Por José Mendes Pereira
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Por Aderbal Nogueira
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Por Texto: Tatiana Notaro | Fotos: Rafael Furtado
PETROLINA E
SERRA TALHADA (PE) - Andrelino passeia os olhos pelas cabeças do bando
de cangaceiros que fora decapitado naquela manhã de 28 de julho de
1938 em busca de Lampião - o maior de todos os líderes do
cangaço, de quem mais se teve notícia e que a história conta ter sido morto
neste dia, 80 anos atrás. Uma a uma, repassa todas as cabeças, calado, e não
encontra a de Virgolino Ferreira da Silva. “Ele não está aí”, cochicha
para um soldado responsável pela escolta, que devolve o olhar desconfiado.
Único ainda vivo entre os policiais que integraram as tropas volantes,
entre 1922 e 1938, Andrelino Pereira Filho, 104 anos, tem suas próprias
memórias sobre uma época em que o combate ao cangaço transformou,
para sempre, a Polícia Militar de Pernambuco.
Entre 1927 e 1928, com o então governador Estácio Coimbra e o secretário
de Segurança Eurico de Souza Leão baixam em Pernambuco a chamada Lei
do Diabo, que autorizava punições mais severas aos coiteiros (aqueles que acobertavam
cangaceiros, por vontade própria ou sob ameaças). Vê-se uma polícia apoiada por
um governo que quer que Pernambuco deixe de ser a “terra de Lampião”.
De fato, o líder cangaceiro deixa o Estado em julho de 1928, fazendo
por aqui, depois disso, apenas “missões de rapina”.
Mas na década de 1920, a polícia tinha cerca de 800 homens localizados,
majoritariamente, no Litoral e na Zona da Mata pernambucanos. Não
tinham treinamento e, no começo, sabiam de coisa alguma:
roupas, técnicas de combate e de rastreamento e o armamento –
tudo era inadequado para a missão. Mas as ordens do Governo teriam que ser
seguidas e para Andrelino, assim como para outros membros das tropas
volantes que atuaram aqui e em estados vizinhos com a mesma missão de
expurgar bandos de cangaceiros, não havia escolha. Morriam, matavam.
Falando em
morte, as modalidades de crimes que Lampião e seu bando começaram
a executar - estupros, sequestro e extorsão -
motivavam o combate. Conta o historiador André Carneiro, autor de “Capitães
do Fim do Mundo”, que a área de atuação de Lampião na Região Nordeste era de 29
mil quilômetros quadrados (km²). “Imagine isso em um sertão de rara tecnologia,
sem telégrafo, onde não existe telefone, não existe carro”, diz Carneiro. Mas
a caatinga é um dos locais mais hostil para sobrevivência humana
da América Latina e os homens do litoral entraram em choque.
“Perceberam que para caçar um lobo, era preciso outro lobo”, continua o
historiador, e a Polícia começa a alistar sertanejos, os “inimigos
fraternais” dos cangaceiros. “Você vai ver o policial mudar suas vestes, sua
prática. Vai aprender com o inimigo como deslocar, localizar, perseguir e
lutar. Deixa de ser uma polícia mais fixa, dos destacamentos, e se torna uma
polícia volante, que se mobiliza. Lampião que modifica isso”.
A caçada usava sinais do ar, do ambiente, o rastreamento era (como
ainda é) essencial. Práticas foram sendo modificadas, como as orelhas
decepadas que dão lugar a cabeças arrancadas e usadas como prova da morte
dos cangaceiros. “Imagine uma tropa de soldados maltrapilhos, estropiados,
seminus que chegavam carregando orelhas como prova da morte de cangaceiros.
Em quem você ia acreditar? Começaram a ver que orelha não funcionava: vamos
arrancar a cabeça. Precisavam mostrar que eram mais fortes que os cangaceiros”,
relembra André Carneiro.
Na década de
1990, o policiamento do Interior de Pernambuco passa a enfrentar uma
onda de criminalidade e precisa ser reforçado pela Companhia
Independente de Operações Especiais (CIOE, hoje Batalhão de Operações
Especiais, Bope). “A causa eram as brigas entre famílias e a cultura
da droga começou como uma forma de financiar isso. Mas o que era
meio, acabou se tornando fim, e veio o tráfico de drogas, precisamente o
plantio de maconha, e o assalto a banco”, diz Jamerson Lira, coronel
da Diretoria Integrada do Interior II, que atua de Arcoverde a Petrolina.
O CIOE traz o reforço policial, mas não faz nada específico na caatinga,
além de enfrentar as dificuldades logística (da Capital para o Sertão) e tática
(havia o conhecimento técnico policial, mas não da região). “Foi a partir daí
que se percebeu que era necessária uma polícia específica na área, era
necessário o sertanejo com conhecimento do terreno, com rusticidade. Fomos
buscar a influência das tropas volantes”, diz o coronel.
Testemunha do tempo
Nascido em Cabrobó, Sertão pernambucano, em 18 de março de 1914, seu Andrelino jamais pensou que fosse viver tanto. Tornou-se volante porque, sem emprego, o jeito foi entrar para a polícia; mas quando entrou, não sabia que faria parte de uma tropa volante que entraria no Sertão em busca de cangaceiros. “Acabei lá. Quando convocaram, pensei em nada, só que ia pro Sertão e fui, calado”.
