibérica daquela época
estivessem desfeitos com a passagem dos séculos, a teia cultural mostra-se, até
hoje, resistente e unifica os sobreviventes através de novos personagens que
emergem da clandestinidade se auto-identificando como descendentes dos antigos
cristãos-novos. É possível haver uma relação com costumes e tradições de uma
cultura e de uma língua herdada dos judeus ibéricos.
No nordeste do
Brasil, eles foram gradativamente se incorporando como parte do patrimônio
material e imaterial brasileiro. O professor Marcos Albuquerque, importante
arqueólogo da Universidade Federal de Pernambuco relata que em suas viagens
pelo interior do nordeste e norte do Brasil é muito comum ver túmulos nas
margens das estradas, sem cruzes e com pedrinhas em cima, como é o costume
judaico.
Soldados
romanos carregando os despojos das guerras judaicas. A destruição de Jerusalém
aconteceu em 70 D.C., quando as legiões romanas saquearam Jerusalém e
retornaram a Roma com os despojos, daquela que era considerada a cidade mais
rica no Império Romano – Fonte – http://www.bible-history.com/archaeology/rome/arch-titus-menorah-1.html.
Há também
inúmeros relatos de pessoas que vivem no sertão mencionando, entre outros
costumes, a forma de sepultamento de origem judaica, ou seja, o falecido é
enterrado apenas envolto em mortalha sem caixão e sem símbolos (cruzes, por
exemplo). Muitas vezes, estas pessoas enfatizam que foi um desejo exposto à
família quando se percebiam próximos ao passamento.
Ainda existem
os vestígios de antigas edificações que guardam parte dessa história. A
Sinagoga Kahal Zur Israel, na antiga Rua dos Judeus no Bairro do Recife, o
engenho Camaragibe no município do mesmo nome, a casa de Branca Dias em Olinda
e tantos outros espaços físicos. O apego às tradições da kashrut (leis
dietéticas judaicas) identificadas em denúncias contra os cristãos-novos do
século XVI–XVII permaneceram, em muitos casos, de forma inconsciente nos
costumes alimentares da população em Pernambuco e em outros estados do nordeste
do Brasil.
Primeira
sinagoga das Américas, em Recife – Fonte – http://culturahebraica.blogspot.com.br/2013/01/amazonia-terra-prometida-historia-dos.html
Muitas
informações foram reveladas nas histórias contadas às autoridades religiosas da
época. Nelas, o quadro figurativo do judaísmo aparece como religião e como
cultura. Estilo de vida, competências linguísticas, crenças, hábitos
alimentares, ritos, jeitos de viver, de morar, rezar, sepultar seus mortos,
condenados como heresias pela ordem política e religiosa estabelecida
representavam a forma preservada de um ethos que garantia a
continuidade do grupo na história.
Por isso,
valorizamos os conteúdos dos registros de denúncias na obra Primeira
Visitação às Partes do Brasil. Denunciações e Confissões de
Pernambuco 1593-1595 cujos conteúdos historiam os fatos
político-religiosos que regulavam o cotidiano da América Portuguesa. Nelas
revelava-se que as práticas judaizantes eram realizadas no espaço privado do
lar, dos engenhos e da vila, onde viviam os denunciados. Esta realidade vem
sendo apreendida com técnicas da análise dos discursos dos entrevistados
escolhidos para a pesquisa cotejando-se com as denúncias inquisitoriais. Assim,
nas entrevistas realizadas com os “novos personagens” que formam uma
nova/antiga categoria de judaísmo é que é conhecida a simbolização o que compõe
a imagem, os traços, enfim, a essência cultural singular do grupo. Devemos
lembrar os elementos preservados na cadeia de comunicação entre os judeus sefardim e
a população com quem conviviam, na circunstância de não poderem ser expostos
com seus conteúdos originais. Os “não ditos” ficavam no mundo da reserva
mental, portanto fora do discurso explicito. Talvez por isso, os costumes foram
tão enfatizados pelos seus portadores gerando o que alguns estudiosos chamam de
“marranidade” ou “marranismo”.
Detalhe de
quadro de Frans Post, mostrando detalhes de um engenho – Fonte – http://www.scielo.br
Ao visitarmos
alguns engenhos ou o que deles restou temos o sentimento de “ouvir” o eco dos
passos de pessoas que ali viveram seus cotidianos e suas práticas religiosas.
Impossível não pensar na inquietação de um suceder de dias que oscilava entre a
hostilidade ou o afrouxamento da vigilância e as estratégias para preservação
do que hoje chamamos cidadania.
Estes fatos
são importantes para compreendermos a dimensão cultural das raízes judaicas
nesta parte do Brasil cuja ressonância alcança nossos dias com a emergência de
novas identidades apoiadas em antigas heranças de um judaísmo exportado
compulsoriamente da Península Ibérica para o Brasil.
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Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
http://blogdomendesemendes.blogspot.com