Por Antnonio Corrêa Sobrinho
Trago abaixo,
para conhecimento e deleite, a matéria do jornal “O GLOBO”, de 04/04/1927, que,
permitam-me dizer, como outras, infelizmente, foi lida apenas por alguns
leitores, os desta edição, que já vai pra quase 90 anos; dentre estes, poucos,
para não dizer pouquíssimos, leitores nordestinos. Matéria que é completamente
estranha à contemporaneidade, conhecida hoje tão somente por pesquisadores ou
alguns interessados no tema, frequentadores de acervos de velhas gazetas, assim
como eu. Esta, não mais.
Um artigo
formulado no calor dos acontecimentos, este, ou seja, no pleno exercício do
cangaço, onze anos antes do seu fim simbólico – a morte de Lampião. Que o vejo
como um alerta à sociedade brasileira, de que o Cangaço não vinha sendo
combatido corretamente e que não era prioridade dos detentores do poder
exterminá-lo; ocasionando, como consequência, graves sofrimentos e inestimáveis
prejuízos a milhares e milhares de civis nordestinos.
Hoje, com a
profundidade que nos cabe analisar o passado, vejo que nenhum dos atos
criminosos e anti-sociais praticados pelos que fizeram parte integrante do
cangaço, seja por cangaceiros ou por alguns praças volantes, nas suas lutas,
nos seus afazeres, nordestinos que foram estes, filhos da da mesma terra, da
mesma aldeia, da mesma pobreza, do injustiçado e sofrido torrão sertanejo,
pois, nenhum mal praticado por estes personagens, figuras tão criticadas, tão
avaliadas, tão condenadas, ultrapassa, em peso e dimensão, a vilania e o
maquiavelismo dos detentores do poder político e econômico da nação brasileira
daqueles idos, os quais, veladamente, preferiram, egoística e
desrespeitosamente, fomentar a seca, a violência, o extermínio, a indústria do
banditismo; tudo isso em detrimento de uma solução pelas vias do progresso e da
presença institucional do Estado na região, especialmente e sobretudo das
responsáveis pelo controle social, a Polícia e a Justiça estruturalmente
preparadas. Leiam Canudos (milhares e milhares de jagunços e soldados mortos),
Caldeirão de José Lourenço (onde a até a força aérea brasileira despejou bombas
sobre seu próprio povo), Pau de Colher (onde centenas de pobres brasileiros,
armados com foices e pedaços de pau, foram simplesmente dizimados pelas mãos
fortemente armadas de militares que, por estas suas façanhas, foram
condecorados e até governantes foram, ainda hoje são festejados), Flagelo da
Seca (estimam que mais de 3 milhões de sertanejos morreram durante as secas),
Cangaço (milhares de bandoleiros versus milhares de volantes é igual a milhares
de indivíduos e famílias destruídas), entre outras maldades, barbaridades e
monstruosidades praticadas pelos oligarcas de plantão, sob a alegação do
resguardo da ordem pública, proteção dos mandatários, funcionamento das
instituições e mantença da governabilidade.
O BANDITISMO
NOS SERTÕES DO NORDESTE
PARA AS
POPULAÇÕES DO INTERIOR É PREFERÍVEL A VISITA DE “LAMPIÃO” A DE CERTAS FORÇAS
POLICIAIS QUE O PERSEGUEM.
INTERESSANTE
CORRESPONDÊNCIA DE UM REPRESENTANTE DO GLOBO, QUE PERCORREU TODA A ZONA
NORDESTINA
Como
representante do GLOBO, o Sr. Miguel Amaro Ribeiro percorreu várias localidades
do interior nordestino, onde assistiu a cenas as mais covardes, e ouviu falar
dos crimes mais hediondos, praticados, não só por Lampião e sua gente, mas
também pelas forças policiais dos vários Estados que perseguem o terrível
bandoleiro.
Ao regressar a Fortaleza, após uma longa viagem pelo interior, o nosso
representante escreveu as notas que se seguem e que retratam, com muita
fidelidade, a horrível situação do interior do Nordeste, vítima imolada à
perversidade de uns e à inconsciência criminosa de outros.
FORTALEZA, 26 (Especial para o GLOBO) – o Ataque a Guaribas foi no dia 1º do
corrente. Cerca de 8 horas da manhã, mais ou menos, pessoas vindas da serra do
Araripe e de Porteiras para o Jardim, onde eu me achava, diziam estar sendo
travado um tiroteio para os lados dos sítios Guaribas e Boa Vista.
A primeira notícia foi que a luta se empenhara no primeiro local, isto é, no
sítio do Sr. Chico Chicote, onde se achava o conhecido cangaceiro Lampião com
sua gente, cercado pelas forças que o perseguem e o trazem acuado pelos
sertões. Em Boa Vista mora Urias Pontes, cunhado do major Theóphanes da polícia
de Pernambuco e o mais encarniçado perseguidor do bandido, tendo em sua casa as
duas cunhadas, irmãs do citado oficial. Dizia-se também que o bandoleiro
atacara esse local com o fito de capturar as moças para conservá-las como
reféns, garantindo assim a vida de seus irmãos e asseclas capturados em
Juazeiro e mandados para Pernambuco. Por isso mesmo quando isso ocorreu, foram
vários homens armados para Boa Vista, ao mesmo tempo que saíam de Jardim,
comandados por um sargento, 30 praças, que se destinavam às forças do tenente
Bezerra, comandante em chefe da Volante.
