Olha só que
coisa mais sem pé nem cabeça. Eis que sonhei com o Padre Mário apontando em
correria, subindo num cavalo alazão de um pulo só, depois tomando rumo da Praça
da Matriz e daí enveredando pela Rua Deoclides Lucas. E umas seis ou sete casas
após, refrear o animal para gritar: Acorda Marizete!
Marizete
dormia em sono profundo, certamente cansada dos tantos anos de ofícios e passos
na sua fé. Já muitos anos atrás e ela virando a noite e descortinando a manhã
velando o Cristo nas sextas-feiras santas antigas. Enquanto a cidade adormecia,
ela e mais tantas em rezas, ladainhas e orações. Mazé de Iracema, Dona Maria
José de Zé Preto, Geovanete, Dona Peta e tantas outras vozes afinadas pela
devoção. “Sede em meu favor, Virgem soberana, livrai-me do inimigo com o vosso
valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor também, que é um só Deus em
Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém”.
Ecoa-me na
memória tanta beleza em um povo humilde. Hoje a Igreja Matriz está muito
diferente, bonita, resplendorosa, mas noutros idos era um templo pequeno, com
três portas estreitas à frente, duas de lado e um interior sem muito espaço
para os fiéis. Ainda assim já com outra feição daquela em que Padre Arthur
Passos celebrou missa na presença de Lampião e seu bando. A pedido do próprio
cangaceiro e de China do Poço, permitiu que a cabroeira adentrasse ao templo
para o ofício, mas com a condição de que as armas pesadas ficassem do lado de
fora, posicionadas no pé da parede.
Talvez por
isso mesmo, imaginando a presença dos cangaceiros diante do altar, Alcino
passava lentamente ao redor da matriz. De chinelo havaiana nos pés, mordendo a
gola da camisa, ou mesmo cantarolando baixinho uma velha canção cabocla de
Tonico e Tinoco, ele seguia absorvendo cada passo na terra que tanto amava.
Apaixonado pelo seu sertão, pela sua gente e sua história, rumava em direção ao
assento da praça e lá se punha a meditar sobre aquele mundo tão belo e tão
esquecido. E depois rabiscava sobre aquele incompreendido sertão.
Infelizmente,
sempre um incompreendido e renegado sertão. Até mesmo por parte de muitos de
seus filhos, o que é mais doloroso. O filho de hoje só quer viver o presente,
curtir, viver o imprestável de cada descartável instante. Perguntem ao jovem
pelo forró, pela sua história, pelo seu passado. Pouco ou nada sabe. Parece
ontem, mas muitos sequer recordam mais do Forró de Miltinho. E Miltinho,
fabulosa figura humana, sempre merecedor de uma grande homenagem, tudo fez para
que a tradição forrozeira de Poço Redondo não acabasse. Com sua partida, as festas
de agosto e outras festas ficaram órfãs do verdadeiro pé-de-serra, do ralabucho
e do chinelado.
As festas
antigas, aí sim, é que eram festas. Mesmo que de vez em quando Doutor Heraldo
da Serra Negra entrasse com cavalo e tudo pelos salões, nada tirava o brilho e
o prazer dos sons das sanfonas, dos zabumbas e dos triângulos. Há sempre que se
reverenciar uma gente que, com sua arte, tornou o sertão mais alegre: Zé
Aleixo, Zé Goití, Dudu do terno de linho branco, Agenor da Barra, Dida. E ainda
ouço Zelito de Pão de Açúcar, do forró de Zé Aleixo, batendo o triângulo e
cantando: Olhe eu não posso ver ninguém chorar, porque vem logo uma vontade em
mim, quem foi que disse que não chora por amor, pois os meus olhos já chegaram
ao fim...
Também ainda
ouço o carro-de-bois gemendo pelos estradões, avisto o animal esquipando pelas
veredas, ecoa-me o velho aboio e a velha toada. Mas tudo parece distante
demais. E está, pois assim quis o homem. Não temos mais Dionísio para preservar
nossas tradições de cavalhadas, não temos mais Miltinho para salvaguardar o
verdadeiro forró. Não temos mais Alcino para cantar, em prosa e verso, seu Poço
Redondo. E como faz falta esse passado onde a gente sertaneja em tudo se
reconhecia.
Nos velhos tempos do sertão nordestino, na época do cangaço, onde quase sempre a justiça estava junto aos mais fortes e destemidos, uma família seviciada poderia ter os seus membros (principalmente mulheres) marcados pelo resto da sua existência.
