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sábado, 21 de maio de 2022

QUEM SABE FAZ AO VIVO AS VERDADES DE ANGICO

(*) Por: Leandro Cardoso Fernandes 

Pra começar bem a semana, mais um grande artigo do confrade Leandro Fernandes(Foto)

Respectivo texto de uma palestra proferida com garra e maestria por ele no 'Cariri Cangaço 2009' e agora gentilmente enviada como "Gás" para o Lampião Aceso e compartilhada com vocês. 

Siiiiiim! Na próxima semana vamos conhecer a vida, andanças, obras, opinião e as atuais pesquisas de Leandro Fernandes em uma super entrevista, Aguardem!

Escrever sobre o combate do Angico traz uma sensação ambígua: um certo receio por estar pisando em solo instável, recheado de controvérsias e versões discrepantes; e, por outro lado, um destemor confiante por estar devidamente fundamentado para questionar e apontar respostas para alguns dos pontos obscuros.

O que vai exposto a seguir é um exercício de reflexão sobre o dia mais intrigante da historiografia do cangaço, sem pretensões a resolver todos os mistérios do Angico. O epílogo de Lampião sempre foi um palco de vardades mentirosas e mentiras verdadeiras, parafraseando o expert Alcino Alves Costa, que colocou boa parte do seu trabalho em apontar os fatos inquietantes daquele amanhecer. Os parágrafos enfeixados a seguir são uma tentativa de contemplar o que há de mais claro e seguro para responder a dois questionamentos apenas, dentre os muitos que se nos apresentam em relação a este episódio.

Vamos lá, então.Precisamos, inicialmente, situar o ambiente onde se desenrolou o fatídico combate.

Lampião, já beirando os quarenta anos, desde meados de 1937 que não brigava. Seu último combate digno de nota foi uma “botada” que Zé de Rufina, lhe fez na Lagoa do Domingos João, arredores de Canindé do São Francisco (SE). Então, o Lampião que encontramos no Angico é um Virgulino cansado, fugidio e sem interesses em confrontos com tropas volantes. Pouco tempo antes, Maria Bonita estivera em Propriá, incógnita, para investigar possíveis “escarros com sangue”. Ela própria, na véspera do combate, confidenciara à Cila que gostaria de abandonar aquela vida, chegando, inclusive, a conversarem sobre o que aconteceria caso fossem apanhadas por volantes. O grupo, cada vez mais, parecia menos aguerrido.

Candeeiro, em entrevista concedida ao documentário “Candeeiro” de Aderbal Nogueira, revela que Lampião, antes de atravessar o São Francisco, disse a seus comandados que estava com vontade de fazer uma ‘longa viagem’ para Minas Gerais e que, quem quisesse ir junto, seria bem vindo:  
“Tô com vontade de ir pra Minas. Por que se vai pra Sergipe leva bala; pra Bahia, leva bala; pra Pernambuco, bala. Aqui não dá mais pra viver.”
Tudo sinalizava para uma guinada na vida do Rei do Cangaço: ou abandonaria aquela vida para viver em outras plagas, com identidade falsa; ou apenas repetiria o que havia feito em 1928, quando, atravessando para a Bahia, renovou o palco do cangaço. Aqui chegamos ao primeiro questionamento:
Lampião realmente morreu no Angico?
Teria ele abandonado o palco de lutas no sertão, colocado um substituto no seu lugar e rumado para Minas?
Antes de analisarmos os fatos, devemos recordar que há uma certa dificuldade geral em se aceitar “pacificamente” a morte de um herói ou de um mito. Desde os tempos de Dom Sebastião, rei de Portugal, passando por Elvis Presley e agora, mais recentemente, Michael Jackson, que as pessoas tentam se convencer de um possível “milagre” para evitar o fim trágico, a morte de seus ídolos. Com Lampião não foi diferente. O grande chefe de cangaço sempre despertou sentimentos contraditórios, mesmo em seus perseguidores, que colocavam nele a pecha de bandido, mas o admiravam como inimigo valente, destemido e inteligente.

Então, surgem afirmações desse tipo: - o grande estrategista que era Lampião nunca se deixaria apanhar num cerco como o que foi feito em Angico! Entretanto, quem faz esse tipo de afirmação não coloca o risco real da vida; esquece que grandes bandidos, como Jesse James, Billy the Kid e outros foram mortos de maneira semelhante, às vezes sem qualquer esboço de reação. É a vida real, livre dos subterfúgios de nossa vontade romanceada.


Recentemente veio à lume o livro de José Geraldo Aguiar, “Lampião, o invencível – Duas Vidas e Duas Mortes”, afirmando que Lampião teria escapado do cerco de Angico e morrido em Minas Gerais na década de noventa, com identidade trocada (na verdade, várias trocas de nomes).

Ao analisarmos o que está posto no livro supracitado, verifica-se de imediato a falta de embasamento, seja documental, seja por depoimentos de pessoas que conheceram Lampião, para que se possa dar crédito a tal teoria. As entrevistas enfeixadas no livro são de pessoas que tiveram contato com o pretenso Lampião lá em Minas Gerais. Não há qualquer depoimento de quem o conheceu na época do cangaço. O Sr. João Teixeira Lima (o dito Lampião mineiro) poderia muito bem, de maneira muito cômoda, chamar para si a identidade de Lampião, quem sabe buscando intimidar as pessoas em sua volta, mantendo uma atmosfera permanente de mistério em torno de si próprio.

A comprovação de veracidade do conteúdo exposto por José Geraldo Aguiar baseia-se basicamente no próprio depoimento do candidato a Lampião, e em exame comparativo de fotos, que sequer levou em conta a ausência do leucoma característico do olho direito do Rei do Cangaço, no Sr. João Teixeira Lima. Chama a atenção também a gritante diferença entre a personalidade do “Lampião de Buritis” e a do verdadeiro Virgulino Ferreira. O primeiro, um sociopata, de difícil convívio, sem amizades, que quando se via em dificuldades, para conseguir o que desejava, vociferava que era Lampião ou então bradava “você sabe com quem está falando?”.

O verdadeiro Lampião tinha personalidade diametralmente oposta: era cordial, calculista, profícuo em fazer amizades (inclusive com deputados, interventores e autoridades), não demonstrando qualquer problema de relacionamento. Tanto isso é verdade que construiu enorme e sólida rede de coiteiros e amigos em vários estados nordestinos, além de atrair para as fileiras do cangaço centenas de homens e mulheres.

José Geraldo Aguiar, no seu livro, diz que o cangaceiro Zé do Sapo morreu como substituto do Rei do Cangaço, no Angico. Afirma também que os soldados teriam jurado e cumprido, sob pena de morte, não ‘abrir o bico’ sobre a “farsa” encenada na madrugada de 28 de julho de 1938. Ora, basta uma análise superficial dos fatos para perceber que estas ilações estão edificadas sobre pés de barro.
Quem foi o tal de Zé do Sapo?
Alguém o conheceu?
A que subgrupo pertenceu?
Qual o seu nome verdadeiro?
Impossível obter resposta para estas questões, uma vez que são frutos da invenção de um personagem imaginário – à semelhança do Paturi do pesquisador Frederico Bezerra Maciel – para preencher lacunas de uma tese insustentável. Quanto ao cumprimento do ‘juramento’ dos soldados, sob pena de morte, eu pergunto: como conseguir esse intento, apartir de soldados brutos de 3 volantes (Bezerra, Ferreira de Melo e Aniceto), que não conseguiam sequer obedecer à hierarquia? Lembrem-se que Antonio Jacó desobedeceu, à vista de todos, as ordens de João Bezerra quanto a devolver o produto do saque que fizera ao cadáver do cangaceiro Luís Pedro.