Os soldados andavam
em grupos de sete, mais um comandante, e a tropa de Andrelino ficou
pelas bandas de Alagoas (era época de ditadura, a de Getúlio Vargas, então a
polícia comandava onde fosse necessário). Foram dois anos “andando no mato,
dormindo no mato, vivendo o mato” - “dentro da caatinga de 1936 a 1938”.
Diz a história que cangaceiro tinha um cheiro peculiar, uma mistura de perfume
ou água de colônia com suor, que acabava ajudando no rastreamento, como
contra André Carneiro em “Capitães do Fim do Mundo”. “Mas não era uma certeza,
era uma pista casual, acontecia. Só eles usavam, mas a gente, não. Se os
encontrasse, bem; se não, seguíamos. Mas rezava pra não encontrar”, continua o
ex-volante.
Sem descanso, sem comida, sem água, as volantes seguiam nessa
missão ingrata; “ingrata” porque o pagamento era também escasso. “Comida
era quando encontrava. Farinha, rapadura, queijo de coalho, se
tivesse. Água, só quando encontrava um poço. Sobre banho, nunca se falou”.
As armas eram fuzis e o volante carregava, em média 50 balas que
“pesavam como o diabo”, e nessa rotina dura, seu Andrelino diz que teve uma
aliada: a calma. “Foi a primeira coisa que aprendi. A segunda foi a
conviver; a terceira, foi ‘não atender a muita gente, a não dar atenção’. Se o
camarada atende a muitas perguntas, passa o tempo todo. Eu preferia ficar
em silêncio”.
As tropas não
tinham treinamento, mas orientações de como se defender se encontrassem um
bando. “Mas essa orientação era no momento. Estava no tiroteio e se os tiros
apertassem, eu seguia a ordem: me jogava no chão”. Andrelino nunca ficou ferido
(mas quase foi), nunca matou ninguém, nunca viu um de seus companheiros de
tropa matando.
“O pagamento, eu não sei nem dizer como era. Eu lembro que a gente recebia, que
tinha um sargento que era o pagador, Almeida, trazia tudo separado. Ele trazia
o pacotinho de dinheiro. A gente chegava em uma bodega, fazia compras.
Pronto, e o dinheiro desaparecia”. Não havia heroísmo, mas uma obrigação;
não havia um intuito de fazer justiça, de trazer um bem social, mas uma vontade
enorme de trabalhar para que o dia em que aquelas volantes terminassem
chegasse logo.
Os coiteiros também davam pistas dos cangaceiros. Certo dia, diz
seu Andrelino, foi o perfume de uma mocinha, numa casa, que entregou a presença
de um bando. “Os cangaceiros estavam em uma distância de uns 500
metros e cozinhando um bode numa lata amarrada num pé de pau em cima de um fogo
de lenha. Estava fervendo. A mocinha quis negar, mas terminou dizendo. Os cangaceiros deram
fé e fugiram. Deixaram a lata fervendo lá. Ninguém comeu, quem sabia se não
tinham colocado veneno?”.
Medo, seu Andrelino nunca sentiu, embora tenha visto e sentido muita coisa.
Sentia, mas não podia falar porque, afinal, estavam todos do mesmo jeito.
Alívio e alegria sentiu quando soube que a volante tinha terminado e
ele seria deslocado para o Recife, onde faria serviços bem mais leves. “As
roupas da volante eram de tecido grosso, feitas de todo jeito; no Recife,
fizeram sob medida. Mas as duas eram cáqui e eu não uso mais cáqui desde que
saí da polícia em 1966”.
Andrelino conheceu Lampião quando era menino. “Ele ia lá em casa,
tomou café lá muitas vezes. Chamava minha mãe: ‘cumade’, tem um cafezinho?”.
Tomava e ia embora”. E com seus 104 anos e sua memória reta, seu Andrelino
defende uma tese diferente para a morte de Lampião. Ele ri da oficial - que Virgolino
foi morto em uma emboscada em 1938, em Angico, Sergipe - e diz que tem certeza
que o cangaceiro jamais morreria daquela forma. “Lampião morreu
em Minas Gerais, na fazenda São Francisco, muitos anos depois, em 1963,
justamente neste mês que estamos, de julho, mas eu não sei a data exata”.
“Um amigo dele, de Lampião, era amigo meu, um senhor de Porção (cidade do
interior de Pernambuco). Tinha trabalhado com ele. Eu estava em Pesqueira
(outra cidade pernambucana, localizada no Agreste), engraxando sapato, quando
ele passou e falou: ‘sabe de onde eu venho? De Minas Gerais, do enterro de
Lampião’. O que, homem?! Lampião morreu? Era mês de setembro. Eu já sabia que
ele estava na fazenda São Francisco. As coisas passam no meio do mundo e a
gente sabe”.
Volantes modernas
A
especialização é necessária, defende o coronel Jamerson Lira, porque os atores
dos crimes migram se for preciso. Hoje, a criminalidade está interligada em
âmbito nacional e o estado que tiver um policiamento fraco é o que vai ser mais
visitado pelos bandidos.