Dependendo das ações hediondas praticadas e diante dos rígidos códigos morais do sertão na época, se não houvesse algum membro do grupo familiar com disposição de buscar a reparação, buscar a vingança, a chaga desta família poderia ser muito pior. Consequentemente a cortina de silêncio era ainda mais forte.
Para as vítimas e seus parentes continuarem tocando a vida em meio a muita dor e sangue derramado, um remédio muito comum era total negativa em comentar fatos e tentar buscar o esquecimento.
Existiram exceções. Foram os crimes mais sanguinários e bárbaros, praticados principalmente contra famílias inteiras, ou casos onde as sevícias foram tão brutais, tão hediondas, que chamaram a atenção de toda uma comunidade e agora estão registrados em muitos materiais produzidos sobre o tema.
Outras exceções foram os raros relatos produzidos por jornalistas durante o período dos conflitos, mostrando a dor daquela gente que vivia nos rincões esquecidos e distantes do Brasil.
Aqui trago um destes.
Correspondente misterioso
Nos primeiros seis meses de 1931 o Brasil ainda sofria as consequências do golpe que havia implantado um novo regime político em outubro do ano anterior. Administrativamente muitas mudanças ocorreram na estrutura e composição dos aparatos de segurança pública pelo país, tornando-os limitados por certo período de tempo em suas ações repressoras aos cangaceiros. Isso facilitou muito a vida dos bandoleiros errantes pelo sertão nordestino, principalmente o do chefe Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Neste período este grupo atuava principalmente nos sertões baianos, onde praticavam suas rotineiras rapinagens e as atrocidades não eram incomuns. Aparentemente tantos foram os acontecimentos negativos naqueles primeiros meses de 1931, que o jornal A Noite, do Rio de Janeiro, enviou um correspondente e um fotógrafo para o cenário dos acontecimentos[1].
O interessante é que, mesmo lendo várias páginas deste periódico, estranhamente não foi divulgado o nome do jornalista que realizou este trabalho. É dito apenas o apelido do fotógrafo – João Batatinha. Provavelmente por questões de segurança o nome do correspondente não foi divulgado.
“Iriam assistir uma coisa bonita…”
Os dois enviados do periódico carioca seguiram no dia 20 de abril de 1931 pela estrada carroçável que ligava as cidades baianas de Uauá e Senhor do Bonfim, passando em vários locais que anteriormente haviam sido atacados pelo bando de cangaceiros de Lampião[2].
Um dos primeiros relatos foi conseguido no lugar São Paulo, a cerca de 40 quilômetros de Uauá. Ali Lampião buscou acertar contas com Manoel José Cardoso, conhecido como “José Pequeno”[3].
Testemunhas comentaram que primeiramente escutaram o tropel de cavalos, seguido do som de chocalhos batendo e vozes gritando palavrões. Lampião, que estava na ocasião com óculos redondos e escuros, chegou com seus homens em galope largo, cercaram sem demora o sertanejo José Pequeno e lhe indagaram se fora ele quem de outra ocasião avisou aos policiais, ou “macacos”, a localização do bando naquele setor. Independente dos rogos de inocência do homem e de sua mulher Ana Cardoso, em meia hora eles foram despidos, amarrados e colocados no lombo de um animal sem sela.
Defronte a capelinha do pequeno arruado, Lampião mandou seus homens trazerem todos que ali moravam, debaixo de cacete se fosse necessário, para verem o que ele fazia com os traidores. Logo homens, mulheres e crianças estavam reunidos diante do casal despido e montado em um pangaré. Lampião foi logo anunciando que eles “iriam assistir uma coisa bonita…”.
Ali, diante de todos, sem nenhuma cerimônia ele sangrou Manoel José Cardoso, enfiando com força seu grande punhal, até o cabo, na parte do corpo que fica entre o ombro e pescoço. Os gritos provocaram risos dos cangaceiros e choro entre os membros da pequena comuna. Segundo o correspondente, a mulher Ana Cardoso ficou louca.
Além deste espetáculo atroz, os cangaceiros mataram a tiros de pistola José Felix, que, a pedido do sangrado José Pequeno, foi a Uauá informar a polícia sobre o paradeiro de Lampião. O assassinato de Felix deixou ao desamparo mulher e larga prole de filhos. Outro que foi atacado, sendo submetido a uma série de torturas, foi o coronel João Antônio Cardoso, o mais abastardo do lugarejo[4].