Vale ressaltar que nos depoimentos de Zé Sereno, Cila e Candeeiro, Lampião acordara cedo e rezara com o bando (aqueles que quiseram) o Ofício de Nossa Senhora. Depois tomou café feito pelo cangaceiro Vila Nova (o único que estava devidamente equipado), segundo depoimento de Zé Sereno. Após o desjejum com Vila Nova, Lampião ordenou que Amoroso fosse buscar água para o café dos outros, que ainda curtiam o friozinho daquela manhã (sob as cobertas), conforme depoimento de Cila e Candeeiro. O tiroteio irrompeu sobre Amoroso, que, por milagre, pelo medo e embriaguês dos soldados, escapou ileso. Neste momento, Lampião conversava com Zé Sereno e Luís Pedro. Sereno teria dito: “não falei que a gente brigava hoje?”.

Com relação ao reconhecimento do cadáver do Rei do Cangaço, cito aqui, rapidamente, Joaquim Góis, que reconheceu a lesão cicatricial de seu tornozelo direito; Pedro de Cândido, que além de reconhecer a cabeça do Rei e da Rainha do Cangaço, identificou os corpos decapitados para curiosos e jornalistas; e Durval Rodrigues Rosa, que afirmou textualmente “ainda hoje é ‘serviço’ fazer o povo acreditar que foi mesmo
Lampião que morreu naquele dia. (...) Eu tinha visto ele nos dias anteriores e poderia reconhecer aquele rosto em qualquer foto, quanto mais assim de perto, como eu vi.”
Após esta análise concluímos que: Lampião morreu realmente na madrugada de 28 de julho de 1938, na margem sergipana do rio de São Francisco, em Angico.

Passemos ao segundo questionamento.
Qual foi a causa da morte? Veneno? Bala? Outra causa?
Antes de analisarmos os fatos, vale a pena explicar que esta controvésia sobre um possível envenenamento dos cangaceiros ganhou terreno a partir de declarações de Manoel Neto a um jornal pernambucano, sugerindo que os cangaceiros teriam sido envenenados por um coiteiro (cujo nome não cita). Esta e outras declarações veiculadas na imprensa pernambucana foram rebatidas por João Bezerra e por Francisco Ferreira de Melo, creditando-as ao despeito e à tentativa de ofuscar o brilho do feito.

Mais munição para esta controvérsia foi a débil reação do bando no combate em Angico, que também suscitou especulações. Outro reforço à tese está na propalada mortandade de urubus, que, ainda hoje, não foi confirmada. Essa última apareceu em uma declaração de Wandenkolk Wanderley, à imprensa, afirmando que vira vários urubus mortos, contradizendo o depoimento que dera mais de 30 anos antes e que, curiosamente, não apresentava a mortandande dessas aves. Já o escritor Joaquim Góis disse que, ao chegar em Angico, logo após o combate, avistou “muito urubu alegre naquele dia”.

  Wandenkolk participou de comitiva, que esteve em Angico, após o massacre, Em plena efervescência, para o sepultamento das cabeças dos cangaceiros, do Nina Rodrigues, em 1959, ele apareceu no Diário de Pernambuco de 26 de abril, daquele ano, defendendo sua tese, o que suscitou na defesa de João Bezerra, no mesmo periódico.
Acervo Geziel Moura

Uma coisa é certa: se realmente houve a tão propalada mortandade de urubus, a quantidade de veneno ingerida pelos cangaceiros teria sido incrivelmente grande. Outro detalhe importante desta história é que, por causa da fedentina dos corpos, despejaram sobre os mesmos cal e creolina, o que poderia ter causado a morte de algum urubu, por lesão aguda da mucosas digestivas destas aves.
Vamos em frente.

Os Cães

Outro reforço para a tese da farsa e do veneno é que os cachorros não deram o alarme, não denunciando os soldados, que seriam “estranhos”. Mas, mesmo após uma simples análise, encontramos vários motivos para que os cachorros não tivessem se manifestado.

Vejamos.

Em primeiro lugar, nos reportaremos ao perfil dos cães. Candeeiro, em entrevista no vídeo de Aderbal Nogueira, ao responder os questionamentos de Paulo Gastão, o entrevistador, é taxativo em dizer que Guarani, o cachorro de Lampião, era quieto e não latia, apenas “saía atrás da gente” – SIC. Isso nos força a refletir sobre a maneira de ser, a “personalidade” do cão, provavelmente sinalizando que os cães eram de companhia e não feras nervosas que latiam à aproximação de quem quer que fosse. Se esse fosse o caso, os cangaceiros ficariam expostos, pois cachorro latindo no meio da caatinga é o pior que poderia acontecer ao grupo, uma vez que denunciaria sua localização.

Além do mais, como a madrugada fora de chuvisco e frio, muito provavelmente os cães estavam abrigados, ou sob os arbustos ou junto dos donos, sob as tordas. A própria disposição dos grupos naquele leito seco de pedras, dificultaria enormemente o discernimentos dos cães quanto a invasores, pois é sabido que naqueles dias juntaram-se ao bando de Lampião os subgrupos de Zé Sereno, Luís Pedro, o sobrinho de Lampião, José, e os coiteiros Manoel Félix, Pedro de Cândido e Durval. Ou seja: TODOS ESTRANHOS aos cachorros! E ainda faço outro questionamento: como os cães conseguiriam distinguir um soldado de um cangaceiro, uma vez que se vestiam de maneira semelhante, utilizando, inclusive perfumes variados, que confundem o faro canino?

Vamos mais adiante. Ainda desfiando o possível envenenamento de Lampião, eu me questiono: a que horas o Rei do Cangaço teria ingerido o veneno?

Balão, em famosa entrevista, afirma que foram dormir por volta das 22h. Supondo que Lampião tenha jantado antes de dormir - no caso de envenenamento –, deveria ter ingerido algo tóxico nessa ocasião e, portanto, morrido durante a madrugada. No entanto, deparamo-nos com o Capitão Virgulino rezando o Ofício de Nossa Senhora logo cedo (depoimentos de Cila, Candeeiro, Zé Sereno e Balão). Cila, com preguiça, não havia se levantado para fazer a oração. Já Balão, após a reza, voltou a deitar-se, pois ainda era muito cedo e fazia frio. Lampião tomou o café feito pelo cangaceiro Vila Nova e, conversando com Luís Pedro e Sereno, ordena que Amoroso vá buscar água para o café dos outros, ocasião em que o tiroteio é deflagrado.

Aí, então, eu volto a perguntar: a que horas Lampião foi envenenado? Após o “jantar” da noite anterior, a “próxima” provável refeição do Rei do Cangaço, onde poderia ter ingerido algum veneno, seria o café feito e tomado com Vila Nova. No entanto, este cangaceiro não morreu, nem de veneno, nem de tiro, pois o reencontramos por ocasião das entregas, bem de saúde, alguns meses depois.

Ao analisarmos os principais venenos que poderiam ter sido utilizados contra os cangaceiros, e o quadro clínico decorrente de sua ação no organismo, é que realmente temos a certeza de que os cangaceiros no Angico não foram envenenados.

Estricnina: é um alcalóide extremamente tóxico, e uma das substâncias mais amargas que existem; seu gosto é percebido em concentrações da ordem de uma parte por milhão (1ppm). O quadro clínico da intoxicação pela estricnina é bastante exuberante, incluindo pródromos de câimbras e dor; rigidez dorsal e cervical; rigidez de extremidades; agitação e ansiedade; hipertonia; convulsões (com o paciente acordado e lúcido); opistótono (espécie de contratura involuntária da musculatura paravetebral, deixando o corpo em forma de arco); “riso sardônico”; paralisia respiratória e parada cardiorrespiratória. Ao analisarmos as fotos das cabeças cortadas e dos corpos insepultos, não há qualquer evidência de posições de hipertonia ou espasmos da musculatura facial, sugerindo o “riso sardônico”, muito menos relatos do sobreviventes ou da polícia testemunhando crises convulsivas ou contrações involuntárias generalizadas, afastando a possibilidade do seu uso no episódio do Angico.


Arsênico: também conhecido como “veneno de sucessão”, em razão do seu largo uso na crônica histórica, principalmente no assassinato de reis por seus sucessores. A sua grande “vantagem” de uso seria o fato de não ter odor e parecer açúcar, facilitando a administração. Entretanto, no seu quadro de intoxicação, encontramos: arritmias cardíacas graves, neurite, nistagmo, choque circulatório, convulsões, tremores, sudorese, vômitos incoercíveis, tosse, diminuição do nível de consciência, lacrimejamento, etc.... Nada disso foi visto nos cangaceiros, nem pelos que escaparam, nem pelos volantes.