Depois que Pernambuco foi pioneiro no policiamento especializado para
a caatinga, em 1997, Bahia, Paraíba, Ceará, Alagoas e Sergipe tomaram
mesma iniciativa. “Em 2012, 2013, recomeçaram os assaltos, agora com nova
roupagem, a de explosões de carro-forte, de banco. Aconteciam muitas fugas por
dentro da caatinga e os bandidos sempre levavam vantagem. Fizemos um reforço
no treinamento, batendo muito na questão do rastreamento. Já fomos,
inclusive, requisitados para o Piauí”, explica o coronel.
Ciosac, atual Bepi: inspiração nas volantes que combateram o cangaço para enfrentar criminalidade no Sertão pernambucano - Foto: Rafael Furtado/ Folha de Pernambuco
A Companhia
Independente de Operação e Sobrevivência na Caatinga (Ciosac)
evoluiu, devido à sua importância, e virou o Batalhão Especial de Policiamento
do Interior (Bepi) - embora a antiga sigla persista. “Com as demandas,
inclusive fora do ambiente de Sertão, viu-se a necessidade de estender a
atuação. Virou Bepi porque na Zona da Mata não tem caatinga, mas temos as
companhias de operações específicas”.
O nível de exigência tática, física e emocional é grande para integrar o
Bepi e isso, diz o capitão Francisco Barbosa, justifica que o aproveitamento
das turmas de formação fique na casa dos 40%. “Quando vamos para uma operação e
não temos como levar a logística, a maior dificuldade é o efeito do sol e a
falta da água. A gente tem nossas medidas paliativas e o próprio bandido já tem
as suas também. Quando eles sabem onde vão agir, têm planejamento. Já
encontramos garrafas pet espalhadas pela caatinga, porque eles vão saber
que se entrarem por ali, vão ter onde achar água”, explica o coronel
Jamerson. Nas suas incursões, os policiais do Bepi podem levar de 20 a 30 kg de
sobrepeso: munição, água, mochila e comida - a
mesma farinha que também alimentava as tropas volantes.
Não era vingança, era negócio
Historiador, André Carneiro descreve Lampião como “alguém extremamente
cruel, violento” responsável por mais de 200 estupros cometidos por
seus bandos. Incendiava fazendas, chegou a dizimar 3 mil cabeças gado durante
os anos em que atuou fortemente. “Com Lampião, o cangaço vira ‘um negócio’. Ele
mesmo disse isso em entrevista ao jornal O Ceará, em 1926. Ele transforma
o cangaço-vingança em um meio de vida”, explica.
Pouca gente sabe, diz o historiador, mas o sertão Pernambucano do
período Lampiônico vai de 1922 a 1938, quando temos mais de 40
bandos de cangaceiros em atuação. Lampião era um forte, quase
imbatível, mas começa a esmorecer em 1927, quando concorda com um ataque à
cidade de Mossoró (RN) e o seus planos dão errado. “Quando se está ganhando,
todos estão ao seu lado; quando você perde, as pessoas começam a ter medo de se
associar a você”, comenta André. “O cangaço é um empreendimento que
gera lucro não só pro cangaceiro, mas para o coiteiro. E Lampião sem
o coiteiro não é nada”.
Mas em se tratando da morte de Lampião, é importante pensar porque ele
começa a ser vencido. Para André Carneiro, o líder cangaceiro é
golpeado pelo tempo, por seu aburguesamento, por sua vaidade, e pelo progresso.
“Um homem de 22 anos lá no início do cangaço, já estava próximo aos 40 anos em
1938. Ele já não tem a mesma vitalidade. A entrada de mulheres muda muito a
rotina, porque o bando perde a sua virulência, Lampião se aburguesa,
passa mais tempo parado. E quando o progresso vai se aproximando, ele vai se
enterrando cada vez mais em um sertão inóspito, que é onde o cangaço ainda
funcionava”.
A vaidade
também foi uma forma de morte para ele, que permite ser registrado pelo
fotógrafo Benjamim Abrahão. “E se você observar o ano, estamos vivendo a
ditadura no Brasil. Seria inadmissível para o governo Vargas permitir um ‘rei
cangaceiro’ que não fosse combatido. Isso foi fatal. Segundo rumores, um
tenente que era amigo de Lampião recebeu um aperto do governo do
Estado: ou o matava ou perderia a carreira”, conta André.
A morte de Lampião
André Carneiro, em “Capitães do Fim do Mundo”, registra que a história oficial
conta que Lampião foi morto por uma volante de “caráter
duvidoso”, por um oficial que não tinha histórico de combate no cangaço.
“Ele foi morto onde até uma criança poderia acertá-lo, em Angico”, diz.
Há também quem acredite que Lampião foi morto por envenenamento.
“Oras, um homem que passou 16 anos no cangaço comandando diversos bandos, e em
nenhum combate perdeu mais de seis homens. Chegou a enfrentar tropas com mais
de 290 homens, em Serra Grande, com 100 cangaceiros à disposição. E como é que
você explica que em uma manhã ele perder mais de 10 homens?”, argumenta.
A teoria é que policiais de Alagoas teriam conseguido envenenar a
refeição - algo extremamente repudiado na luta entre policiais e cangaceiros,
pela covardia. “Existe um código de honra entre esses homens. Envenenar
um manancial de água, como aconteceu em outras situações da história, não
acontecia aqui. O policial não fazia isso, nem os cangaceiros. E vários
policiais de Pernambuco morreram defendendo isso”.