Na fazenda Tapuia, por volta da meia noite do dia 8 de abril, Lampião e seus homens atacam a casa de Tibério Lucas Correa. Além de trabalhar na roça para manter mulher e uma extensa família, Tibério tinha um pequeno estabelecimento comercial para atender os viajantes, onde não faltava uma cachaça “januariazinha” (aguardente produzida em Januária-MG) e cigarros. Foi tido pelo correspondente como “Um preto muito querido de todos que trafegavam pela estrada Uauá – Senhor do Bonfim”[5].
Lampião e seus cangaceiros foram logo mandando aquele sertanejo pobre abrir seu negócio e colocar uma garrafa de cachaça, que logo foi esvaziada pelos sicários. Pediram ouro e dinheiro, mas Tibério disse que nada tinha. Nesse momento a cabroeira começou a descer dos animais e o assustado negociante empreendeu uma desabalada carreira para o meio dos matos, enquanto os cangaceiros gritavam “O desgraçado está fugindo! Mata! Mata!”. Por sorte ninguém atirou!
Quem teve de aguentar a fúria de Lampião e seus homens foi Dona Lúcia, a mulher de Tibério, que foi surrada a bofetadas, chicoteada e ameaçada. Lampião prometeu que na próxima vez que ali retornasse matava seu marido. Depois mandou seus comandados colocarem fogo na casa e só deixou a mulher e os outros familiares saírem a pedido de um dos seus homens, que possuía um espírito mais humanitário naquele momento de fúria gratuita.
Na ocasião da visita do correspondente e do fotógrafo João Batatinha, o desolado Tibério e seus familiares passavam o dia na casa calcinada e a noite dormiam no meio da caatinga, onde o pobre homem havia sido picado no rosto por uma lacraia e trazia a marca de mais este infortúnio[6].
“Montada, dinheiro e ouro”
Para o correspondente de A Noite, informações transmitidas por Martinho Malta, da fazenda Mucambo, assaltada no dia 9 de abril de 1931, informava que o grupo de Lampião tinha 15 componentes, sendo seu braço direito o cangaceiro Corisco e a maioria destes utilizavam principalmente roupas de mescla. Estavam todos armados de fuzis Mauser, vários portavam pistolas Parabellum, trazendo sempre duas ou três cartucheiras largas e cheias de munições. Além destes aparatos bélicos estavam presentes os característicos chapéus de couro ornamentados e os punhais, com alguns cangaceiros levando duas destas peças de cutelaria, algumas com até 65 centímetros no tamanho da lâmina.
Foi comentado ao correspondente de A Noite que os cangaceiros “Vivem sempre satisfeitos”. Em alguns momentos trafegam nas estradas fazendo algazarras, em outros seguem no mais completo silêncio. Fazem brincadeiras uns com os outros, descompõem-se, normalmente se excedem, mas mantém muito respeito pela figura do chefe Lampião[7].
Mas, apesar das brincadeiras entre os membros do grupo, o que o correspondente não deixou de ouvir naqueles ermos sertões foram informações de atrocidades praticadas pelos cangaceiros.
Na fazenda Pereiro (ou Pereiros) o jornalista e o fotógrafo encontram Francisco Ferreira Barbosa, conhecido como Chiquinho, também proprietário de uma bodega a beira da estrada. Este se mostrava desembaraçado e comentou abertamente os problemas e assombros causados perla presença de Lampião na região.
Narrou que eram duas da manhã do mesmo 9 de abril quando Lampião chegou. Este lhe deu boa noite secamente e foi exigindo “montada, dinheiro e ouro”. Chiquinho disse nada ter, mas Lampião falou a seus homens “Traga uma luz. Vamos ver o ouro e o dinheiro que ele está escondendo”. A mulher Alzira entregou aos celerados algumas pequenas peças de ouro, mesmo assim Lampião retirou seu punhal e passou a rasgar tudo que era de pano para encontrara algo mais.
Com o resultado negativo nas buscas os cangaceiros foram para a bodega de Chiquinho, que ficava defronte a sua casa, onde beberam muita cachaça, cerveja, quebraram louças e obrigaram o dono a tomar três xícaras de bebida.
Ainda na fazenda Pereiro atacaram as casas de João e Antônio Ferreira Barbosa, irmãos de Chiquinho, onde não deixaram de se exceder nas barbaridades. Antônio foi chicoteado no rosto impiedosamente e João foi surrado, teve a casa impiedosamente revistada e muita coisa foi quebrada.