Cianureto: têm um típico sabor amargo, lembrando amêndoas. A sintomatologia da overdose inclui taquicardia, alternando com bradicardia; hipotensão arterial/choque circulatório; prurido, agitação psicomotora; dor de cabeça; cianose; acidose; nistagmo; coma, hipotermia; náuseas e vômitos incoercíveis; edema agudo pulmonar. Da mesma forma, nenhum dos sinais e sintomas expostos aqui foi visto ou relatado por cangaceiros ou policiais, desmoronando, definitivamente, a tese do envenenamento.

Como se não fosse o bastante, vale ainda lembrar que, entre os que morreram, Enedina foi alvejada na cabeça enquanto estava correndo (depoimento de Cila e Candeeiro); Mergulhão, antes de morrer, conversou com Candeeiro (depoimento de Candeeiro); Luís Pedro foi visto por cangaceiros e policiais conversando com Maria Bonita ferida; Lampião conversava com Zé Sereno e Luís Pedro quando o combate iniciou. Ou seja: dos onze que morreram, cinco possuem evidências sólidas testemunhais de que não estavam envenenados ou com sinais (ou sintomas) de envenenamento.

Vejamos as palavras de Candeeiro, em resposta ao questionamento de Paulo Gastão, no vídeo de Aderbal Nogueira:
- “...E que Lampião morreu envenenado, o que é que você acha dessa história?” – Paulo Gastão.
- “De jeito nenhum. Lá não tinha veneno, não, rapaz. Lhe juro como essa luz que nóis tamo vendo” – Candeeiro.
O Álcool

O cangaço e sua repressão eram movidos a álcool. E os efeitos sistêmicos do etanol, na concentração de até 3g/litro de sangue, podem explicar muitos dos supostos desencontros do Angico, principalmente entre os depoimentos. Alterações como perda da eficiência (os tiros perdidos sobre Amoroso), déficit de atenção e prejuízo de julgamento e controle (a quebra de hierarquia, as agressões de Ferreira de Melo a Durval), déficit de atenção, memória e amnésia alcoólica (as discrepâncias com relação à chuva, horários e companheiros presentes).

As limitações impostas pelo excesso de álcool somadas à dificuldade natural de registro das situações que acontecem perifericamente, numa situação de intenso estresse físico e emocional, podem, sem sombra de dúvida, resultar em pequenas imprecisões e distorções, principalmente no que diz respeito à sucessão dos acontecimentos.

Com relação às divergências no calor do combate, o depoimento dos cangaceiros tende a ser mais fiel, uma vez que os soldados provavelmente beberam durante a madrugada, e os cangaceiros ficaram acordados no máximo até às 23h do dia anterior. E, além do mais, a surpresa do combate, invariavelmente impõe uma sobriedade forçada aos cangaceiros, que estavam em desvantagem e tinham que sobreviver ao ataque surpresa.
  
Bala

O tiroteio ou combate do Angico pode ser rememorado em cores vivas pelos depoimentos de qualquer dos cangaceiros ou volantes sobreviventes. E a maior prova que ele foi intenso e real é o número de mortos e feridos: 12 mortos (incluindo o soldado Adrião) e os feridos: Balão, Candeeiro e João Bezerra.

O revide de Lampião aconteceu, apesar de bem abaixo do esperado para o grande estrategista do Cangaço. No vídeo já citado de Aderbal Nogueira, o entrevistador (Paulo Gastão) faz o seguinte questionamento:
“Como é que um homem com a experiência de Lampião, com esses tiros todos, não deu um tiro nesse tiroteio? - Paulo Gastão.
Deu não! Lampião tava do lado de cima. Amoroso deixou o fuzil, não pode pegar. Aí cerrou o tiroteio pro lado de Lampião” - Candeeiro.
Candeeiro, nesta excelente entrevista, afirma que ainda viu Lampião dando ordens aos cabras, quando do início do tiroteio, mas que não pôde reagir por ter tido seu fuzil danificado.
Candeeiro resume assim o início do combate: estava deitado quando ouviu um tiro seco. Sentou, achando que fosse alguém “treinando”. Ouviu outro tiro, e então já se levantou, e aí o “mundo desabou”. O tiroteio cerrou para os lados de Lampião, que, provavelmente, não teve oportunidade nem tempo para organizar o revide. Estava dado, portanto, o tiro de misericórdia no cangaço, que ainda estrebucharia até maio de 1940, o fim de Corisco.

Conclusão do segundo questionamento:
Lampião morreu vitimado por lesões provocadas por projéteis de arma de fogo, juntamente com mais dez companheiros, no calor do combate do Angico.
Estas são as verdades de Angico, analisadas à luz dos fatos, a partir de depoimentos de sobreviventes e sob a ótica da ciência. A verdade absoluta e imutável nunca será encontrada, pois um mesmo fato, quando observado por diferentes pessoas, resulta em diferentes interpretações. Aí está a principal fonte dos “mistérios” do Angico. O desafio é conseguir o melhor “pente fino” para filtrar toda essa enxurrada de informações, e ter como resultante a evidência mais próxima da verdade, como menor margem de erro, e sairmos desse lodaçal de especulações sensacionalistas que, quando não submetidas à inteligência, além de não levar a nenhum lugar, só nos impõe tropeços e escorregões, como, por exemplo, a inconsistente teoria do Lampião de Buritis.

Não poderia deixar de homenagear os comandantes João Bezerra da Silva e Francisco Ferreira de Melo, os verdadeiros heróis do Angico. Os dois agiram em tão perfeita sintonia que, mesmo diante dos vários empecilhos encontrados (a recusa inicial de Pedro, o início do tiroteio sem que o cerco estivesse fechado...) tiveram sucesso e deram cabo de Lampião, Maria e mais nove cangaceiros. As luzes de Bezerra e Ferreira de Melo ofuscaram largamente a genialidade militar de Lampião, às custas da surpresa (arma que sempre estivera a favor do cangaceiro) e da inteligência militar bem aplicada.

Antes de encerrar, gostaria de enfatizar que esta discussão sobre Angico somente é possível devido à coragem e determinação de dois grandes desbravadores: Antônio Amaury Corrêa de Araújo, que foi quem primeiro vislumbrou como pesquisador os acontecimentos daquela madrugada, e os colocou em ordem, presenteando-nos com uma obra fundamental sobre o assunto; e Alcino Alves Costa, que, inquieto e questionador, vem nos exortando a reflexões como estas, sobre o que parece ser a verdade.

Eles não comungam da célebre máxima exposta no filme “O Homem que Matou o Facínora”, de John Ford, onde o jornalista, ao saber que a verdade dos fatos é bem menos ‘heróica’ do que a lenda, diz:  
Quando a lenda se tornar fato, imprima-se a lenda”.
Alcino e Amaury sempre preferiram os fatos. Parabéns a eles.Para encerrar, deixo um pensamento de Epictetus, que, na sua essência, nos exorta a não apenar ver o episódio do Angico, mas enxergá-lo com bom senso e honestidade.  
“As aparências para a mente são de quatro tipos: as coisas ou são o que parecem ser; ou não são, nem parecem ser; ou são e não parecem ser; ou não são, mas parecem ser. Posicionar-se corretamente frente a todos esses casos é a tarefa do homem sábio”.

Referências:
1) Aguiar, J. G. “Lampião, o invencível – Duas Mortes e Duas Vidas”. Thesaurus editora. 2009.
2) Nogueira, Aderbal. Vídeo “Candeeiro”. 2006.
3) Leikin, B et all. “Poisoning & Toxicology Compendium”. 1998.
4) Dantas, S. A. S. “Lampião – Entre a Espada e a Lei”. Editora Cartgraf. 2008.
5) Araújo, A. A. C. “Entrevistas com Balão, Zé Sereno e Cila”. 1971-73.
6) Fernandes, L. C. “Entrevista com Cila”. São Paulo, 2003.