A morte de Lampião é cercada de mistérios porque o discurso que se
sobressai é de quem o matou. Essa interrogação, a história não vai conseguir
responder. Aliás, mistérios não faltam acerca desse personagem. O discurso que
ele entrou no cangaço para vingar a morte dos pais é, dizem alguns
historiadores, “totalmente falacioso”: a família responsável por essas brigas,
os Saturninos, ficou vivendo em uma tapera em Serra Talhada por toda a vida.
Adendo - http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Postei para o conhecimento dos amigos cangaceirólogos a história deste senhor que já é do conhecimento de todos. Uma história meio duvidosa.
https://www.folhape.com.br/noticias/lampiao-e-a-cacada-que-mudou-a-policia-militar-de-pernambuco/76258/
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Acervo do Adelsomota
https://www.facebook.com/photo/?fbid=391692315449484&set=gm.1160556554414223
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Por CEEC - Centro de Estudos Euclydes da Cunha
https://www.youtube.com/watch?v=TB-piWBszTA&ab_channel=CEEC-CentrodeEstudosEuclydesdaCunhaEntrevista completa de Indaiá Santos concedida à equipe do Centro de Estudos Euclydes da Cunha – CEEC/UNEB na ocasião da produção do documentário "ASSIM ERA DADÁ – A Vida Pós Cangaço de Sérgia da Silva Chagas". Direção Geral: Manoel Neto Direção de Fotografia: Lucas Viana Assistência de Produção: Vicente Rivelino Link para o documentário: https://youtu.be/rlo0A2bMKZU
Inscreva-se no canal do CEEC para acompanhar nossas próximas produções: https://www.youtube.com/channel/UCw6t...
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José Murilo de Carvalho – Professor UFRJ (Publicado no Jornal do Brasil em 6/05/2001).
“A lei parava nas porteiras das fazendas. O governo renunciava ao seu caráter público. Um elementar senso de autodefesa dizia à população rural que era mais vantajoso submeter-se ao poder e a proteção do coronel”
Dizia Víctor Nunes Leal, no clássico Coronelismo, enxada e voto, publicado em 1949, que coronelismo era compromisso entre poder privado e poder público. O compromisso, continuava ele, derivava de um longo processo histórico e se enraizava na estrutura social. A urbanização, a industrialização, a libertação do eleitorado rural, o aperfeiçoamento da justiça eleitoral, acreditava, iriam enterrar coronéis e coronelismo.
Pedida a bênção a quem de direito, me aventuro em variações em torno do tema.
No princípio, era o “coronel”. Entre aspas, porque não era chamado assim. Era o homem-bom, o chefe , o patriarca, o mandão, o grande senhor de terras e de escravos, base da organização social da colônia. Alguns historiadores o chamaram até de senhor feudal. Comandava vasto séquito que incluía a família, a parentela, os escravos, os agregados, os capangas. Todos dependiam dele, de seu poder, de seu dinheiro, de sua proteção. Controlava a terra, o trabalho, a política, a polícia e a justiça. Alguns isolavam-se no interior comandando estados à parte. A maioria, no entanto, desde o início vinculava-se à economia exportadora e à administração colonial. O poder colonial não tinha braços suficientes para administrar e delegava aos chefes locais tarefas de governo ou simplesmente deixava que mandassem como bem entendessem.
“Foi na Bahia que os coronéis chegaram ao auge da influência, como tão bem demonstra a obra romanesca de Jorge Amado”
Quando a colônia virou Brasil, o “coronel” virou coronel, sem aspas. A Regência, imprensada entre reacionários de um lado e “povo e tropa”, do outro, não tinha como manter a ordem. Criou a Guarda Nacional, de olho na congênere francesa, para colocar a manutenção da ordem nas mãos dos que tinham o que perder. Faziam parte da Guarda os adultos entre 21 e 60 anos que tivessem renda de 200 mil-réis nas quatro maiores cidades e 100 mil-réis no resto do país. Os oficiais eram nomeados pelo ministro da Justiça, sob recomendação dos presidentes de província. Pode-se adivinhar quem era escolhido. A hierarquia da Guarda seguia a hierarquia da renda e do poder.
O chefão local virava coronel, o posto mais alto, o segundo mais poderoso virava tenente-coronel, o seguinte major, e assim por diante. Lavradores e artesãos tinham que se contentar em ser praças. A Guarda foi um eficiente mecanismo encontrado pelo governo para cooptar os senhores de terra, para estreitar o laço entre governo e poder privado. Se o posto de coronel não bastava, o governo o fazia barão. Com o tempo, a Guarda deixou de exercer funções de segurança e virou instrumento político-eleitoral. O coronel virou chefe político. A ele se dirigia o deputado para pedir votos. Vangloriava-se das relações com políticos da capital. Alguns iam a cidades próximas para mandar carta para si mesmos, pretendendo ser carta de deputado. Podia ser caprichoso. Na década de 50 do século XX, um coronel ainda se negou a apoiar um pretendente porque não dava votos a quem usava paletó rachado na bunda. A tecnologia eleitoral aperfeiçoou-se em suas mãos. Criou o voto de defunto, o fósforo, que votava várias vezes, o capanga que espantava o opositor, o curral, o bico-de-pena. Para seus subordinados, continuava sendo o chefe, o juiz, o protetor. Seu capanga não era condenado se cometesse crime, seus dependentes não eram recrutados para o serviço militar, seu escravo era solto. Sua mulher não precisava ser defendida das autoridades porque estava submetida a sua justiça particular.