Na casa de Zeca da Cruz, essa força encontrou o delegado de Porteiras, que ia a
Jardim pedir socorro, pois Lampião estava cercando Chico Chicote. Foi, então, o
próprio a Jardim, prevenir e a força seguiu com a citada autoridade para
Porteiras; alguns rapazes armados, seguiram de Jardim para socorrer Chicote, os
quais, chegando em Porteiras, pediram ao sargento comandante das 30 praças idas
de Jardim, para acompanhá-los numa retaguarda à Lampião. Esse militar respondeu
que não mandaria os soldados, mas, se algum quisesse ir por conta própria, que
fosse.
No dia 2, às 10 horas, chegou a Jardim um vaqueiro, filho do coronel Salviano
de “Cacimbas”, dizendo que Lampião prendera o Sr. Pedro Vieira, exigindo cinco
contos para libertá-lo, sob pena de fuzilamento. Com essa notícia
estabeleceu-se enorme confusão. Lampião não podia estar ao mesmo tempo em
Guaribas e Cacimbas separadas aproximadamente por seis boas léguas, pois, o
fogo continuava em Guaribas. Pedro Vieira, que é sócio de Urias Novais, mandou
pedir a este o dinheiro necessário. Mas Urias não estava presente. O povo
revoltou-se dizendo que o “povo de Jardim não mandava dinheiro para bandido!”
Afinal, foi resolvido mandar o dinheiro, não para o cangaceiro, mas para o
prisioneiro. Essa quantia foi obtida por subscrição pública, partindo, então,
um portador levando dois contos, esperançoso de que o bandido se contentasse
com esta importância.
Nesse ínterim chegou um vaqueiro, que também estivera prisioneiro de Lampião
com Pedro Vieira e fugira no momento em que o bandido mandou buscar animais.
Esse vaqueiro, que é filho do major V?, usara de um inteligente truque para
fugir.
Aqui damos um exemplo da energia da mulher do nosso sertão. A nossa gravura mostra uma moça da elite barbalhense, no Ceará, pronta a defender, com a própria vida, a sua cidade natal.
Não havendo mais animais, disse que ainda faltava um e o bandido mandou
buscá-lo. Era o que ele desejava, fugindo e chegando a Jardim em dolorosas
condições. Foi esse fugitivo que declarou que Pedro Vieira suplicara ao bandido
para deixar a sua libertação por dois contos, alegando ser pobre, no que
recebeu formal recusa e nova ameaça de morte. Fez-se, então, nova quota e foi
expedido novo portador com os 3 contos que faltavam. Mas nenhum dos dois
mensageiros encontrou o bando.
No dia 3, às 10 horas, Lampião ficando a meia légua de Ipueiras, com os seus
prisioneiros, Pedro Vieira e um outro que trazia em penhor de 15 contos pedido
por sua liberdade, de Pajeú, mandou 20 “cabras” atacar a povoação, para prender
o coronel Pedro Xavier. Este, sendo avisado, à última hora, da aproximação do
bandido, assim mesmo resistiu por duas horas de fogo cerrado, com dois homens,
apenas. O coronel, cercado de sua esposa e filhos dentro de casa, animava o
fogo dizendo:
- Morrem todos, mas ninguém se entrega.
Os bandidos tiveram um morto que foi arrastado por quatro outros companheiros,
que só deixaram o cadáver, levando todas as armas e munições.
Vendo a resistência, os bandidos recuaram até seu chefe a quem participaram o
ocorrido. Este ao receber a notícia da morte do seu assecla, exasperou-se,
dizendo a Pedro Vieira:
- Então você está peitado para me matar? Pois é você que vai morrer.
O prisioneiro suplicou, chorou, pediu por tudo, até pela alma da mãe do
bandido, dizendo ser pai de 10 filhinhos.
O cangaceiro friamente tirou a “parabélum”, encostou-lha ao ouvido, detonou-a,
deixando-o estendido ao solo.
Isso foi dito por um velho preso que serviu de guia aos bandidos e que já tendo
cumprido a missão que lhe fora designada, conseguiu liberdade. Após essa
façanha, seguiram pela estrada. Adiante, encontraram sobre um jumento um menor
de 15 anos, apenas, único arrimo de uma família, e o mataram. O fogo em Guaribas
cessou às 12 horas do dia 2. A essa hora, do pé da serra foi visto o fumaceiro
em Guaribas. Era a polícia pondo fogo em todas as casas do sítio de Francisco
Chicote, inclusive a dos seus pobres moradores.
Era a vitória da lei proclamada pelo incêndio.