FOTOS E FATOS:



 1) A Cabeça do Rei do cangaço, com leucoma e provavelmente pedações da massa encefálica nos cabelos. É Lampião, incontestavelmente.

  2) O verdadeiro Lampião, à esquerda. O pretenso Lampião de Buritis, à direita. Notar o formato diferente do queixo. Foto do livro Lampião – Entre a Espada e a Lei” do Pesquisador e escritor potiguar Sérgio Augusto de Souza Dantas.

*Leandro Cardoso Fernandes: É médico (Universidade de Pernambuco – 1997), especialista em Cardiologia e Ecocardiografia pela Escola Paulista de Medicina (2005), autor do livro “Lampião: A Medicina e o Cangaço” (em parceria com Antônio Amaury Corrêa de Araújo); autor do cordel: “Sinhô Pereira: O Homem que Chefiou Lampião”Contato: leandrocfernandes@globo.com  

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MISTÉRIOS DE ANGICO QUEM ERA O CANGACEIRO “NÃO CONHECIDO” – PARTE 2.

 Por Luiz Ruben (*)


Ainda nos documentos citados no artigo anterior, na continuação das minhas pesquisas para meu mais recente livro “O Fim do Cangaço: As Entregas, encontrei mais um documento que talvez esclareça o nome de guerra do cangaceiro "Luiz de Thereza" desta vez no Jornal Gazeta de Alagoas em 1º de novembro de 1938, numa entrevista com o cangaceiro "Cobra Verde".


Segue a transcrição de parte do jornal com a entrevista de Cobra Verde e em anexo o fac-símile do citado jornal, uma foto do cangaceiro Cobra Verde e algumas observações sobre o fato.

Transcrição parcial do Jornal Gazeta de Alagoas, 1 de novembro de 1938

Fala-nos Cobra Verde

Como se sabe três dos sete bandidos capturados em Poço Redondo, os denominados, Vila Nova, Santa Cruz e Cobra Verde achavam-se com Lampião no valhacouto de Angico, quando as forças comandadas pelo 1º tenente, hoje capitão João Bezerra os atacou.

Cobra Verde saía muito cedo pra comprar leite numa vacaria cita em Cajueiro, distante meia légua de Angico. De volta, ouviu os tiros e desconfiou do que acontecia. Então se aproximou cauteloso, subindo a uma elevação, de onde viu, ao longe, o combate. Não quis mais saber de nada e abalou no mundo.

Os bandidos que se encontravam em Angico


Foi Cobra Verde que nos forneceu a relação completa dos celerados que se achavam em Angico, no momento da refrega, ao todo 42 homens e 7 mulheres. Lá estavam Lampeão e os seus sequazes habituais, que nunca dele se afastavam, Quinta-Feira, Elétrico, Laranjeira, Candeeiro, Alecrim, Vila Nova, Quixabeira, Chá Preto e um Menino, sobrinho de Lampeão, de 16 anos.

Estavam também os seguintes grupos:

- O de Luiz Pedro constituído por Moeda, Vinte e Cinco, Cobra Verde, Amoroso, Cruzeiro e Azulão;

- O de José Sereno, formado por Cajazeira, Marinheiro, Pernambucano e Ponto Fino;

- O de Balão por Bom Deveras, Mergulhão, Macela e Besouro;

- O de Criança por Santa Cruz, Colchete, Cuidado;

- O de Jurity, por Penedo, Borboleta e Mangueira;

- O de Diferente por Velvel e Beija-Flor;

E mais: Zabelê, Lavandeira, Pitombeira e Delicado, que costumavam andar sós. As mulheres eram Maria Bonita, amante de Lampeão, Enedina, de Cajazeira, Maria, de Jurity, Bastiana de Moita Braba, Sila, de José Sereno, Dulce, de Criança e Dina, de Delicado.

Observações:

O único cangaceiro relacionado por Cobra Verde que nos parece novidade é o Velvel, (escrito dessa forma no jornal). Este cangaceiro nunca foi mencionado em outras fontes, por isso, me parece plausível que o Luiz de Thereza divulgado na matéria do Jornal de Alagoas do dia 9 de novembro de 1938 com a manchete: Quem era o bandido que não foi identificado no sucesso de Angico, compartilhado por mim a todos os pesquisadores, possa ser esse cangaceiro aqui relacionado por Cobra Verde.

Alerto que a lista dos grupos feita por Cobra Verde pode gerar algumas divergências aos pesquisadores mais atentos.

Cobra Verde, diferente de outros cangaceiros sobreviventes a Angico e que vieram a declarar décadas depois, com divergências, os cangaceiros participantes do evento, não conseguiram fazer uma listagem numerosa. Cobra verde, entretanto, dá essa declaração onde relaciona um maior número de cangaceiros, apenas três meses depois dos fatos de Angico, que culmina com a morte de Lampeão.

Maurício Ettinger identificou o “Não Conhecido” (assim denominado na lista de identificação das cabeças dos cangaceiros na foto da escadaria de Piranhas), como sendo Luiz de Thereza.

Será o Velvel o nome de guerra de Luiz de Thereza? Fica ai uma pista, para ser ou não confirmada!

Espero que ao compartilhar essas “descobertas” esteja contribuindo para o fim de mais um mistério na história do cangaço.

Saudações cangaceiras
Luiz Ruben F. de A. Bonfim
Economista, Turismólogo, Pesquisador de Cangaço e Ferrovias.

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LAMPIÃO EM CAPELA COM "ENEDINA", A PROSTITUTA.

 


"Se o cumerço (comércio) tivesse (estivesse) aberto, iria comprar para voçe (você) um vestido de seda e um bom perfume".

Lampião com a prostituta Enedina, depois de tê-la, na cidade de Capela, no Estado de Sergipe no dia 25 de Novembro de 1929. Nesse período Lampião ainda era solteirão, ainda não estava em companhia de Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita.

Fonte: facebook

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LAMPIÃO E UMA PROSTITUTA! EM CAPELA SERGIPE EM 1929.

 Por Guilherme Machado

Obs. a fotografia da prostituta que aparece na matéria não é a de Enedina... A foto é da prostituta Amélia Mendes da Silva, que viveu em Campina Grande PB. e teve com vários Cangaceiros.

Foi por volta de 1929 em sua primeira ida a cidade de Capela Sergipe... Depois de passear e até ir ao cinema da cidade, Lampião sempre dominado pelo erotismo, foi até a casa da Prostituta por nome Enedina. Ordenou-lhe que deixasse as portas da frente e dos fundos abertas, e disse-lhe: "Se aparecê os macacos (policiais) por uma ou por outra eu tenho que sair por cima deles" No quarto cuja porta Lampião a trancou por dentro, desfez se todos os embornais, cartucheiras, armas e roupas, ficando apenas de alpercatas e de camisa de meia a tal da camiseta. Ao se despir a rapariga quis ser gentil, e quis ajuda-lo. Ele e deteve a com um gesto:

Não pegue em nada: Minhas armas e neste borná só pode alguém pegar depois de morrer o Capitão Lampião. Pôs o fuzil e o parabellum ao alcance das mãos, sobre a cama ele colocou seu longo punhal... Depois do rala e rola Lampião suspirou e falou uma frase digna de um super amante ( Este quarto não cabe a metade dos cabras que este aqui tem sangrado, levantando o punhal em direção aos céus) Deu setenta mil réis a Enedina" e lamentando falou? é uma pena que o comercio não estar aberto para eu comprar para você um vestido e um perfume dos bons!!!

Fonte: Do livro O incrível mundo do Cangaço vol.2 autor: Antonio Vilela de Souza.

https://mateusbrandodesouza.blogspot.com/2019/10/lampiao-e-uma-prostituta-em-capela.html

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ENTREVISTA DO CANGACEIRO “COBRA VERDE”

 Entrou no cangaço para ganhar uns “cobres", e, na madrugada do tiroteio em angico, foi buscar o leite....!