A federação de 1891 abriu as portas do paraíso para o coronel. Agora havia um governador de estado eleito que dependia mais dele do que o ministro da Justiça. Surgiu o coronelismo como sistema na terminologia de Víctor Nunes. O coronel municipal apoiava o coronel estadual que apoiava o coronel nacional, também chamado de presidente da República, que apoiava o coronel estadual, que apoiava o coronel municipal. Aperfeiçoou-se ao máximo a técnica eleitoral. Quanto mais regular a eleição, de acordo com as atas, mais fraudada era. Nem a capital da República escapava. Um coronel da Guarda costumava incluir entre os preparativos das eleições cariocas a contratação de um médico para assistir os feridos nos inevitáveis rolos que seus próprios capangas provocavam. Aumentou também o dá-cá-toma-lá entre coronéis e governo. As nomeações de funcionários se faziam sob consulta aos chefes locais. Surgiram o “juiz nosso” e o “delegado nosso”, para aplicar a lei contra os inimigos e proteger os amigos. O clientelismo, isto é, a troca de favores com o uso de bens públicos, sobretudo empregos, tornou-se a moeda de troca do coronelismo. Em sua forma extrema, o clientelismo virava nepotismo. O coronel nomeava, ou fazia nomear, filho, genro, cunhado, primo, sobrinho. Só não nomeava mulher e filha porque o lugar delas ainda era dentro de casa.
Os coronéis tornaram-se poderosos e onipresentes. Em São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul foram enquadrados pelos partidos republicanos estaduais, o PRP, PRM, PRR. No Rio Grande do Sul, seu enquadramento foi feito por Júlio de Castilhos. Dele se conta que ao ouvir um coronel interiorano começar uma frase assim: “Chefe, eu penso que…” interrompeu-o bruscamente dizendo: “Você não pensa, quem pensa sou eu”. Outros estados, como Bahia e Pernambuco, tiveram maiores dificuldades em controlá-los. Nesses estados, alguns coronéis se tornaram legendários. Em Pernambuco, Chico Romão, Chico Heráclio, Veremundo Soares, coronel intelectual, e José Abílio, de que um padre disse poder ser enquadrado em todos os artigos do Código Penal.
Foi na Bahia que os coronéis chegaram ao auge da influência, como tão bem demonstra a obra romanesca de Jorge Amado. De tão fortes, desafiavam o governo do estado. O coronel estadual, ou governador, em geral membro das velhas oligarquias, não conseguia controlar os coronéis municipais, chefes de estados dentro do estado. Os partidos, Republicano da Bahia e Republicano Democrático, eram meras aglomerações de coronéis rivais. O maior dos coronéis baianos na Primeira República foi Horácio de Matos, senhor das Lavras Diamantinas. Em fins de 1919, ele chefiou uma revolta de coronéis contra o governo do estado. Reuniu mais de 4 mil homens em armas. O governo federal interveio e assinou um tratado de paz com os coronéis, passando por cima do governador. Horácio lutou contra a coluna Prestes e contra Lampião. Em 1930, a pedido de Washington Luís, reuniu milhares de homens para atacar Minas Gerais na expectativa de fazer abortar a revolução que a Aliança Liberal pusera na rua.
O coronelismo, como sistema nacional de poder, acabou em 1930, mais precisamente com a prisão do governador gaúcho, Flores da Cunha, em 1937. O centralismo estado-novista destruiu o federalismo de 1891 e reduziu o poder dos governadores e de seus coronéis. Mas os coronéis não desapareceram. Alguns da velha estirpe ainda sobreviveram ao Estado Novo. Chico Romão viveu até a década de 60, assustado ao final da vida com o surgimento das Ligas Camponesas. E surgiu o novo coronel, metamorfose do antigo, que vive da sobrevivência de traços, práticas e valores remanescentes dos velhos tempos.
O coronel típico da Primeira República dependia do governo para manter seu poder. Era governista por definição. Nos casos extremos em que se revoltava contra o governo estadual, fazia-o em conluio com o governo federal. Víctor Nunes percebeu com clareza o problema. O coronel não era funcionário do governo, mas tão pouco senhor absoluto, independente, isolado em seus domínios. Era um intermediário. Sua intermediação sustentava-se em dois pilares. Um deles era a incapacidade do governo de levar a administração, sobretudo da justiça, à população. Constrangido ou de bom grado, o governo aliava-se ao poder privado, renunciando a seu caráter público.
A lei parava na porteira das fazendas. O outro era a dependência econômica e social da população. Até 1940, a população brasileira era predominantemente rural (60% nessa data), pobre e analfabeta. Um elementar senso de autodefesa lhe dizia que era mais vantajoso submeter-se ao poder e à proteção do coronel. Fora dessa proteção, restava-lhe a lei, isto é, o total desamparo. Não havia direitos civis, não havia direitos políticos autênticos, não havia cidadãos. Havia o poder do governo e o poder do coronel, em conluio.
