Por: Hélio Pólvora
Nada a ver com anatomia feminina; tampouco com o baixo- ventre de alguma
sertaneja arretada. O raso é uma região de cerca de 38 mil km2 ,no centro-leste
da Bahia, entre os rios Vasa-Barris, ao sul, e o São Francisco, ao norte.
Área inóspita, de escassa água salobra e fundos solos arenosos. Hoje é
reserva biológica em que se tenta, além de outros empreendimentos, preservar a
bela arara azul. Terra extremamente árida, cobre-a uma vegetação espinhosa e
cortante. Alguém chamou- a de sarçal ardente – e, afora o Conselheiro com o seu
cajado e camisolão sujo, ninguém ali se materializa para ditar mandamentos.
Predominam o xique-xique, as palmatórias, a macambira, os rabos- de-raposa. Tudo
entrançado. Reses que ali entram são consideradas perdidas pelos vaqueiros mais
afoitos, embora se assevere que onde passa lombo de cavalo passa o cavaleiro.
Quando governos estaduais pressionados por grandes usineiros de açúcar e
pecuaristas organizaram grupos militares e paramilitares para a caçada que se
encarniçou nos últimos dez anos de estripulias do cangaceiro (o governo da Bahia
chegou a oferecer 50 contos de réis, em 1930, a quem o prendesse ou matasse), o
Rei Vesgo entrou com sua tropa no Raso da Catariana. Andava a fugir de uma
jurisdição para outra.
O raso revelou-se um esconderijo satisfatório. É certo que as forças volantes
(os “macacos”, como eram chamados, porque saltavam como símios ante o silvo e
ricocheteio das balas jagunças), conduzidas pelo legendário rastreador
pernambucano Antônio Cassiano, seguiram as pegadas de Lampião. Mas este conhecia
o Nordeste palmo a palmo, pedra a pedra, loca atrás de loca. Sabia onde e como
acampar e vigiar. Tinha algumas estratégias de guerrilha. Era um Napoleão
encourado, com um tropicalista chapéu tricórnio de barbicacho e que se dava ao
luxo da companhia de sua Josefina — a Maria Bonita de quem se falará adiante.
Ardis lhe sobravam. Por exemplo: mandar inverter os saltos e bicos dos
sapatões ou alpercatas, para fazer crer que deixava o Raso, em vez de nele
embrenhar-se; marchar em fila indiana, todos pisando nas mesmas pegadas,
enquanto um, de costas, as desfazia com ramos de arbustos; ou então simulava a
pegada de um caminhante único. Atacava e recuava para entrincheirar-se e atrair
o inimigo. Sabia cavar e furar raízes de umbuzeiro para obter água, e tirá-la
também do âmago de certas bromeliáceas. O escritor Ranulpho Prata descreve no
livro Lampião a ambiência rude e quente, o faro do rastejador, as escaramuças, o
acampamento desfeito num átimo, a fuga para outras virilhas do Raso da Catarina
— um esconderijo bordejado pelas cidades e povoados de Paulo Afonso, Jeremoabo,
Canudos e Mucuruté. Em Canudos, entre 1893 e 1897, tombaram trinta mil
combatentes: soldados e fanáticos do visionário Antônio Conselheiro, adepto do
regime monárquico. Canudos não se rendeu; acabou, como diz Euclides no fecho de
Os Sertões.
http://www.vidaslusofonas.pt/lampiao.htm
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