Fonte: A Noite ( edição ..14/11/ 1938 ) Transcrição de Ivanildo Silveira


Cobra Verde tem apenas 21 anos de idade , segundo nos declarou. Há dois anos e 10 meses que é cangaceiro. Natural de Piranhas-AL, fazia parte do grupo de ‘Moreno’. O primeiro combate que teve foi no povoado Navio, com a força do sargento ‘Negrinho’.

Perguntamos a ele por que abandonou a vida pacata da cidade para viver como bicho na caatinga, ao que ele respondeu, em sua própria linguagem : “
"Eu era operário da Fábrica da Pedra [Delmiro Gouveia, AL] e ganhava de dez a quatorze mil réis por semana . Era um aperreio para mim, rapaz novo e que queria viver limpo como os outros . Era muito injustiçado na vida. Por isso resolvi ser bandido para ver se arranja uns cobres. Achei boa a vida. Cheguei a possuir dois contos de réis, fora o 'ouro'".
Conta que nunca maltratou alguém, e que vivia no cangaço só para arranjar “ uns cobres “. Disse que fez diversos saques, alguns com Luiz Pedro. No último apresentou aos bandidos, apenas nove contos de réis, escondendo o resto. O chefe era muito bom , mas era muito sabido.

Declarou-nos, ainda, que esteve no Combate de Angico (quando morreu Lampião ). Não dentro do cerco, mas fora porque fora buscar leite muito cedo para a tropa, a mandado do Capitão. Quando foi chegando no coito viu a bagaceira (tiroteio ) de longe, saiu correndo para a Fazenda Cuiabá onde encontrou Balão e outros que, igualmente, haviam fugido do tiroteio.

O Grupo – continua  - era composto de 42 homens e 7 mulheres. Com a morte de Lampião esfacelou-se o cangaceirismo no nordeste , porque era o “ chefe”  que fornecia e dava ordens a todos os grupos de cangaceiros.

O desejo de Cobra Verde é trabalhar honestamente. Não quer voltar para o sertão.

Certificado de reservista do exército de Cobra Verde.
Créditos Ciro Barbosa , grupo Viva Piranhas (Facebook).

OBS: Foto de Cobra Verde (autor desconhecido) por ocasião das entregas dos cangaceiros à polícia. Ano: 1938 no Quartel da polícia em Santana do Ipanema-AL.

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MEMÓRIAS DE UMA EX-CANGACEIRA

 A ÚLTIMA ENTREVISTA1 DE MARIA ADÍLIA

Por Gilvan de Melo Santos 

 Maria Adília e autor deste artigo, em janeiro de 2002. 
Dia da entrevista e dois meses antes da sua morte.

Em janeiro de 2002, de posse de uma filmadora amadora SVHS, entrei na pobre casa de uma mulher que pertenceu ao bando de Lampião. Fascinado e curioso por me deparar com uma representação viva do tempo e espaço do cangaço, fenômeno por mim lido e visto até então apenas em livros, fotografias, filmes, jornais, peças de barro, pintura, e tantas outras manifestações artísticas, entrevistei a companheira do cangaceiro Canário, Maria Adília.

Este artigo apresenta trechos discursivos desta entrevista, a última de Maria Adília 2. Poderia chamar esta entrevista de conversa devido à liberdade concedida à entrevistada de expressar sua própria experiência, pois, como bem adverte Eduardo Coutinho, tentei esquecer que tinha uma câmera na mão, instrumento de poder que muitas vezes inibe interlocutores a se expressarem livremente 3.

Devido também à resistência de Adília em conversar “aquelas coisas” sobre cangaço 4, deixei o comando indireto da conversa para o guia turístico e artista Beto Patriota; o que justifica o entrecruzamento constante entre presente e passado na fala da ex-cangaceira, bem como das vozes de entrevistador, entrevistada e interlocutores durante o trabalho. A estratégia forçada tornou a sua fala menos presa às exigências da pesquisa, porém mais próxima ao método de associação livre proposto por Sigmund Freud no final do século XIX. Não querendo dizer que diante do silêncio expectante da entrevistada, não perguntei sobre a sua entrada no cangaço, Lampião, Maria Bonita ou outras questões de meu interesse.

O espaço para a interlocução foi a casa da ex-cangaceira, localizada na periferia da cidade de Poço Redondo, a cento e oitenta e quatro quilômetros de Aracaju,capital sergipana, às margens do Rio São Francisco, com população de aproximadamente vinte e seis mil habitantes e economia voltava para a agricultura e pecuária. Faz parte deste município a grota de angico, local privilegiado historicamente por ser palco de uma das maiores atrocidades realizadas pela polícia nordestina: morte e exposição das cabeças cortadas de Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros, na madrugada de 1938.

Foram percebidos na prefeitura e na praça principal do município signos referentes a um Lampião herói, através da construção de monumentos e placas em homenagem ao famoso cangaceiro, bem como de agenciamentos discursivos manifestados nas falas de seus artistas, o que traduz uma memória armazenada em suas instituições e seus símbolos, formas de impregnação do mito do herói e da consequente imagem midiática da cidade5. Entrevistando os artesãos Beto Patriota e Tonho, por exemplo, ambos afirmaram que as pessoas tinham mais medo da polícia do que dos cangaceiros, e que Lampião e Antônio Conselheiro estão vivos hoje naqueles que resistem às injustiças sociais6.

Segundo Costa 7, Poço Redondo é a cidade brasileira com o maior número de cangaceiros nascidos em seu chão. Conhecida como “a capital do cangaço”, teve mais de trinta, dentre homens e mulheres. Nela nasceram Sila (companheira de Zé Sereno), Diferente e Mergulhão (irmãos de Sila, sendo este último morto na chacina de Angico)8, Canário (companheiro de Maria Adília), Penedinho (cangaceiro que matou Canário e era primo-irmão de Adília)9 e Maria Adília. Acrescente a estes, coiteiros como Cumpade Bel, Durval (dono da antiga fazenda Angico), Mané Félix e o mais famoso, Pedro de Cândido, aquele que, torturado, revelou à polícia o esconderijo dos cangaceiros no dia anterior à chacina.

Panelas de alumínio na cozinha, retratos antigos, plantas e cadeira de balanço na sala, facilitavam o trânsito entre o momento da entrevista e o passado através do qual tinha interesse em mergulhar através das imagens produzidas pela memória daquela mulher. Memória que faz dobrar o tempo e traz saudades enraizadas da infância de quem experimentou os ares do sertão nordestino.

Como grande parte das mulheres que entraram no cangaço, Maria Adília, ainda adolescente, experimentou situações de perseguições e sofrimentos. Comparando o cangaço ao inferno, expõe na entrevista o amargor do preço de sua paixão. Ao ser questionada sobre o motivo que a levou a ingressar no cangaço, ela conta de
uma proposta do seu namorado, Bernardino, futuro cangaceiro Canário.

Segue o diálogo:

ADÍLIA 
"Eu fui porque quis. O rapaz era daqui, de Poço Redondo. Ainda não tinha dezesseis ainda, ainda ia interar. Eu namorava com ele. Nós dois quase menino comecemo a namorar. Meus pais não queria e os pais dele não queria. Ele me falou que ia pro sul, aí ele perguntou se eu ia pro sul e com dois anos ele vinha me buscar. Aí eu disse: Se você for pro inferno e vier me buscar eu vou, quanto mais pro sul (...) pensando outra coisa".
ENTREVISTADOR: Aí não era pro Sul, era pro Cangaço?
ADÍLIAEra pro inferno. 10
Ela não é a única ex-cangaceira a lembrar com dor os tempos do cangaço. Em entrevista ao jornal Diário de Pernambuco, o cangaceiro apelidado por “Vinte e Cinco” comentou: “Sou José Alves de Matos, natural de Paripiranga, no Estado da Bahia. Em Paripiranga começou a minha história triste que não quero recordar (...) foi lá que saí para entrar no bando do Capitão Virgolino”11. Também Benício Alves dos Santos, o cangaceiro Saracura, pertencente por cinco a seis anos ao bando de Lampião, questionado se sentia saudades do tempo do cangaço e se voltaria a fazer parte do bando, responde: “Não, não, nada... eu odeio quando falam daquele tempo” 12.