Com base nessas premissas, Víctor Nunes previa o fim do coronelismo e do coronel quando o país se industrializasse e urbanizasse, as eleições se moralizassem, o cidadão se emancipasse. O país urbanizou-se (81% da população são hoje urbanos), industrializou-se (só 24% da mão de obra se emprega na agricultura), o direito do voto se estendeu a 65% da população, a justiça eleitoral acabou com a fraude. Diante desses dados, é preciso optar por uma das seguintes saídas: ou dizer que Víctor Nunes se enganou na previsão; ou admitir que ele acertou e que falar hoje em coronel é mera figura de linguagem, retórica política; ou afirmar que a palavra está sendo usada com outro sentido.
Vamos por partes. São inegáveis as drásticas mudanças econômicas e demográficas por que passou o país desde 1950. Mas algumas coisas não mudaram tanto. Não mudaram a pobreza, a desigualdade e, até recentemente, o nível educacional. Os 50% mais pobres da população ainda recebem apenas 14,5% da renda nacional, ao passo que o 1% mais rico fica com quase a mesma parcela, 12,5%. Adotando-se a linha divisória de 70 dólares, definida pela Organização Mundial de Saúde, mais de 50% dos brasileiros devem ser classificados como pobres. Para o Nordeste, a porcentagem sobe para 80%. A renda per capita de São Paulo equivale a 5 vezes a do Piauí. Cerca de 30% da população de 15 anos ou mais são analfabetos funcionais (menos de quatro anos de estudo). No Nordeste, a porcentagem é de 50%, no Nordeste rural, de 72%. A pobreza e a baixa escolaridade mantêm a dependência de grande parte do eleitorado. O clientelismo tem aí terreno fértil em que vicejar.
Além disso, a política nem sempre segue de perto, de imediato e em linha reta, as transformações sociais. Uma consequência política das mudanças pode ser detectada na década de 30. Surgiu no Rio de Janeiro o populismo, que se difundiu pelas grandes cidades nas décadas de 50 e 60. Ao mesmo tempo que invadia as cidades, a população foi pela primeira vez na história do país admitida em massa ao exercício do voto. Era um passo à frente, mas estávamos longe de um eleitorado maduro. No populismo, o eleitor dispensava a mediação do coronel mas fazia do líder um grande coronel urbano de que esperava ajuda e proteção. No Rio de Janeiro, o populismo montou uma máquina clientelística de corrupção e distribuição de favores à custa de recursos públicos. Mas quando o eleitorado começou a emancipar-se, o golpe de 1964 paralisou a experiência e atrasou o aprendizado democrático por 26 anos, criando um descompasso entre o social e o político. Grande parte do eleitorado de hoje começou a votar sob a ditadura. Muitos desses eleitores ainda funcionam no antigo esquema clientelístico.
Por fim, quando se fala, melhor, quando eu falo, de coronéis hoje uso a parte pelo todo. O coronel de hoje não vive num sistema coronelista que envolvia os três níveis de governo, não derruba governadores, não tem seu poder baseado na posse da terra e no controle da população rural. Mas mantém do antigo coronel a arrogância e a prepotência no trato com os adversários, a inadaptação às regras da convivência democrática, a convicção de estar acima da lei, a incapacidade de distinguir o público do privado, o uso do poder para conseguir empregos, contratos, financiamentos, subsídios e outros favores para enriquecimento próprio e da parentela. Tempera tudo isso com o molho do paternalismo e do clientelismo distribuindo as sobras das benesses públicas de que se apropria. Habilidoso, ele pode usar máscaras, como a do líder populista, ou do campeão da moralidade. Para conseguir tudo isso, conta hoje, como contava ontem, com a conivência dos governos estadual e federal, prontos a comprar seu apoio para manter a base de sustentação, fazer aprovar leis, evitar investigações indesejáveis. Nesse sentido, o novo coronel é parte de um sistema clientelístico nacional.
Nem errou Víctor Nunes, nem uso figura de linguagem. Apenas opero ligeiro deslizamento semântico do conceito. Tudo resolvido? Não. Que os pobres, os analfabetos funcionais, os eleitores iniciantes, elejam e reelejam os neo-coronéis, pode-se entender. Mas quando artistas e intelectuais se solidarizam com paizinhos e paizões, a análise precisa ir mais fundo, além da sociologia. Ela precisa questionar a natureza mesma de nossa cidadania, aventurando-se nos subterrâneos da cultura e da psicologia coletiva. Os valores subjacentes aos pólos coronel/cliente, pai/filho, senhor/servo, parecem persistir na cabeça de muitos de nossos melhores cidadãos e cidadãs, bloqueando a consolidação democrática.
Extraído do blog Tok de Histórias do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
https://tokdehistoria.com.br/2020/12/22/as-metamorfoses-do-coronelismo/
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Clerisvaldo B, Chagas, 22/23 de dezembro de 2020
Escritor Símbolo do Sertão Alagoano
Crônica: 2.439
Seguimos pelas trilhas da caatinga em fila indiana. Vaqueiro à frente com machado ao ombro, colega e amigo José Ialdo Aquino e, eu fechando a marcha, em busca de mel silvestre. Depois de boa caminhada, o guia deu com a mão e paramos sob bela florida e perfumosa, catingueira. O homem apontou com o dedo para a galhada da Leguminosae caesalpinioideae, onde havia um oco no pau e disse: “É ali onde as abelhas mandaçaias estão arranchadas”. Ficamos aguardando suas ações. Com o machado decepou o galho da árvore, produziu fumaça e espantou as abelhas. Em seguida, ajudou a alargar o oco do pau e escorreu o mel transparente e apetitoso para uma vasilha. Todos de água na boca aguardando aquela delícia selvagem da nossa flora. Se existe um doce extremamente doce, estava ali diante de nós. “Tão gostoso e tão doce que arrepuna!”, soltou alguém.