Guaribas está a três léguas de Jardim, e, apesar de avisada de que Lampião
passara próximo a Jardim (duas léguas) a polícia só chegou à cidade no sábado,
dia 5, isto é, caminhando uma légua por dia, visto que o incêndio de Guaribas
foi no dia 2. O povo de Jardim esperava a chegada da força, esperançado de
ver-se garantido. Mas que decepção!...
Não se sabia se aquela gente era polícia. Eram umas cento e vinte praças mais
ou menos, fardadas apenas com uniformes da polícia cearense e poucos da
pernambucana.
O povo não sabia se a tropa era composta de policiais, ou de cangaceiros. O seu
primeiro ato de bravos mantenedores da ordem foi soltar as suas montarias
dentro do sítio do coronel Roriz e depois irem à feira, onde tomaram animais e
até esteiras e cordas, de cujo fabrico alguns pobres se sustentam, e tudo que
lhes apetecia. Dois desses homens foram ao sitio do major Manoel Amaro,
suplente de delegado, onde encontraram suas duas filhas, um filho e um cunhado.
Ale ameaçaram que se não dessem bons animais, iriam tomá-los de qualquer
maneira. Afinal entraram num acordo e deixaram aquelas criaturas em paz. Perto
da saída foi uma bebedeira infernal:
A soldadesca, especialmente os paraibanos, trajados de cangaceiro, inclusive um
de gibão (corneteiro), percorriam a cavalo o interior das feiras, machucando
mulheres, moças e crianças, gritando:
- Quem quiser apanhar levante o dedo!
Porém ninguém levantou, e eles, como que acometidos de um mal desconhecido,
seguiram em direção à Pernambuco, açoitando quem encontravam pelo caminho. A
primeira vítima foi o Sr. Chico Geraldo, que voltava da roça e que em
consequência disso vomitou sangue durante cindo dias. Adiante prenderam dois
meninos, que lograram fugir, motivo porque foi um deles alvejado pelos
policiais.
Depois pegaram do pobre velho, de quem arrancaram toda a barba, fio a fio. Esse
pobre homem ainda se encontra enfermo.
Um exemplo do fanatismo existente no interior do Ceará terá o leitor na gravura acima. Ela mostra uma cédula-reclame no valor de 100$000, das muitas que correm na zona nordestina, a qual traz a efigie do padre Cícero Romão Batista, o guia dos sertanejos.
Na casa do Sr. Antônio Bem, cunhado e primo do Sr. Pedro Vieira, morto por
Lampião, obrigaram sua esposa cuja aflição já era grande, a pisar arroz e fazer
comida para a soldadesca. A senhora, que se encontrava acompanhada apenas de
uma mocinha e um menor, que só não foi espancado pelos policiais por ter sido
trancado num quarto, sofreu as maiores torturas. Os soldados mataram-lhe toda a
criação doméstica, como sejam: galinhas, perus, porcos, etc; fizeram
matalotagem para cada soldado, encheram os bornais e o que sobrou do morticínio
policial eles mesmos enterraram no terreiro.
Quanto à captura de Lampião e seu bando, penso ser isso, apenas, uma questão
política, só dependendo dos políticos. A perseguição ao bandoleiro não é, a meu
ver, nem útil nem prática, nem mesmo necessária, tendo em vista a forma por que
é feita. Foi isto o que verifiquei e o que as populações sertanejas estão
fartas de saber. Para essas infelizes populações do interior nordestino é
preferível a visita de Lampião à de certas forças policiais que o perseguem a
dez e vinte léguas de distância...
Há ainda um fato que deve ser ressaltado: com esses açoites e espancamentos, a
polícia transforma os nossos rudes, mas briosos sertanejos em ardorosos
soldados das hostes de Lampião. E os casos dessa natureza já não são poucos. O
bandido só açoita o inimigo, ao passo que as polícias de certos Estados
sacrificam toda a população ordeira das povoações por onde passam. Quando toma
um cavalo Lampião devolve-o, de algumas léguas distante, ao respectivo dono,
usando até de ameaça de morte para os condutores, os quais cumprem à risca a
ordem. Já a polícia tira em nome do governo e, o que passa para o Estado, perde
o seu legítimo dono.
Consta até que em Salgueiro foram carimbados cerca de 400 animais com um
carimbo especial do governo pernambucano. Sobre as violências da polícia muita
coisa há ainda para contar, mas vamos deixar para outra correspondência.
Por hoje o que aí está já é o bastante.”
Sobre os fatos
mencionados na matéria supra, recomendo a leitura dos excelentes textos dos
pesquisadores e escritores Manoel Severo - “A Tragédia das Guaribas de Chico
Chicote”, constante do site http://cariricangaco.blogspot.com.br, e de José Bezerra
Lima - “Chico Chicote: A Tragédia das Guaribas”, in “Lampião – A Raposa das
Caatingas”.
Fonte: facebook
Pagina: Antnonio Corrêa Sobrinho
Grupo: O Cangaço
Link: https://www.facebook.com/groups/ocangaco/permalink/1456851927661254/
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