No início do século XX este coronel levou a indústria ao Nordeste.
Delmiro Gouveia
Ninguém se espantaria se visse muita rua no centro da cidade um cidadão levantar voo, graças a um aparelho atado às costas. O mesmo correria se um motorista, impaciente com o congestionamento do trânsito, apertasse um botão do painel de seu carro, fazendo-o flutuar sobre os outros. Na verdade, os habitantes das grandes cidades já estão habituados com o progresso científico e, no máximo, encarariam estes dois inventos com curiosidade.
Mas em 1911, os habitantes de Santana do Ipanema, no Interior de Alagoas, recorriam aos seus santos prediletos para espantar o medo daquela "engenhoca esquisita", sustentada por quatro rodas, que podia correr mais depressa que o melhor cavalo da região, sem que o cavaleiro" precisasse fazer força. A "engenhoca esquisita" era o automóvel do "coronel Delmiro Gouveia", que cortava a 60 km/h as estradas de barro que ele mesmo construíra, para ligar o núcleo industrial de Pedra aos terminais ferroviários de Quebrangulo e Garanhuns.
Parte com o Diabo
"Honorato Avelino tinha parte com o Diabo: andava ligeiro como o vento. Mas, uma vez, apostou carreira com o automóvel do coronel Delmiro e perdeu longe. Assim os caboclos viam o milagre da tecnologia, o automóvel: "um demônio danado, uma besta-fera correndo com dois olhos ardentes pela escuridão da caatinga".
Pela primeira vez, o caboclo nordestino conhecia um dos produtos de industrialização e começava a entrar em contato com as novas possibilidades de vida a capacidade do homem criara nos centros econômicos mais adiantados.
E não foi só o automóvel. Ele apenas sintetiza com mais clareza as reações dos vaqueiros. O casamento do sertão com a indústria foi feito pelas mãos de um pioneiro corajoso e poderoso, quase 40 anos antes da criação da Companhia Hidrelética do São Francisco, o nordestino Delmiro Gouveia construiu uma pequena usina numa das quedas da Cachoeira de Paulo Afonso, instalou uma fábrica de coser que chegou a ter mil empregados, concorrendo com as firmas inglesas no mercado brasileiro, e ergueu uma vila operária na cidade de Pedra que tinha, então, a melhor luz elétrica do país, água encanada, esgoto, fábrica de gelo, tipografia, telefone, telégrafo, escola profissional, cinema e rinque de patinação.
Na verdade, Delmiro queria construir uma usina empregando toda a energia de Paulo Afonso, mas o Governador de Pernambuco negou-lhe apoio financeiro porque achou a ideia "boa demais para não esconder uma velhacaria".
Empresário
Mesmo antes de se alojar no inteiro do sertão, a inspiração empresarial de Delmiro já lhe rendera alguns frutos: no início do século ele montara em Recife o mais moderno mercado brasileiro da época, o Derby, que à noite, funcionava como grande centro de diversões, com vários jogos de salão, bares e um hotel luxuoso. No seu tempo de fazendeiro, o coronel preocupou-se também em elevar a produtividade do rebanho nordestino, promovendo inúmeros cruzamentos de raças e introduzindo novos tipos de pastagens. Qunado foi assassinado, em 1917, Delmiro pretendia construir ainda fábrica, de sedas vegetais, de papel e cigarros e, apesar de todas as resistências, não perdera as esperanças de entender as linhas da energia elétrica através do Nordeste.
Carreira Difícil
Delmiro Gouveia nasceu no dia 5 de julho de 1863, em Ipu, Ceará. E era 2 anos mais moço do que costumava confessar "para despistar os curiosos. Criança ainda, Delmiro perdeu seu pai, e aos 15 anos, a mãe, o que o obrigou a trabalhar para sustentar-se. Seu primeiro emprego foi o de bilheteiro da "maxambomba" (bonde), de Olinda. Nessa época percebeu que o modo mais rápido de juntar fortuna era o comércio: aos 18 anos, em 1881, conseguiu um lugar de caixeiro despachante na Alfândega de Recife e aos 19 anos já era um "ajudante de despachante" com firma reconhecida e endereço próprio. Ainda pobre, casou-se com uma adolescente de 13 anos, Dona Iaiá.
Pouco depois, já em Recife, o casal passava da promissora prosperidade ao constrangimento de favores dos amigos para moradia e sustento e Delmiro decide então lançar-se à nova atividade: o comércio de courinhos (pele secas d bodes e carneiros).
Rei das Peles
O início do novo trabalho foi quase um acidente, segundo Tadeu Rocha, um dos biógrafos de Delmiro. Ele estava num armazém de um amigo, já insatisfeito com os encargos de despachante, quando chegaram algumas peles de bode e carneiro, os courinhos. Como o negociante não tinha experiência neste ramo, Delmiro ofereceu-se para vender o material, por pequena comissão, o que conseguiu em tempo recorde.
Como era difícil negociar os courinhos na capital, outros comerciantes do interior, sabeodres da habilidade de venda do jovem Delmiro, começaram a mandar para o armazém do seu amigo uma série de partidas de peles, consignadas em seu nome. A constância destes recebimentos levou-o a instalar-se como "recebedor de courinhos", embora, como ele mesmo confessasse, "não tivesse capital algum, nem dinehrio para comprar uma balança necessária ao armazém.
Depois dos primeiros e rápidos lucros, porém, a pequena firma teve problemas com clientes do interior, com graves prejuízos. Delmiro liquidou algumas das dívidas, adiou o pagamento de outras e desistiu , pelo menos por algum tempo, das empreitadas individuais: foi empregar-se no comércio exportador dos courinhos, agora com a vantagem de já ser um renomado vendedor, com muita experiência. Em todas as firmas nas quais trabalhou, sua tarefa era uma só: percorrer o interior, os centros comerciais mais ativos, epróximo da capital montado a cavalo, às vezes levando também alguns produtos manufaturadospara trocar por peles.
Nesta época foi convidado para trabalhar na firma Keen Sutterley. Seu comportamento na "Keen", é por outro lado, exemplo bastante expressivo para mostrar que o mito e a lenda dos grandes impérios comerciais e industriais e seus fundadores não se constrói apenas com honestidade, perseverança, espírito de sacrifício.
Fábrica de Linhas Estrela
Para desbravar seus caminhos, Delmiro muitas vezes teve que assemelhar-se a um temível "capo"siciliano. Na Keen Stterley ele deu o que seus biógrafos, chamam de "golpe de mestre": "escrevu à matriz em Filadélfia, nos Estados EUA, propondo trabalhar pela metade do salário de seus gerentes no Brasil". Achando que somente a carta não seria suficiente para destronar seus patrões, ele foi aos Estados Unidos, voltando de lá "com plenos poderes para gerir todos os negócios da casa", e com a demissão dos antigos representantes da empresa e de todos os empregados que lhes fossem fiéis.
Tempos depois a Keen fechou sua subsidiária no Brasil e Delmiro, já então um homem rico, passou a novas sociedades, sempre no ramo dos courinhos.
Por volta de 1894, com pouco mais de 30 anos, o menino bilheteiro de Maxambomba e o jovem e eficiente caixeiro viajante haviam se transformado no "rei das peles", em Recife, um negociante milionário.
Fonte: Panorama Econômico