Depois Chiquinho foi obrigado a servir de guia para os celerados. No caminho Lampião perguntou quem tinha dinheiro na região e onde ele podia encontrar uma “viúva apatacada”, uma viúva endinheirada. Logo chegam a fazenda Chumbado, onde pernoitaram e o guia improvisado volta para junto de seus familiares transidos de terror[8].
Segundo a narrativa do correspondente, outra das propriedades atacadas na região naqueles primeiros dias de abril de 1931 foi a Olho D’água, do viúvo Francisco da Costa, que estava fora e na casa estavam apenas duas crianças, a pequena Judite de nove anos e seu irmão de cinco. Esta contou que os cangaceiros mal encarados chegaram comandados por Lampião e exigiram o que ali existisse de valor. O irmão menor tentou fugir e foi detido por um cangaceiro com seu fuzil. Os cangaceiros levaram um relógio, algum ouro e uma pequena quantia em dinheiro. O correspondente encontrou as crianças aos cuidados de uma tia na cidade de Senhor do Bonfim e esta informou que Judite e o irmão estavam em “um estado nervoso de fazer dó”. O que hoje modernamente denominamos de “traumatizados”[9].
“Eu diria que ele era pai do céu, quanto mais meu!”
No dia 21 de abril vamos encontrar os dois homens do jornal A Noiteseguindo pela estrada que ligava Senhor do Bonfim a fazenda Riacho Seco[10]. Quando alcançaram o lugar Caldeirão, seguiram em demanda do sítio Vargem Seca, onde deixaram o veículo. Percorreram a pé, por quatro quilômetros, até o sítio Junco, onde o proprietário Manoel do Quinto acompanhou os visitantes por mais outros quatro quilômetros, até finalmente chegarem à fazenda Passagem.
Ali souberam que os cangaceiros se apresentaram ruidosamente por volta das nove da manhã e foram direto para a casa de Joaquim Gomes Cardoso, que possuía problemas físicos desde o nascimento, que o deixou com uma diferença no tamanho de suas pernas.
Pediram ouro e dinheiro, mas Joaquim respondeu que nada tinha “por ser um pobre aleijado”. Isso nada impediu que Lampião lhe roubasse uma sela, no que Joaquim tentou demover o chefe cangaceiro do seu intento, pois não podia andar corretamente e precisava daquele material para seus deslocamentos na região em um magro jumento. O resultado foi uma terrível saraivada de chicotadas dada por um dos cangaceiros presentes.
Para parar a tortura naquele indefeso deficiente físico, o cangaceiro que batia disse “Se quiser que eu pare tem de chamar Lampião de papai!”. O corresponde de A Noite perguntou se Joaquim disse aquilo e sua resposta foi até engraçada – “Ora, seu moço, e quem é que não chamava? Eu diria que ele era pai do céu, quanto mais meu!”[11].
Na reportagem outras quatro casas foram visitadas na propriedade Passagem, com a mesma repetição de saques e surras.
Os dois enviados do jornal refizeram todos os oito quilômetros na volta até o veículo e seguiram para Senhor do Bonfim e de lá para a propriedade Cachoeirinha, onde uma família estava ali refugiada.
Era a família de Bertoldo Cândido dos Santos, que apresentou relatos ainda mais chocantes sobre os momentos em que os cangaceiros estiveram na fazenda Passagem.
A mulher de Bertoldo, Dona Maria Martins, contou que no dia do ataque só estava em casa a sua filha Romana, conhecida como “Bizunga”. Ela reparava uma roupa e ao ver a chegada dos cangaceiros tentou correr, mas foi impedida por Lampião que lhe apontou o fuzil e intimou-a a parar.
Na mesma hora o chefe disse a dois dos seus homens “Venham ver que coisa bonitinha tem aqui”. Mandou seus comandados tomarem conta de Romana enquanto foi averiguar o que acontecia nas outras casas da fazenda Passagem. Um dos homens ainda pensou em avançar na moça, que possuía feições bastante generosas na opinião do correspondente, mas foi impedido pelo companheiro por medo da reação do chefe.
O enviado de A Noite afirma que no retorno de Lampião a casa da jovem sertaneja, aparentemente sem maiores delongas, este partiu para cima de Romana e a estuprou. Ela ainda foi ferida a punhal por tentar se defender. Não foi informado se outros cangaceiros se aproveitaram sexualmente da jovem indefesa.