Encerrada a aventura no seio da mata, retornamos satisfeitos com várias investidas na estrada contra o mel cobiçado da vasilha. Dali sentamos no banco pela-porco da casa-grande de alpendre, onde o vaqueiro narrava sua participação nos combates da Revolução Paulista: “Tantos cadáveres que nem tínhamos vontade de comer outra coisa, somente doce e nada mais”. Ali conheci a capelinha bem arrumada onde fora assassinado o patriarca da família Aquino, pelo cangaceiro de Lampião, Português. Eu ainda não havia entrado no mundo fantástico das pesquisas, porém, produzi interessantes slides da fazenda. Com minha boa vontade e frustração, até hoje aguardo a devolução do material emprestado. Diz o ditado: que “quem empresta não presta”. Retornei imensamente feliz daquela incursão pela nossa flora. Ainda fui surpreendido nesse retorno, ao avistar a bela paisagem de Santana do Ipanema ao passarmos pelo sopé da serra Aguda. Não conhecia o cenário magnífico visto daquele monte circundante da cidade.
Décadas depois, pesquisei e trouxe à tona o episódio proibido e sangrento fruto da covardia do cangaceiro Português e mais dois asseclas. Acha-se relatado no livro “Lampião em Alagoas”, com o título: “A Morte do Patriarca”, publicado em 2012 pela editora GrafMarques, de Maceió. Foi o doce do mel com o amargo do fel. Muitas outras histórias das nossas caatingas permanecem escritas nas páginas reviradas dos nossos vegetais.
Meu Sertão, meu sertãozinho...
Salve!
ASPECTO DA CAATINGA SERTANEJA (FOTO: BIANCA CHAGAS/ARQUIVO DO AUTOR).
Por Itamar Nunes - Art
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“Detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata.”
Mulher, poesia, música
Clarice Lispector – Vinicius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e
música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante.
Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música porque
você é o nosso menestrel. Vinicius, você amou realmente alguém na vida?
Telefonei para uma das mulheres com que você casou, e ela disse que você ama
tudo, a tudo você se dá inteiro: a crianças, a mulheres, a amizades. Então me
veio a ideia de que você ama o amor, e nele inclui as mulheres.
Vinicius de Moraes – Que eu amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu
compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de homem para mulher, de
mulher para homem, o amor de mulher por mulher, o amor de homem para homem e o
amor de ser humano pela comunidade de seus semelhantes. Eu amo esse amor mas
isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a
impressão que, àquelas que amei realmente, me dei todo.
Clarice Lispector – Acredito, Vinicius. Acredito mesmo. Embora eu também
acredite que quando um homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a
união é sempre renovada, pouco importam as brigas e os desentendimentos: duas
pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo par novos
amores.
Vinicius de Moraes – É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói
para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente
o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito.
Clarice Lispector – Você já amou desse modo?
Vinicius de Moraes – Eu só tenho amado desse modo.
Clarice Lispector – Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou
porque se cansa da primeira?
Vinicius de Moraes – Na minha vida tem sido como se uma mulher me
depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor paixão pela sua
própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está
expresso com felicidade no dístico final do meu soneto “Fidelidade”: “que não
seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”.
Clarice Lispector – Você sabe que é um ídolo para a juventude? Será que
agora que apareceu o Chico, as mocinhas trocaram de ídolo, as mocinhas e os
mocinhos?
Vinicius de Moraes – Acho que é diferente. A juventude procura em mim o
pai amigo, que viveu e que tem uma experiência a transmitir. Chico não, é ídolo
mesmo, trata-se de idolatria.
Clarice Lispector – Você suporta ser ídolo? Eu não suportaria.
Vinicius de Moraes – Às vezes fico mal-humorado. Mas uma dessas moças
explicou: é que você, Vinicius, vive nas estantes de nossos livros, nas canções
que todo mundo canta, na televisão. Você vive conosco, em nossa casa.
Clarice Lispector – Qual é a artista de cinema que você amaria?
Vinicius de Moraes – Marilyn Monroe. Foi um dos seres mais lindos que já
nasceram. Se só existisse ela, já justificaria a existência dos Estados Unidos.
Eu casaria com ela e certamente não daria certo porque é difícil amar uma
mulher tão célebre. Só sou ciumento fisicamente, é o ciúme de bicho, não tenho
outro.
Clarice Lispector – Fale-me sobre sua música.
Vinicius de Moraes – Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não s
eparo a poesia que está nos livros da que está nas canções.
Clarice Lispector – Vinicius, você já se sentiu sozinho na vida? Já sentiu
algum desamparo?
Vinicius de Moraes – Acho que sou um homem bastante sozinho. Ou pelo menos
eu tenho um sentimento muito agudo de solidão.
Clarice Lispector – Isso explicaria o fato de você amar tanto, Vinicius.
Vinicius de Moraes – O fato de querer me comunicar tanto.
Clarice Lispector – Você sabe que admiro muito seus poemas, e, mais do que
gostar, eu os amo. O que é a poesia para você?