Entretanto, como a memória é feita de fios trançados por múltiplas experiências, quer sejam individuais ou coletivas, e dialoga com o contexto histórico, incluindo suas exigências e interesses próprios, Sila e Dadá enalteceram aspectos nobres da vida no cangaço. Ao falar sobre o cangaço, Dadá, companheira de Corisco, afirma que foi a maior união que ela já viu na vida; uma espécie de “família de gente grande” 13.

Para Sila, “mulher no cangaço era como flor: se encostar numa delas, machuca”. Ainda no mesmo depoimento, acrescenta que “todos os cangaceiros eram muito amorosos, tinham tanto carinho que eram capazes de esquecerem das armas” 14. O que justifica as divergências dos discursos das cangaceiras e dos cangaceiros acima mencionados, além de questões puramente subjetivas, subtende-se que seja a influência do contexto histórico no momento das enunciações. Construídos em lugares e tempos diferentes, os discursos ficam entrincheirados por uma “bacia semântica”15, dentro da qual imagens e lembranças, bastante sincronizadas, constituem o seu conteúdo.

Neste sentido, o cangaceiro Vinte e Cinco, na época da enunciação do seu discurso (1959), vivia o tempo do desenvolvimentismo nacionalista de Juscelino Kubitschek, período marcado, sobretudo, pela busca da modernidade em detrimento da tradição, industrialização efervescente, controle dos sindicatos e pelo medo dos comunistas e suas representações imaginárias, incluindo o cangaço 17. Basta lembrar que em 1935, posto no leque da tradição irrendentista do Brasil, e alimentado tanto pelo governo Vargas quanto pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), Lampião foi vinculado à imagem de revolucionário, “defensor da liberdade
e da vida do camponês” 18.

Ainda mergulhado na “bacia semântica” do desenvolvimentismo nacionalista desde a era getulista e adentrando nos meandros da ditadura militar, marcados principalmente pela repressão radical a toda força política e todo discurso contrário ao governo dos generais, a fala do cangaceiro Saracura revela a tentativa de negar (“não, não, nada...”) um período de resistência à lei, não mais permitido no tempo de sua enunciação.

Ao contrário, Dadá e Sila, nas décadas de 80 e 90, experimentavam os primórdios da nova abertura política representada, sobretudo,pela anistia aos exilados políticos e pelo fim da ditadura, apesar da insistência do país em querer ascender à categoria de país de primeiro mundo, redundância mítica do nacionalismo e desenvolvimentismo outrora citados e ressignificados por governos civis. O que chama a atenção na fala da ex-cangaceira é que, paradoxalmente, imbuído de um realismo sensorial e, diria, na contramão de um discurso dominante na “capital do cangaço” através do qual Lampião é um herói contra as forças da injustiça social, Adília destaca: “a pessoa viver dois anos correndo pelo mato não é boa coisa não né ?” 19.

É certo que neste trecho nos é revelado o caráter nômade da vida dos cangaceiros de Lampião, porém, ao destacar uma vida de perseguição constante, em detrimento do romantismo expresso pelas suas companheiras Dadá e Sila, e por ainda lamentar a vida “infernal” das mulheres grávidas nas caatingas nordestinas, Maria amplifica mais dores que prazeres no cangaço, utilizando um discurso fora de lugar, ao menos do lugar físico, Poço Redondo.

Sendo o seu discurso imerso no regime noturno da imagem, caracterizado principalmente pela descida, pela inversão eufemizante, intimidade, religiosidade e por toda uma simbologia mística 20, Maria Adília utiliza figuras de linguagem que, por isomorfismo, garantem uma análise das imagens produzidas pela sua semântica.

Por exemplo, ao utilizar a metáfora “inferno”, referindo-se ao cangaço, a imagem que trazemos é de uma queda a uma região de sofrimento. “Inferno” que substituiu o caminho proposto por Canário, de ir ao sul do Brasil. “Cangaço” que, semelhante ao inferno, “quem entrava não podia mais sair” 21, local de morte, temática recorrente no discurso da ex-cangaceira, preso à estrutura mística do imaginário.

Posteriormente analisarei essa “queda” como “descida”, pois da experiência do cangaço Maria retirou lições necessárias para a sua vida.Maria Adília era espontânea, sorridente, vocalidade por onde fluíam “causos”,
histórias do passado misturadas a fatos presentes. Usando um vestido verde cheio de bolas brancas e se balançando numa cadeira, sua voz era uma expressão movida pela memória, gravitando entre imagens de seu tempo de cangaço e seus desejos de mulher e de mãe no tempo presente.

Num “discurso de autoridade” 22, em contraposição ao seu aspecto frágil e aparentemente inocente, enfatizava: “eu só digo o que eu sei” 23, revelando o aspecto empírico e subjetivo de sua fala, uma das características de uma história pautada na oralidade, onde, segundo Menezes, privilegia a “vivência subjetiva dos fatos sociais e históricos”, uma “história do local, do comunitário, de certos grupos e movimentos sociais”, além de uma percepção “vista de baixo” 24.

Reticente ao falar de Lampião e Maria Bonita, sua voz silenciava ante as expressões marcantes e enfáticas do sertanejo. No trecho abaixo vemos um exemplo:

ENTREVISTADOR: Como eram Lampião e Maria Bonita?
ADÍLIALampião era boa pessoa. Ele não era brabo, só quem fizesse brabeza com ele, quem tivesse a língua grande, mas quem era bom com ele, que via ele e não conversava pra ninguém, aí era amigo dele. Agora conversou... não era amigo dele não. Maria Bonita era boa pessoa, boa, boa pessoa também. Eu não tenho queixa de Maria Bonita.
ENTREVISTADOR: E era bonita mesmo?
ADÍLIA: Era bonita, mas não era.... 25
Esta omissão no discurso manifesto (“agora conversou...”, “mas não era...”) garante à sua fala um subtexto de rara beleza lingüística, onde as reticências ficam à espera de imagens por onde ouvintes, agora leitores, podem completar o discurso que não se evocou. No subtexto de Maria pode está escrito que morria aquele que
conversava para a polícia onde Lampião estava. Sobre a beleza de Maria de Déia, Adília talvez quisesse expressar que era exagero o epíteto atribuído ao seu sobrenome: bonita. No entanto, essas imagens arquetípicas, ou seja, que cabem em vários discursos, permitem unir pontos reticentes da fala da entrevistada a
outros registros de memória, bem como a múltiplas vozes e textos, abertas ainda ao devaneio poético e a interesses acadêmicos, artísticos, políticos ou outros quaisquer.

Vemos também neste trecho uma eufemização (“Lampião era boa pessoa...”, “Maria Bonita era boa pessoa também...”, “era bonita, mas não era...”), uma das características do regime noturno, bem diferente da amplificação do heroísmo ou anti-heroísmo dos cangaceiros, destacados na maioria das falas de personagens25

Neste instante muda de assunto e começa a conversar com o poeta Beto Patriota, tentando, na
minha análise, esquivar-se das perguntas sobre Lampião e Maria Bonita. Entrevista com Maria Adília, históricos, de um e do outro lado da antinomia característica do regime diurno da imagem.

Voltando à temática da morte, Maria relata o assassinato de seu companheiro Canário, destacando o seu casamento “de verdade, na igreja”, uma espécie de “descida” - não de queda - ao “inferno” que ela designou “cangaço”. A experiência religiosa evidenciada em seu discurso a fez encontrar a realização do sacramento do matrimônio após a dor da perda do seu ente querido.