O correspondente informou que a irmã de Romana havia escapado por se encontrar fora de casa, mas em sua opinião o ataque sexual a garota havia desestruturado de tal maneira a sua família, que seu pai Bertoldo estava com características de “quem estava variando”. Ou seja, ficando louco[12].
Mas este flagelo não ficou restrito apenas a Romana. O vaqueiro Manoel Cândido, ainda aparentado de Bertoldo, teve a casa invadida e a mulher igualmente estuprada pelos cangaceiros.
O material iconográfico existente nas reportagens aponta que a atuação do bando de Lampião nos sertões baianos naqueles primeiros dias de 1931, foi principalmente o ataque a pequenas e simples propriedades e lugarejos. Talvez o número reduzido de cangaceiros não trouxesse a Lampião a devida segurança para atacar locais maiores naquele período[13].
Fogueira de ódios e de vinganças
Nesta época o jornal A Noite sempre trazia notícias relacionadas aos cangaceiros e, segundo foi publicado posteriormente, a reportagem sobre aqueles três ou quatro dias da passagem do bando de Lampião nas caatingas entre as cidades baianas de Uauá e Senhor do Bonfim obteve extrema repercussão no Rio de Janeiro. Tanto que a reportagem foi bastante ampliada na revista Noite Ilustrada, com a publicação de uma grande quantidade de fotografias[14].
Não podemos deixar de comentar que por mais interessante que sejam estas reportagens produzidas em 1931, por mais fotografias apresentadas, não sabemos o quanto de veracidade realmente elas trazem. Não sabemos a história do profissional que foi aos locais e se as histórias transmitidas pelas pessoas entrevistadas relatavam a realidade dos fatos. Nem sabemos também o que ficou da tradição oral sobre estes episódios. Para dirimir dúvidas seria necessário mais pesquisas e um trabalho de campo.
Mas não foi apenas o periódico carioca que tratou do tema. O autor e pesquisador baiano Oleone Coelho Fontes, no seu ótimo livroLampião na Bahia, trás um capítulo inteiro dedicado a estes ataques em abril de 1931, inclusive fazendo referência a atuação da reportagem de A Noite entre Uauá e Senhor do Bonfim e ampliando os detalhes dos ataques[15].
Oleone Coelho Fontes comenta na página 248 do seu livro Lampião na Bahia que Maria Bonita e outras cangaceiras provavelmente entraram no bando de Lampião em fins de 1930 e início de 1931. Mas nesta série de reportagens deste correspondente, nada existe sobre mulheres no grupo de bandoleiros.
Outro ponto a ressaltar, é se existiu um possível direcionamento político com esta reportagem?
Pessoalmente eu não tenho uma resposta para este questionamento. Entretanto, faziam apenas seis meses que uma nova ordem política emanava do Palácio do Catete e o revolucionário cearense Juarez Távora tinha tanto poder nos estados nordestinos, que era conhecido como “Vice-Rei do Norte”. Consta que ele desejava muitas mudanças nas relações de poder na região e tinha o apoio do então Presidente Getúlio Vargas. O certo é que em menos de dez anos os cangaceiros seriam retirados de circulação. Mas isso não acabou com a violência do campo!
Vale ressaltar que as reportagens produzidas pelo periódico carioca praticamente nada comentavam sobre a violência praticada pelas autoridades policiais, que existia e era tão feroz quanto à praticada pelos cangaceiros. No que ajudava a sempre manter acesa a fogueira de ódios e de vinganças que notabilizou o sangrento período do cangaço no Nordeste do Brasil.
Mesmo que os artigos publicados nas edições do jornal A Noite do mês de abril de 1931 não sejam plenamente corretos, sejam imparciais e mesmo sem saber o seu direcionamento político, ao ler este trabalho produzido há 84 anos, à única certeza que fica sobre as violências deste período é que os perdedores eram sempre os mais fracos.
REFERÊNCIAS
[1]A Noite foi um jornal vespertino criado pelo jornalista niteroiense Irineu Marinho e lançado em 18 de julho de 1911 no Rio de Janeiro. Empreendedor, Irineu Marinho vislumbrou já naquela época a ideia do conglomerado de mídia, com uma ação dinâmica no jornalismo. Em 1922, sendo seu jornal acusado de cooperar com o levante dos tenentes do Forte de Copacabana (18 do Forte), passou quatro meses preso na Ilha das Cobras (baía de Guanabara), de onde saiu com a saúde abalada. Partiu para a Europa com a família em 1924, de onde voltou para fundar, em 29 de julho de 1925, O Globo – herdado por seu primogênito, Roberto Marinho, com sua morte, em 21 de agosto, aos 49 anos. Sobre o envio do correspondente e do fotógrafo, as razões do envio destes profissionais não são comentadas.Ver –http://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/_ed723_irineu_e_o_jornalismo_no_seculo_20/
[2] Mesmo aparentemente o trajeto realizado pelos enviados do jornal em 1931 ser diferente das modernas estradas asfaltadas que ligam os dois municípios baianos, segundo o jornalista, sem maiores paradas, o trajeto por eles realizado levaria cerca de doze horas. Hoje é realizado, com tranquilidade, em duas horas e meia.