Vinicius de Moraes – Não sei, eu nunca escrevo poemas abstratos, talvez
seja o modo de tornar a realidade mágica aos meus próprios olhos. De envolvê-la
com esse tecido que dá uma dimensão mais profunda e consequentemente mais bela.
Clarice Lispector – Reflita um pouco e me diga qual é a coisa mais
importante do mundo, Vinicius?
Vinicius de Moraes – Para mim é a mulher, certamente.
Clarice Lispector – Você quer falar sobre sua música? Estou escutando.
Vinicius de Moraes – Dizem, na minha família, que eu cantei antes de falar. E havia uma cançãozinha que eu repetia e que tinha um leve tema de sons. Fui criado no mundo da música, minha mãe e minha avó tocavam piano, eu me lembro de como me machucavam aquelas valsas antigas.
– Meu pai também tocava violão, cresci ouvindo música. Depois a poesia fez o resto.
Fizemos uma pausa. Ele continuou:
– Tenho tanta ternura pela sua mão queimada...
(Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho.) Vinicius disse, tomando um gole de uísque:
– É curioso, a alegria não é um sentimento nem uma atmosfera de vida nada
criadora. Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que
resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu
não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento
de equilíbrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo
para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal
humanamente atingível.
Clarice Lispector – Como é que você se deu dentro da vida diplomática,
você que é o antiformal por excelência, você que é livre por excelência?
Vinicius de Moraes – Acontece que detesto tudo o que oprime o homem,
inclusive a gravata. Ora, é notório que o diplomata é um homem que usa gravata.
Dentro da diplomacia fiz bons amigos até hoje. Depois houve outro fato: as raízes
e o sangue falaram mais alto. Acho muito difícil um homem que não volta ao seu
quintal, para chegar ou pelo menos aproximar-se do conhecimento de si mesmo.
Clarice Lispector – Como pessoa, Vinicius, o que é que desejaria alcançar?
Vinicius de Moraes – Eu desejaria alcançar outra coisa. Isso de calma no
seio da paixão. Mas desejaria alcançar uma tal capacidade de amar que me
pudesse fazer útil aos meus semelhantes.
Clarice Lispector – Quero lhe pedir um favor: faça um poema agora mesmo.
Tenho certeza de que não será banal. Se você quiser, Menestrel, fale o seu
poema.
Vinicius de Moraes – Meu poema é em duas linhas: você escreve uma palavra em cima e a outra embaixo porque é um verso.
É assim:
Clarice
Lispector
– Acho lindo o teu nome, Clarice.
Clarice Lispector – Você poderia dizer quais as maiores emoções que já
teve? Eu, por exemplo, tive tantas e tantas, boas e péssimas, que não ousaria
falar delas.
Vinicius de Moraes – Minhas maiores emoções foram ligadas ao amor. O
nascimento de filhos, as primeiras posses e os últimos adeuses. Mesmo tendo
duas experiências de quase morte – desastre de avião e de carro – mesmo essa
experiência de quase morte nem de longe se aproximou dessas emoções de que te
falei.
Clarice Lispector – Você se sente feliz? Essa, Vinicius, é uma pergunta
idiota, mas que eu gostaria que você respondesse.
Vinicius de Moraes – Se a felicidade existe, eu só sou feliz enquanto me
queimo e quando a pessoa se queima não é feliz. A própria felicidade é
dolorosa.
Meditamos um pouco, conversamos mais ainda, Vinicius saiu.
Então telefonei para uma das esposas de Vinicius.
Clarice Lispector – Como é que você se sente casada com Vinicius?
Ela respondeu com aquela voz que é um murmúrio de pássaro:
– Muito bem. Ele me dá muito. E mais importante do que isso, ele me ajuda a
viver, a conhecer a vida, a gostar das pessoas.
Depois conversei com uma mocinha inteligente:
– A música de Vinicius, disse ela, fala muito de amor e a gente se identifica
sempre com ela.
Clarice Lispector – Você teria um “caso” com ele?
– Não, porque apesar de achar Vinicius amorável, eu amo um outro homem. E
Vinicius me revela ainda mais que eu amo aquele homem. A música dele faz a
gente gostar ainda mais do amor. E “de repente, não mais que de repente”, ele
se transforma em outro: e é o nosso poetinha como o chamamos.
Eis pois alguns segredos de uma figura humana grande e que vive a todo risco.
Porque há grandeza em Vinicius de Moraes.
VINICIUS DE
MORAES – Poeta, assumiu postos diplomáticos em Los Angeles, Paris e Roma.
Tornou-se um dos compositores mais populares da MPB, e um dos integrantes da
Bossa Nova. Colaborou com vários jornais e revistas, como articulista e crítico
de cinema. Escreveu Orfeu da Conceição, que teve montagem teatral em 1956, com
cenários de Oscar Niemeyer. Posteriormente transformada em filme (com o
título de Orfeu negro) pelo diretor francês Marcel Camus, em 1959, foi premiada
com a Palma de Ouro no Festival de Cannes e com o Oscar, em Hollywood, como o
melhor filme estrangeiro do ano. Nesse filme acontece seu primeiro trabalho
com Tom Jobim. Entre seus parceiros estão Carlos Lyra, Edu
Lobo, Francis Hime, Dorival Caymmi, Baden Powell e Toquinho. Entrevistas
realizadas por Clarice Lispector, entre maio de 1968 e outubro de 1969.
Fonte:
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco,
2007.
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