ENTREVISTADOR: Por onde a senhora andou no tempo do cangaço?
ADÍLIA: Isso aí tudo era mato, era caatinga, sempre eu andava pro todo canto, Raso da Catarina, pra Bahia, Santa Brígida. Eu saí ...eu tava pra ganhar neném, num lugar chamado Saco Grande, aí mataram ele. Um primo-irmão meu que matou ele. Aí eu fui e me entreguei. Passei três meses pro lado de Propriá e aí vim me embora pra aqui. Aí eu ganhei o menino e no dia que o menino inteirou um ano eu me casei. Aí eu me casei de verdades, fui casada mesmo, na igreja. Foi quando mataram Canário, e já tinham matado Lampião. Todo mundo foi se entregando, aí eu fui e me entreguei logo em Propriá. Não vou caminhar na frente de soldado, Deus me livre!! 26
Neste aspecto, distanciando dos episódios relacionados às façanhas heróicas, anti-heróicas e pícaras, principalmente de Lampião e Corisco, contadas pela maioria de seus companheiros e contemporâneos do cangaço, além de cordelistas, Maria Adília lembra também a sua condição de mãe e num processo de “inversão eufemizante”, busca na queda do “inferno”, a “descida” em seu próprio ventre, “símbolo hedônico da descida feliz”27, representadas nas lembranças de seu filho tido no cangaço, como se evidencia neste diálogo:

ENTREVISTADOR: Quantos filhos você teve no cangaço?
ADÍLIAEu só tive um. Eu não sei onde é que ele mora. Mora em São Paulo, mas não sei o endereço dele. Agora eu tô com vontade de ir acolá para vê se ele me dá notícia. Ele mora em São Paulo, mas eu não conheço. 28
O registro de sua memória apresenta a trajetória pessoal de uma mulher que entrega o seu filho a algum coiteiro - ação comum das mulheres cangaceiras -, o que não exime a sua fala da influência da memória coletiva e da recepção ali por nós representada, costurando e movendo também as suas lembranças.

A vocalidade da entrevistada, de forma mais perceptível que o texto escrito, caracteriza-se por uma série de reticências, silêncios, redundâncias, omissões, falas movidas por interesses e desejos pessoais em harmonia ou conflito com interesses e desejos da recepção e que, não fossem amarradas por um fio narrativo, daria à evocação final uma aparente descontinuidade.

Transformado em texto, a voz de Adília é, em termos linguísticos, característica de uma “oralidade mista”29, onde voz e letra se misturam e marcam o tempo todo uma rítmica e repetições (“ele mora em São Paulo”), o que facilita a leitura dos significados linguísticos e o esclarecimento das imagens inconscientes produzidas pela enunciadora, “indicadores fabulosos do trabalho gestado pela memória e pelos desejos” 30 da entrevistada.

Neste aspecto, um texto oral possivelmente fará o leitor acompanhar o corpo e a tonalidade da voz do enunciador, absorver a sua cultura, representada principalmente pela sua linguagem. Em medida semelhante ao texto poético, essa voz faz sentir o “peso das palavras, sua estrutura acústica, a materialidade textual”31. Um texto não apenas lido, mas também imaginado pelo leitor e presentificado por uma voz inseparável da performance de quem o enuncia. A voz de Adília é a própria “emanação do seu corpo” 32, corpo desejante de mãe, antes de ser cangaceira.

Além disto, o conteúdo latente da voz de Maria Adília - “eu não sei onde é que ele mora” ou “agora eu tô com vontade de ir acolá” - expressa a oscilação entre a movência da memória individual e as exigências da recepção, onde, em diálogo, dão verossimilhança à narrativa. A vontade de Maria Adília é ir até onde está o seu filho, no “São Paulo” da sua memória, aquele “São Paulo” primordial que a fez fugir do seio da família para viver um grande amor. Não podendo sair do “inferno” - “cangaço”, ao menos ela poderá, quiçá, ir ao sul encontrar o seu filho, ainda vivo em seu ventre.Não sabendo onde ele mora (e sabendo!), ela preenche o espaço do seu desejo (“agora eu tô com vontade de ir acolá...”) com o desejo do entrevistador (“por onde a senhora andou no tempo do cangaço?”).

O subtexto dá lugar a toda uma “rede de tensões e representações da realidade presente e atuante na dinâmica da entrevista”33, produzindo assim um texto que ora se aproxima e ora se distancia dos desejos da entrevistada. Na assertiva de Hallbwachs, ela cobre a lacuna de sua memória individual com o discurso mais estável da memória coletiva e recepção, por sua vez apoiada em “leis e pontos de referên ia” aceitos socialmente 34.

A voz de Adília, hoje transformada em texto, apresenta-se como imagem de uma memória. Um “testis” mais que um “textum”, um documento de uma verdade, uma narrativa enriquecida pela voz de quem viveu um tempo histórico construído por discursos obtusos, românticos, fantasiosos, ideológicos ou ditos “verdadeiros”.

Sua memória é um “arquivo imperfeito”, pois não epifaniza a verdade, nem sequer a sua verdade, mas a verossimilhança, agenciada pela narrativa do desejo e das amarras sociais, apesar da autoridade de seu discurso 35.

Adília entendia bem o que era uma mulher cangaceira aguentar as perseguições da polícia trazendo no ventre um filho, pois conduziu, juntamente com Maria Bonita, a companheira Sila para um lugar distante da volante do tenente José Rufino. Sua ajuda fez nascer, com “saudações de tiros”, “João do Mato”, o primeiro filho de Sila 36.

Durante a conversa tive também o objetivo de saber como os cangaceiros absorviam e vivenciavam manifestações da cultura popular. Vejamos:

ENTREVISTADOR: Quais são as boas recordações do cangaço, alguma festa ou outra coisa?
ADÍLIA: tinha as festas de nós mesmos, o xaxado. Festa dos paisanos na rua não tinha não. Tinha nas cidades: Prestes Domingos, Pedra D’água, Cururipe 37
(Ao citar a cidade de Cururipe como um dos locais de festa, ela lembra que foi lá onde mataram o seu companheiro Canário, retomando mais uma vez a temática da morte) Importante acrescentar que Sila, pertencente ao mesmo sub-grupo de Adília, relata que em um dos coitos eles dançaram ao som da “sanfona de Pé quebrado, sanfoneiro dos bons.” Também comenta que o cangaceiro Pitombeira contava as façanhas do Capitão Lampião em tom de narrativa, sorrindo e teatralizando cada passagem 38, numa prova de que o cangaço escrevia o seu próprio texto maravilhoso e fantástico, possivelmente em diálogo constante com a literatura de cordel. Maria interrompe a sua própria fala comentando a presença de estudantes em sua casa, trazendo o presente num passado imbricado com silêncios.

Diz: ADÍLIA:  
Chegou um bando de menina. - É a senhora que é Dona Adília?. Não sou Adília não. Pula, pula. - A senhora é aquela mulher que conversa as coisas? Eu converso porque tenho boca pra conversar, ninguém me empata conversar... pula... as meninas saíram aqui, viraram acolá...mas menino, eu vou dar crença a menino. É certo que eu já fui menina e ninguém me dava crença. Sai pra lá, Sai pra lá (todos sorrimos)...39
Adília não ficou tão famosa quanto Sila, Maria Bonita e Dadá. No entanto, a sua aparente imparcialidade discursiva - característica também destacada pelo pesquisador Frederico Pernambucano de Mello 40 contribuiu na construção de um imaginário do cangaço menos baseado nas estruturas heróicas. Sila e Adília ficaram aproximadamente dois anos no cangaço; Maria Bonita oito, e Dadá doze anos. Maria Bonita morreu em 1938 aos 27 anos, Dadá em 1994 aos 79 anos e Sila em 2005 aos 86 anos.