[3]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 20 de abril de 1931, 2ª página (http://memoria.bn.br/).
[4]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 11 de maio de 1931, 3ª página.
[5]A cidade mineira de Januária foi um importante entreposto comercial em uma época que o Rio São Francisco permitia a navegação de grandes barcos a vapor. A aguardente de Januária passou a abastecer todo o país, sendo apreciada e elogiada pelos maiores conhecedores, tornando a cidade um sinônimo de cachaça de qualidade produzida no Brasil. O primeiro engarrafador de aguardente em Januária, segundo informações locais, foi o Sr. Abílio Magalhães em 1926 com a marca “Januária Crystal”. Em 1928 o Sr. Claudionor Carneiro lançou a marca “Januária”, que posteriormente teria seu nome alterado para “Claudionor”. Outras marcas surgiram na cidade, muitas das quais já não existem mais. Verhttp://cachaca.januaria.zip.net/
[6]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 11 de maio de 1931, 3ª página.
[7]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 11 de maio de 1931, 3ª página.
[8]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de terça-feira, 12 de maio de 1931, 3ª página.
[9]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 14 de maio de 1931, 1ª página.
[10]Segundo uma das notas do jornal, a cidade de Senhor do Bomfim tinha no início da década cerca de 12.000 habitantes e apenas 23 policiais para protegê-la, sendo raras as localidades que tinham mais de 12 policiais. Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de segunda-feira, 1 de fevereiro de 1931, 1ª página.
[11]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 14 de maio de 1931, 1ª página.
[12]Ver Jornal “A Noite”, Rio de Janeiro, edição de quinta-feira, 15 de maio de 1931, 1ª página.
No dia 05 de
janeiro de 1928, o cangaceiro VINTE E DOIS é morto pela polícia. Seus
cúmplices, Lua Branca, Manoel Toalha e Pedro Miranda são baleados e presos.
Ainda nesse mesmo dia foram presos os primos: Joaquim Gomes e João Gomes sob a
acusação de serem coiteiros.
Importante
lembrar que apenas LUA BRANCA era cangaceiro, enquanto os demais eram simples
recadeiros, coiteiros se assim podemos classifica-los.
Pouco tempo
após terem sido presos, os cinco homens foram escoltados até um local chamado
ALTO DO LEITÃO, onde após terem sido forçados a cavarem suas próprias covas,
foram executados e consequentemente sepultados.
O grupo era
chefiado pelo cangaceiro VINTE E DOIS.
Um pequeno documentário de nossa visita à Fazenda Jenipapo no dia 27 de maio de
2016 por ocasião do Seminário Cariri Cangaço na cidade de Floresta em
Pernambuco.
Contou-nos Mabel Nogueira, alguns históricos que marcaram lembranças da família
em relação ao cangaço. Disse-nos que estava Antônio Gomes Jurubeba; pai de
Maria Gomes; retelhando a casa da Fazenda Jenipapo, no ano de 1919, com seu
sobrinho João Jurubeba, quando viram aproximarem-se os cangaceiros. João
avisou: - Lá vem os cangacero!... E seu tio Antônio, permaneceu calado,
trabalhando no retelhamento.
Os irmãos Ferreira aproximaram-se da casa, eram
Virgulino, Antônio e Livino, e foi quando Virgulino falou:
- Abença tio
Gomes!
E Gomes Jurubeba sem olhar para o grupo, respondeu:
- Não dou bença
a cangacero.
Ouvindo isso Lampião continuou:
- Tio Gomes, me dê umas balas.
E a resposta de
Gomes foi:
- Não tenho bala pra cangacero, se quiser compre, como eu
comprei.
Lampião se dirigindo aos irmãos falou:
- Vamimbora, hoje tio Gomes não quer
conversar!
E saíram na direção da Serra do Pico, foi quando Antônio Ferreira
quis voltar e matar Gomes, entretanto Virgulino não deixou.