Por Aleilton
Fonseca
Antônio
Conselheiro, "documento vivo de atavismo"
Em Os
sertões (1), no capítulo intitulado "O homem", Euclides da
Cunha caracteriza a figura de Antônio Conselheiro e, em função de sua imagem,
analisa as prédicas e a poesia de Canudos. Sua abordagem da vida religiosa
concentra-se sobretudo em avaliar as práticas dos canudenses como sendo
determinadas pelo fanatismo conduzido pelo Conselheiro. Já os versos
encontrados, que tematizam a Guerra, são vistos como "pobres papéis"
que registrariam o efeito das prédicas do beato. Dessa forma, para que se
compreendam as observações de Euclides sobre as prédicas e sobre a poesia
canudense é preciso observar alguns aspectos da análise que ele faz do
Conselheiro.
Euclides da
Cunha inicia o capítulo "O homem" discutindo o problema etnológico do
Brasil, procurando demonstrar, segundo as teorias raciais correntes no final do
século XIX, o processo ainda inconcluso de formação da nossa etnia mestiça, a
partir das três raças originais: indígena, africana e européia. Em seguida,
procura explicar a gênese do jagunço e descreve o modo de vida do sertanejo,
sua cultura e sua personalidade em consonância com o meio físico, com o clima e
com fatos históricos da ocupação geográfica, definindo-o como representante de
uma sub-raça que seria produto desses condicionantes. Em função disso, procura
estabelecer as causas que levariam ao messianismo como expressão de uma
religiosidade primitiva que considerava própria de um estádio atrasado de
civilização, que estaria então sendo reatualizada pelos canudenses como um
fenômeno de atavismo. Assim, os sertanejos comporiam uma sub-raça dentro do
processo de miscigenação brasileiro, e que, isolada durante cerca de três
séculos, estaria situada à margem do processo civilizatório e do progresso
conseguido pela sociedade do espaço litorâneo do país. Sob essa ótica, Antônio
Conselheiro emerge como um produto do meio, portador de características
determinadas pela hereditariedade, constituindo um documento vivo de atavismo.
Euclides afirma: "É natural que estas camadas profundas da nossa
estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio
Conselheiro".
Com esse
epíteto principal, Euclides da Cunha procura traçar as caraterísticas do líder
religioso sertanejo, enquadrando-o segundo os conceitos e premissas
cientificistas que norteiam sua análise. O beato surge como sendo o falso
profeta, um produto do meio, portador de psicose progressiva e consciência
delirante:
Todas as
crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as
tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na
indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e
extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação
de que surgiu. (2)
Para o
escritor, Antônio Conselheiro resumia numa individualidade os caracteres
negativos da sub-raça, sendo o " falso apóstolo que o próprio excesso de
subjetividade predispusera à revolta contra a ordem natural". E assim:
"A multidão aclamava-o representante natural de suas aspirações mais
altas". Ao traçar o perfil do líder religioso, Euclides destaca-o como uma
anticlinal, um "grande homem pelo avesso", uma personalidade forte e
carismática resultante do meio social atrasado e formado por homens inferiores,
degenerados. Assim, ao lado da descrição "científica", observa-se uma
espécie de admiração pelo valor pessoal do pregador, visto como um peregrino,
evangelista, "asceta" e "gnóstico bronco" em suas ações
edificantes pelos arraiais sertanejos (3).
As prédicas de
Antônio Conselheiro, n’Os sertões
Euclides da
Cunha informa que, em suas andanças, Antônio Conselheiro levava "um surrão
de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão abreviada e as Horas Marianas" (4).
Ao descrever as peregrinações de Antônio Conselheiro e seus seguidores pelas
vilas e povoados sertanejos, mostra como o beato detinha o poder de aglutinar
pessoas nas pequenas praças, para ouvir suas pregações. A descrição destaca, de
certo modo, o aspecto teatral das pregações:
Erguiam-se na
praça, revestidos de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos,
terços e ladainhas; e quando era grande a concorrência, improvisava-se um
palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, para que a palavra
do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os
crentes. (5)
E adiante:
Ele ali subia
e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratória bárbara
e arrepiadora, feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa,
abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas;
transcorrendo em frases sacudidas; misto inextrincável e confuso de conselhos
dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas. (6)
As prédicas de
Antônio Conselheiro são consideradas por Euclides como extravasamento de sua
loucura. Assim, ao longo de sua análise, concatena juízos negativos a respeito
do pregador e das prédicas, num quadro em que se ajustam como resultantes da
mesma situação de incultura. O beato é visto como um "orador
bárbaro", "truanesco", "pavoroso", "bufão
arrebatado", enfim um "heresiarca". Enquanto isso, as prédicas
são consideradas "truncadas", "abstrusas",
"desconexas", "preceitos vulgares", enfim, "insânia
formidável". O ensaísta cita algumas passagens das prédicas, as mais
truncadas e confusas possíveis, para corroborar as suas afirmações e apontar
nelas "a revivescência de aberrações extintas". Os comentários acerca
do conteúdo das prédicas são articulados no sentido de mostrá-las como prova do
que seria o estádio retrógrado, o atraso cultural dos sertanejos, em sua
expressão religiosa. Nota-se, no entanto, que os fatos, na verdade, são
arrolados para preencherem um lugar de antemão demarcado na cadeia explicativa
euclideana, através de formulações conceituais estabelecidas a priori. Por
outro lado, os fatos analisados não foram observados in loco pelo
escritor, mas sim informados por "testemunhas existentes". Assim, os
comentários e críticas são feitas a partir de impressões de testemunhas que não
eram partidárias do pregador. Dessa forma, observa-se que tanto os depoentes
quanto o analista observam os fatos de uma posição de fora, submetendo-os a
preconceitos e prejulgamentos. Nesse sentido, a abordagem das práticas
religiosas dos conselheiristas perde de vista a sua inserção no espaço
sertanejo, como uma forma de resistência e como uma alternativa de
sociabilidade religiosa. Assim, como líder espiritual de uma "igreja"
à margem da instituição religiosa oficial situada nos parâmetros positivistas
de civilização, o Conselheiro é visto como "desnorteado apóstolo" em
"missão pervertedora" que "reunia no misticismo doentio todos os
erros e superstições que formam o coeficiente de redução da nossa
nacionalidade" (7).
CONTINUA...
Enviado pelo escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso
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