Em 1937, o Diário de Pernambuco destacou a presença das mulheres no cangaço, dentre elas, a entrevistada Maria Adília: Pela ordem, foram mulheres de destaque no cangaço: Dadá, Maria Bonita, Sila, Durvinha, Neném, Mariquinha e Maria Juvina, seguidas, sem ordem, de Enedina, Rosinha, Dulce, Otília, Lili, Lídia, Adília, Sebastiana, Maria de Azulão, Veronquinha, Inacinha, Eleonora, Cristina, Moça (Joana Gomes), Quitéria e outras mais. Por suposição de adultério, Lídia e Lili foram mortas por seus amantes, José Baiano e Moita Braba (...) Maria Bonita, Nenem, Mariquinha, Eleonora, Maria de Azulão e Enedina são mortas pela volante, com seus corpos vilipendiados de mil maneiras. Dadá, Sila, Maria Juvina, Dulce, Otília, Inacinha, Adília, Quitéria, Sebastiana e Moça, presas pela volante, vêm a ser poupadas e se reincorporam à sociedade...41

Ao final de março do mesmo ano (em 2002), Beto Patriota me telefonou comunicando a morte de Adília, aos 82 anos, dois meses após conceder esta entrevista, pedindo-me aquelas que seriam as últimas imagens de um pedaço da memória do cangaço. Lembro que ao ir embora no dia da entrevista, levava comigo uma sensação de despedida, além do registro fílmico, e fiquei a observar atentamente aquela senhora magra acenando para nós da porta de sua humilde casa. “Cangaceira sim, e valente; mas mulher, sempre e antes de tudo”42.

Este artigo não deixa de ser uma homenagem a todas as mulheres que desafiaram o seu tempo e escreveram páginas de sofrimento, sangue, tiros, dores, crimes. Mas também, sonhos, fantasias, filhos ausentes, choros e silêncios. Como Maria Adília, tantas mulheres tiveram a coragem de dizer o não-dito no lugar do já dito pela história oficial.

Notas e referencias:

1 Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba. Doutorando em Lingüística pela Universidade Federal da Paraíba.
2 Parte desta entrevista foi publicada no filme documentário, intitulado Sonhos de Maria: a ex-cangaceira do bando de Lampião, em 2005, como pré-requisito para a minha conclusão junto ao Curso de Bacharelado em Arte e Mídia da Universidade Federal de Campina Grande. Segundo informações do poeta e facilitador da entrevista, Beto Patriota, esta foi a última que Maria Adília concedeu.
3 COUTINHO, Eduardo. “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”. Projeto História, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1981.
4 Entrevista com Maria Adília. Poço Redondo-SE, jan. 2002. 2 fitas SVHS (20 min). Concedida a Gilvan de Melo Santos.
5 DURAND, Gilbert. “Método arquetipológico: da mitocrítica à mitoanálise”. In:. Campos do imaginário. Tradução de Maria João Batalha Reis. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
6 Entrevista com Beto Patriota e Tonho Artesão. Poço Redondo-SE, jan. 2002. 1 fita SVHS (15 min).
Concedida a Gilvan de Melo Santos.
7 COSTA, Alcino Alves. O sertão de Lampião. Aracaju: s.r., 2004, p. 203.
8 SILA, Ilda Ribeiro de Souza. Angicos, eu sobrevivi: confissões de uma guerreira do cangaço. São Paulo: Oficina Cultural Mônica Buonfiglio, 1997, p. 30 e p. 70.
9 Sobre a morte de Canário, leia-se: COSTA, O sertão..., p. 275-283.
10 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
11 Diário de Pernambuco, Recife, 10 mai. 1959, p. 6. 144 [17]; João Pessoa, jul./ dez. 2007.
12 SOARES, Paulo Gil (dir.). Memória do cangaço: entrevista com Saracura. Pernambuco: s.r., 1965, 1 DVD.
13 HUMBERTO, José (dir). A musa do cangaço. Entrevista com Dadá. Salvador: s.r., 1983, 1 DVD.
14 SILA, Angicos: eu sobrevivi..., p. 49.
15 Segundo Durandbacia semântica equivale ao “conjunto sociocultural identificado por regimes imaginários específicos e mitos privilegiados”. DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Tradução de Maria João Batalha Reis. Lisboa: Piaget, 1989, p. 165.
16 Foto da Coleção Antônio Amaury Corrêa de Araújo. Publicada em Superinteressante, ano 11, n. 6,
jul. 1997.
17 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a castelo (1930-1964). 13 ed. Apresentação de Francisco de Assis Barbosa. Tradução de Ismênia Tunes Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, p. 203-231.
18 Leia-se: Discurso de “Miranda” apud VIANNA, Marly de Almeida G. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucila de Almeida Neves (orgs.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 76-79.
19 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
20 Destas categorias apresentadas me remeterei a algumas delas, pontuando o que for necessário. No entanto, para aprofundá-las, leia-se: DURAND, Gilbert. “O regime noturno da imagem”. In: As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3. ed. Tradução de Hélder Coutinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 191-281.
21 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
22 Segundo Bourdieu, o reconhecimento do “discurso de autoridade” é o suficiente para provocar o efeito persuasivo necessário. A autoridade do discurso de Maria Adília provém da sua condição de ex-cangaceira. Para aprofundar tal questão, leia-se: BOURDIEU, Pierre. “Linguagem e poder simbólico”. In: A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1998, p. 91.
23 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
24 Numa mesa redonda pude dialogar com a professora aspectos de meu primeiro vídeo-documentário,
intitulado “Lampião: uma história contada pela arte”. Para maiores detalhes, ver: MENEZES, Marilda.
Conferência: Lampião vive: memória e linguagens (comentário do vídeo: Lampião: uma história contada pela arte). Campina Grande: Departamento de Psicologia, projeto aula-extra, em 8 ago. 2002. Sobre os pressupostos da História Oral, recomendo o recente artigo: VELOSO, Thelma Maria Grisi. “Pesquisando fontes orais em busca da subjetividade. In: WHITAKWE, Dulce Consuelo Andreatta & VELOSO, Thelma Maria Grisi (orgs.). Oralidade e subjetividade: os meandros infinitos da memória. Campina Grande: EDUEPB, 2005, p. 17-42.
25 Neste instante muda de assunto e começa a conversar com o poeta Beto Patriota, tentando, na
minha análise, esquivar-se das perguntas sobre Lampião e Maria Bonita. Entrevista com Maria
Adília, 
Concedida a Gilvan..., grifos nossos.

26 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan..., grifos nossos.
27 DURAND, As estruturas..., p. 203.
28 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan..., grifos nossos.
29 ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução de Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 18.30 VELOSO, “Pesquisando fontes...”, p. 29.
31 ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000, p. 64.
32 O conceito de performance aqui desenvolvido advém da teoria de Paul Zumthor. Segundo ele, “é o ato pelo qual um discurso poético é comunicado por meio da voz e, portanto, percebido pelo ouvido”. Ver: ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Sônia Queiroz. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 87. Sobre relação da voz com o corpo, ver: ZUMTHOR, Performance..., p. 71-86 e p. 99.
33 AUGRAS, Monique. “História oral e subjetividade”. In: SINSOM, O.R.M.V. (org.). Os desafios contemporâneos da história oral. Campinas: CMU/ UNICAMP, 1997, p. 30.
34 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora; Revista dos Tribunais, 1990, p. 57-58.
35 Sobre a idéia de arquivos imperfeitos, leia-se: COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. São Paulo: Perspectiva, 1991.
36 SILA, Angicos, eu sobrevivi..., p. 77-80.
37 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
38 SILA, Angicos, eu sobrevivi..., p. 42 e p. 54.
39 Entrevista com Maria Adília, Concedida a Gilvan...
40 Numa conversa pessoal comigo, em abril de 2007, Frederico Pernambucano de Mello acrescentou que Maria Adília, ao contrário de Dadá e Sila, não foi influenciada por teorias marxistas, através das quais afirmava que Lampião era um herói injustiçado pela classe dominante.
41 Diário de Pernambuco, Recife, 18 abr. 1937, apud MELLO, Frederico Pernambucano de. Quem foi Lampião. Recife: Stahli, 1993, p. 113, grifos nossos.
42 SILA, Angicos, eu sobrevivi...,p. 75.

RESUMO
Este artigo apresenta trechos discursivos da última entrevista da ex-cangaceira do bando de Lampião, Maria Adília. A voz de Adília, hoje transformada em texto, apresenta-se como imagem de uma memória. Um “testis”
mais que um “textum”, um documento de amplo valor histórico, que faz mover o imaginário do cangaço.

Fonte: http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/saeculum17_art03_santos.pdf

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